Lectio Divina na 3ª semana da quaresma 2019

DOMINGO, 24 de março de 2019 – 3ª SEMANA DA QUARESMA – ANO C

Lucas 13,1-9 (Convites providenciais à penitência; Parábola da figueira estéril) Jesus acabara de exortar seus interlocutores a saberem discernir os sinais dos tempos (cf.12,54-57). Agora, alguns lhe pedem uma interpretação fidedigna de dois fatos conhecidos: uma repressão cruenta por parte de Pilatos, no templo, durante um sacrifício (vv.1-3) e a trágica morte de 18 pessoas esmagadas “ao cair à torre de Siloé (v.4). Jesus responde su­perando o modo comum de pensar: o acontecido não é condenação notória das ‘vítimas’ (vv.2.4), mas um convite urgente à conversão dos ‘viventes’ (v.5). E, para ilustrar esta urgência, conta a parábola da figueira estéril (vv.6-9). Para os profetas, esta árvore, não rara entre as vinhas palestinenses, havia se tornado em símbolo da infidelidade de Israel (cf. Jr 8,13; Os 9,10; Mq 7,1). Também, nos sinóticos, a figueira é símbolo de solicitudes pacientes e amo­rosas não correspondidas (Mc 11,12-14; Mt 21,18-22). Mas Jesus deixa a porta aberta à esperança: a esteri­lidade da figueira faz suplicar ao lavrador mais um tempo de graça: um ano jubilar (vv.8s), dado pelo Senhor, disposto, uma vez mais, a confiar e esperar os frutos desejados desde muito tempo.

 

 

Ex 3,1-8ª.13-15 (A sarça ardente; Revelação do nome divino) – A narração da vocação de Moisés é um dos pontos altos da Bíblia, juntamente com a revelação do nome de Deus. Moisés, fugindo do Egito, renunciou a prosseguir com seus generosos projetos de libertação e vive sua vida (v.1). Porém, o Senhor o surpreende em sua vida ordinária: a curiosidade, ante o fato extraordinário da sarça que arde sem consumir-se, faz com que se aproxime; ali, Deus, que o esperava, o chama duas vezes por seu nome, suscitando o “Aqui estou” da plena disponi­bilidade à escuta e a obediência. O Senhor ensina a Moisés a atitude do santo temor ante sua presença (vv.4-5.6b), se dá a conhecer como o Deus dos pais e manifesta estar presente na história do povo e disposto a intervir (v.7s). Porém, quer servir-se exatamente de Moisés para levar a salvação, que é uma libertação da escravidão opressora para passar ao serviço do culto a Deus com a própria vida (cf. v.12). Moisés rejeita a missão, consciente de sua incapacidade e da falta de credenciais ante o povo: como apre­sentar-se em nome de um Deus do qual ninguém conhece seu nome? O nome, para os semitas, indica a totalidade da pessoa: conhecê-lo equivale a poder dispor dele cada vez que o invocar. A resposta enigmática do Senhor (v.14) é só uma rejeição aparente: o tetragrama sagrado ‘YHWH’ é inter­pretado pelo mesmo Deus como uma forma causativa do verbo “ser”, com diversos matizes possíveis incluídos. “Eu sou o que sou” (= não me podes compreender; eu sou o que faz existir; eu sou o que está presente; eu sou o que serei: tal como me manifestarei). Com a força desta re­velação, que é, por sua vez, sua certeza de que o Deus dos pais estará com seu povo (v. 15), Moisés acolhe a missão.

 

1 Cor 10,1-6.10-12 (O ponto de vista da prudência; lições do passado de Israel)A comunidade de Corinto é viva e inquieta; de con­versão recente, experimenta a perigosa insídia de um contexto pagão, com costumes relaxa­dos. Tomando posição nas diversas questões que se expõem, Paulo propõe neste fragmento uma reflexão sobre dois acontecimentos do Êxodo. Destes fatos se desprende claramente que a graça se oferece a todos – e o apóstolo repete, insistentemente, com a clara alusão ao Batismo e à Eucaristia (vv.1-4a) -, porém Deus pede a cada um que não acabe infrutuoso. Uma fé quase mágica na eficácia dos sacra­mentos ou uma certa euforia espiritual induzem a pres­cindir das exigências morais que comporta uma vida autenticamente cristã para que Deus possa contem­plá-la com agrado (vv.5s). Também se condena a mur­muração que suscita divisões (vv.1.3), considerando-a como uma repetição do descontentamento do povo em seu caminho do deserto (v.10). O exemplo dos israelitas é emblemático e deve evitar que outros se precipitem no mesmo abismo incorrendo em um castigo análogo (v.11). “Temos chegado à plenitude”, não tem nada com um viver irreflexivamente. Que cada um pergunte à sua consciên­cia e meça suas próprias forças (v.12): é preciso manter-se firmes e bem sedimentados.

 

Sl 102/103 (Deus é amor) Por meio de um canto suave o salmista goteja afeto e amor ao Senhor e canta suas maravilhas e atos de ternura para conosco. Devemos meditar este Salmo lentamente, saboreando cada palavra que nos introduz nos ministérios do coração de Deus. Quando rezamo-lo com fé, o Senhor nos fortalece e confronta. Todo o amor de Deus Pai nós podemos contemplar na pessoa de Jesus: “Mas quando se manifestou a bondade de Deus, nosso Salvador, e o seu amor pela humanidade” (Tt 3,4) O Pai nos enviou o seu único Filho, Jesus, por puro amor a nós e para que Ele nos ensinasse o caminho da vida plena. O grande hino de ação de graças que podemos oferecer ao Pai em resposta à sua generosidade não é realizado por meio de palavras, mas sim com a própria vida. Tocam-me profundamente as palavras deste Salmo: “[O Senhor é] lento para a cólera e rico em bondade”. Ele tem pressa em nos amar, em nos perdoar. Não perca tempo, o Senhor está lhe esperando! Se você compreende melhor este Salmo, leia e medite o capítulo 15 do Evangelho de Lucas, as três grandes parábolas da misericórdia.

Senhor, como é maravilhoso parar um pouco com minhas atividades e pensar em quantos benefícios até hoje recebi do teu amor. Deixa que minha alma, como a do salmista, se expanda, se dilate e cante “bendize minha alma ao Senhor por todos os benefícios e não esqueça nenhum”. Quero-te agradecer por me ter criado; como é bela a vida; mesmo mesclada pelo sofrimento, com decepções; com dores, vale a pena viver e agradecer com todas as batidas do meu coração, com todos os meus tons e repertório. Que tudo cante teu louvor.

 

 

MEDITATIO: Sempre há um lugar e uma hora exata, na qual o Senhor quer encontrar-se conosco. É o momento que marca o começo da conversão ou da rejeição radical. Essa conversão é um caminho que exige cons­tância e uma decisão sempre renovada de prosseguir a viagem, apesar de tudo. Se na antiga aliança o povo caminhava sob a guia de Moisés, para nós o ca­minho a seguir é o próprio Filho de Deus, Jesus Cristo. Ele é quem nos tira da escravidão do pecado, quem nos tira de nós mesmos. O sentido da vida eclesial é ajudar fraternal­mente a caminhar pelas sendas da conversão, ou seja, ajudar a buscar e seguir Jesus. Tem-se que desejar, ar­dentemente, que ninguém se extravie, que ninguém atrase ou se afaste. A isto nos convida o Evangelho de hoje, que conclui com a parábola da fi­gueira estéril. O lavrador, que roga que não a cortem, é Jesus. Como intercessor nosso, dirá até o fi­nal dos tempos: “Espera um pouco, um pouco, todavia, que a cuidarei mais”. Todos os cuidados com que Jesus nos cerca com sua Palavra, com os sacramentos, com suas intervenções providenciais – e também os acontecimentos dolorosos -, são ofertas de conversão. Deixemos, pois, que Ele nos cultive.            A Palavra sagrada é como um arado, e também como uma semente semeada para que possa produzir fruto.

 

ORATIO: No trágico horizonte destes anos de guerras, ódios e violências, no lento e fatigoso decorrer de nossos dias, segue chamando-nos, o Senhor, para dizer-nos quem Ele é. Ajuda-nos a estar dispostos a escutar tua vontade, ajuda-nos a manter-nos em silêncio, de joelhos, pelo menos um curto espaço de tempo, ante a débil lâmpada que arde junto ao sacrário, na imensa solidão de nossos templos, convertidos, com frequência, em um deserto no qual Tu ficas só, esperando-nos, enquanto nós nos cansa­mos e nos deixamos absorver por outras coisas. Conta-nos algo de ti, do que tens feito por nós ao longo das inumeráveis gerações que nos hão precedido no caminho da história, quando, escutando o grito desesperado que sobe da terra, te incli­nastes misericordioso para pactuar conosco uma aliança eterna. Seguindo teu exemplo, faz que, também nós, aprendamos a descobrir os sofrimentos de tantos irmãos que passam despercebidos e dos quais nunca nos temos preocupado.

 

CONTEMPLATIO; Senhor amantíssimo, pelo amor com que entregaste a vida por teu rebanho, te suplico e rogo: escreve com teu dedo em meu peito a doce memória de teu nome de­licado, e que nenhum esquecimento o destrua jamais. Escreve nas páginas de meu coração teus mandatos e tua von­tade, tua lei e teus preceitos, para que sempre e em todo lugar tenha ante os olhos, Senhor de imensa ternura, todos teus mandamentos. Que doce ao paladar são tuas palavras! Dá-me uma memória tenaz para não esquecê-las nunca. Fogo sempre ardente, amor que sempre queimas, doce Cristo, Jesus bom, luz eterna e infalível, pão de vida que nos fortaleces sem que diminuas; cada dia és consumido e sempre estás inteiro: resplandece em mim, inflama-me, ilumina e santifica a tua criatura, esvazia-a de sua malicia, enche-a de graça e mantenha-a sempre saciada, para que coma o alimento de tua carne para sal­vação de sua alma, para que comendo-te viva de ti, ca­minhe por ti, chegue a ti, descanse em ti (Juan de Fécamp, Confessio theologica, lU, 47-52).

 

AÇÃO: Repete com frequência e vive hoje a Palavra:

“Bendize, minha alma, ao Senhor e não esqueças seus benefícios(Sl 102,2)

 

PARA A LEITURA ESPIRITUAL Tudo é providencial na vida do homem, tudo está ligado ao tempo: neste sentido, tanto justos, como pecadores, vivem no tempo, que é um dom de Deus, um tempo de graça, um tempo aberto a conversão. No pecador e no justo permanecerão assim para sempre. Estão chamados a ser “pecadores em conversão”. Deus nos toca de muitas maneiras para levar-nos a este estado de conversão. Nós só podemos preparar-nos para que Deus nos toque. Fora da conversão estamos fora do amor. Neste caso não se permite ao homem mais que duas possibilidades: a satisfação de si e a justiça própria, ou uma profunda insatisfação e a desesperação. Fora da conversão não podemos estar na presença do verdadeiro Deus, pois não estaríamos junto a Deus, senão junto a um de nossos numerosos ídolos. Ademais, sem Deus, não podemos permanecer na conversão, porque não é nunca fruto de boas resoluções ou do esforço. É o primeiro passo do amor, do Amor de Deus mais que do nosso. Converter-se é ceder ao domínio insistente de Deus, é abandonar-se ao primeiro sinal de amor que percebemos como procedente d’Ele. Abandono no sentido de capitulação. Se capitulamos ante Deus, nos entregamos a Ele. Todas nossas resistências se fundem ante o fogo consumidor de sua Palavra e ante seu olhar; não nos resta mais que a oração do profeta Jeremías: “Faz-nos voltar a ti Senhor, e voltaremos” (Lm 5,21;cf.Jr 31,18) (A. Louf, A merced de su gracia).

 

 

 

 

SEGUNDA-FEIRA, 25 de março de 2019 – 3ª SEMANA DA QUARESMA

Evangelho (Lc 1,26-38)

 

Contemplamos o mistério do Deus Todo-Poderoso, que cria todas as coisas com sua Palavra

Neste dia, a Igreja festeja solenemente o anúncio da Encarnação do Filho de Deus. O tema central desta grande festa é o Verbo Divino que assume nossa natureza humana, sujeitando-se ao tempo e espaço.

Hoje é o dia em que a eternidade entra no tempo ou, como afirmou o Papa São Leão Magno: “A humildade foi assumida pela majestade; a fraqueza, pela força; a mortalidade, pela eternidade.”

Com alegria contemplamos o mistério do Deus Todo-Poderoso, que na origem do mundo cria todas as coisas com sua Palavra, porém, desta vez escolhe depender da Palavra de um frágil ser humano, a Virgem Maria, para poder realizar a Encarnação do Filho Redentor:

“No sexto mês, o anjo Gabriel foi enviado por Deus a uma cidade da Galileia, chamada Nazaré, a uma virgem e disse-lhe: ‘Ave, cheia de graça, o Senhor é contigo.’ Não temas , Maria, conceberás e darás à luz um filho, e lhe porás o nome de Jesus. Maria perguntou ao anjo: ‘Como se fará isso, pois não conheço homem?’ Respondeu-lhe o anjo:’ O Espírito Santo descerá sobre ti. Então disse Maria: ‘Eis aqui a serva do Senhor. Faça-se em mim segundo a tu palavra’” (cf. Lc 1,26-38).

Sendo assim, hoje é o dia de proclamarmos: “E o Verbo se fez carne e habitou entre nós” (Jo 1,14a). E fazermos memória do início oficial da Redenção de TODOS, devido à plenitude dos tempos. É o momento histórico, em que o SIM do Filho ao Pai precedeu o da Mãe: “Então eu disse: Eis que venho (porque é de mim que está escrito no rolo do livro), venho, ó Deus, para fazer a tua vontade” (Hb 10,7). Mas não suprimiu o necessário SIM humano da Virgem Santíssima.

Cumprindo desta maneira a profecia de Isaías: “Por isso, o próprio Senhor vos dará um sinal: uma virgem conceberá e dará à luz um filho, e o chamará Deus Conosco” (Is 7,14). Por isso rezemos com toda a Igreja:

“Ó Deus, quisestes que vosso Verbo se fizesse homem no seio da Virgem Maria; dai-nos participar da divindade do nosso Redentor, que proclamamos verdadeiro Deus e verdadeiro homem. Por nosso Jesus Cristo, vosso Filho, na unidade do Espírito Santo”.

 

 

 

TERÇA-FEIRA, 26 de março de 2019 – 3ª SEMANA DA QUARESMA

Mateus 18,21-35 (Perdão das ofensas; Parábola do devedor implacável) Estamos na segunda parte do discurso eclesial, (Mt 18), dedicado especialmente ao perdão da ofensa pessoal. Pedro é o interlocutor de Jesus (v.21), que pensa distanciar-se do sombrio horizonte da vingança excessiva e sem limites (cf. vergonha de La­mec em Gn 4,23s), manifestando estar disposto a per­doar “até sete vezes”, número muito significativo de sua disponibilidade total ao perdão (v.21). Na res­posta de Jesus, se dilatam, até o infinito, os limites do perdão (v.22). É a nova mentalidade à qual está chamado o cristão. Por ser de difícil compreensão, Jesus vai ilustrar com uma pa­rábola (vv.23-34) estruturada em três cenas contra­postas e complementarias: o encontro do servo deve­dor com o seu senhor; o encontro do servo perdoado da dívida com outro servo devedor, por sua vez, do primeiro; e o no­vo encontro entre o primeiro servo e o seu senhor. Os discípulos deverão aprender a imitar ao Pai ce­lestial (v.35). A dívida do servo é enorme, as cifras são hiperbólicas, porém o senhor tem compaixão (v. 27: se utiliza o mesmo verbo para descrever os sentimentos de Jesus na morte do amigo Lázaro), manifestando sua grande magnanimidade com um perdão gratuito. Porém, este servo se encontra com um colega que lhe deve uma cifra irrisória (vv.28-30). Esperaríamos que, imediatamente, lhe perdoasse a pequena dívida, porém não acontece assim e sua reação é sem piedade. A graça recebida não transformou seu coração. Por isso – e passa­mos à última cena – é digno de julgamento e do castigo divino. A conclusão é clara: o perdão do homem ao seu irmão condiciona o perdão do Pai.

 

 

Dn 3, 25.34-43 (Cântico de Azarias na fornalha) A chave de leitura da oração de Azarias está na frase: “Mostra a glória de teu nome” (v.43; cf. pedido do Pai Nosso). Azarias, na prova da perseguição só teme que o nome de Deus perca sua glória, seu “peso”, seu poder. Nada mais lhe põe medo: nem o ser reduzido a um “resto”, nem a humilhação (v.37); nem sequer a profanação do templo e a sua helenização, com a conseguinte destituição dos chefes religiosos e abolição do culto oficial (v.38; 2 Mc 6,2). Estes fatos, ainda que dolorosos, não prejudicam Israel. O profeta os lê como uma purificação providencial: na prova, o povo manifesta um coração contrito e um espírito humilde, agradáveis ao Senhor, como verdadeiro sacrifício (vv.40s), que volta a dar glória a seu nome. Renasce a esperança (v.42).                 A fidelidade de Deus às promessas feitas aos patriarcas segue firme (vv.35s); a grandeza de sua misericórdia, ainda pode derramar a benevolência e a benção sobre o povo da aliança (v.42). Por isso, a súplica de Azarias se transforma em salmo penitencial (vv.26-45), em hino de louvor cantado em uníssono pelos três jovens, no forno (vv.52-90).

Salmo 24/25 (Súplica no perigo) Neste Salmo contemplamos o anseio pela conversão. Sempre que nos colocamos sinceramente diante de Deus, percebemos que temos muitas características que ainda devem ser mudadas. Estamos, constantemente, em processo de conversão, em busca de uma vida nova. A tranquilidade da consciência de uma vida santa nos libera da angústia e do peso da tristeza. Diariamente temos um caminho novo, atitudes novas. Conversão é libertação e liberdade.

Senhor, há momentos em que o meu coração se recorda do passado, dos meus pecados e erros, e então, o peso da angústia aumenta e me faz sofrer. Purifica a minha mente, o meu coração e todo o meu ser, para que eu possa experimentar o teu perdão e a tua misericórdia, vivenciando a alegria de tê-los. Amém.

 

 

MEDITATIO: Santo Ambrosio indica que Deus criou o homem para ter alguém a quem perdoar e revelar assim o rosto de seu amor desconcertante, que é disponibilidade ilimitada ao perdão, a qualquer preço, inclusive o mais elevado, como é o sangue de seu Filho. Porém, amor pede amor, e a misericórdia de Deus deseja inspirar a mesma disposição no homem, pecador perdoado, em relação a seus irmãos. De que nos serve ter experimentado a misericórdia divina se não permitimos que transpa­reça em nosso rosto, em nossa vida? Quem não acei­ta perdoar ao irmão mostra não reconhecer a gravidade do próprio pecado. O perdão de Deus seria vão se não permitimos que se plasme a sua imagem e semelhança, pois Ele é um Deus “piedoso e misericordioso, lento à ira e rico em amor”. Jamais poderemos pagar a enorme dívida de nossos pe­cados, de nossa cega ingratidão… Porém, Ele nos perdoa pedindo-nos fazer o mesmo: perdoar de coração “até setenta vezes sete” ao irmão. Será, na terra, o começo de uma grande festa que culminará no céu: festa da reconciliação, glória dos filhos que Deus, adquiridos ao preço do sangue do filho, no Espí­rito derramado para o perdão dos pecados.

 

ORATIO: Tu nos chamaste gratuitamente à vida e queres que a gastemos por ti e pelos irmãos, em plena doação. Só assim podemos ser felizes. Mas, longe estamos de participar nesta estranha lógica, na qual o que mais ama parece perder e se torna grande quando nos fazemos pequenos. Faz-nos recordar teu amor, que não duvidou em dar­ o que tinha de mais precioso, teu amado Filho, mesmo sendo, nós, servos sem piedade: capazes de receber tudo e acolher o perdão, mas, sem estar dispostos a fazer o mesmo com nossos devedores. Abre-nos os olhos, para que saibamos reconhecer, no ordi­nário de cada dia, as mil ocasiões que se apresentam de verter nos irmãos uma medida de amor “recheada, transbordante”: a mesma que tu vertes em nós cada vez que toca fundo em nossa pobreza.

 

CONTEMPLATIO: Ao pregar as bem-aventuranças, o Senhor antepôs os misericordiosos aos puros de coração.   É que os misericordiosos descobrem, em seguida, a verdade em seus próximos. Projetam para eles seus afetos e se adaptam de tal modo que sentem como próprios os bens e males dos demais. Somente o coração puro compreende a verdade pura e, ninguém sente tão vivamente a miséria do irmão, como o coração que assume sua própria misé­ria. Para que sintas teu próprio coração na miséria de teu irmão, necessita conhecer primeiro tua própria miséria. Deste modo poderás viver em ti os seus problemas, e se des­pertarão iniciativas de ajuda fraterna. Este foi o pro­grama de ação de nosso Senhor e Salvador: quis sofrer para saber compadecer-se, se fez miserável para aprender a ter misericórdia. Por isso está escrito dele: “Apren­deu por seus padecimentos a obediência” (Hb 5, 8) (Ber­nardo de Claraval).

 

AÇÃO: Repete com frequência e vive hoje a Palavra:

“Tu és, Senhor, bom e indulgente” (Sl 85,5)

PARA A LEITURA ESPIRITUAL O que conta é suportar o outro em todas as facetas de seu caráter, inclusive as difíceis e desagradáveis, e calar seus erros e pecados, também os que cometeu contra nós; aceitar e amar sem cansar-se: tudo isto aproxima ao perdão. Quem adota uma postura similar nas relações com os outros, com seu pai, seu amigo, sua mulher, seu marido, também nas relações com estranhos, com todos os que encontram, sabe bem o difícil que é. Às vezes se sente impulsionado a dizer: “Não, já não posso mais, não consigo suportá-lo; estou no limite de minha paciência; isto não pode seguir assim: “Senhor, quantas vezes deverei perdoar meu irmão se peca contra mim? Quanto tempo terei que suportar sua dureza contra mim, que me ofenda e fira suas faltas de atenção e delicadeza; que continue fazendo-me mal? Senhor, quantas vezes? Isto deverá acabar; alguma vez teremos que chamar ao erro por seu nome; não, não é possível que sempre se pisoteie meu direito. Até sete vezes?” […]. É um verdadeiro tormento perguntar-me: Como me arranjarei com este individuo, como poderei suportá-lo? Onde começa meu direito em minhas relações com ele? Ai está: façamos como Pedro, vamos a Jesus, vamos para fazer-lhe sempre essa pergunta. Se vamos ao outro ou perguntamos a nós mesmos, é perigoso, a ajuda recebida será fatal. Jesus, sim, nos pode ajudar: “Não te digo até sete vezes, responde a Pedro, mas até setenta vezes sete”; e sabe muito bem que é a única maneira de ajudar-lhe (D. Bonhoeffer, Memoria e fedeltà, Magnano).

 

 

 

 

QUARTA-FEIRA, 27 de março de 2019 – 3ª SEMANA DA QUARESMA

Mateus 5,17-19 (O cumprimento da lei) A pessoa e os ensinamentos de Jesus desconcertam seus contemporâneos: de fato, um e outro constituem uma novidade radical. A passagem de hoje nos deixa entrever a interrogação que suscitavam e, à sua vez, reflete a deli­cada situação das primeiras gerações cristãs em suas relações com o judaísmo. O Evangelho segundo Mateus, destinado em primeiro lu­gar a uma comunidade judeu-cristã, apresenta Jesus como o novo Moisés que promulga no monte a nova Lei: as bem-aventuranças. Porém, não por isso ficam abolidas a Lei e os profetas; mas, chegam a sua plenitude em Cristo. O mesmo Jesus manifesta um grande apreço à Torá, que ao longo dos séculos prepara a Israel para – uma vida de comunhão com Deus. Esta comunhão nos concede agora, por graça, em plenitude: em Jesus Deus se faz Emanuel, Deus-conosco. Os antigos preceitos em sua plenitude, em Cristo, permanecerão como norma perene. Jesus o afirma com suma auto­ridade, como evidencia o texto grego onde aparece a palavra original: “Amém” (v.18), frequente na boca de Jesus e depois do resto do Novo Testamento e da Igreja primitiva. Nem sequer os minúsculos sinais da Lei, isto é, os preceitos secundários, serão anu­lados, e de sua observância, ou não, dependerá a sorte definitiva de cada um. De fato, por lógica, e de acordo com o estilo oriental, ser considerado mínimo no Reino dos Céus significa ser excluído, como parece no v.20.

 

 

Dt 4,1.5-9 (A infidelidade de fegor e a verdadeira sabedoria) Nos três primeiros capítulos do Deuteronômio, Moisés fala a Israel, recordando-lhe a história, para sublinhar a fidelidade de Deus com seu povo. No cap. 4 vemos as consequências: pede-se ao povo uma resposta que manifeste absoluta fidelidade a Deus, que se traduza na prática das leis e normas que, por ordem do Senhor, ensinou Moisés, de acordo com o que ele mes­mo aprendeu. Estas não constituem só uma condição para entrar na posse da terra (v.1), mas também e, sobretudo, uma tarefa concreta a cumprir, uma “vocação” (v.56): pois, de fato, um estilo de vida inspirado em palavras ordenanças, fará de Israel objeto de estima e admiração de outros povos, que apreciarão a sabedoria superior, e poderão reconhecer a proximidade extraor­dinária de seu Deus. Israel se converterá assim, em meio às nações, em testemunho do Deus vivo e verdadeiro, que ama ao homem e se faz presente quando se invo­ca seu nome revelado a Moisés (v.7). Portanto, a lealdade a Deus se manifesta em uma série de ações expressas nos mandamentos. Não devemos enten­der os mandamentos como simples proibições, mas como resposta de amor. E como se baseiam em anteriores benefícios de Deus, para poder praticá-los livremente é indispensável recordar a história de salvação: trazer à memória as obras do Senhor ajuda o povo a crescer em gratidão a Deus e na observância de suas leis, de geração em geração (v.3).

 

Sl 147/147B (Hino ao Onipotente) Como introdução a este Salmo quero convidar todos à leitura do Evangelho de Lucas: “Então, Jesus disse a seus discípulos: ‘Por isso, eu vos digo: não vivas preocupados com o que comer, quanto à vida; nem com o que vestir, quanto ao corpo. A vida é mais que o alimento, e o corpo, mais do que a roupa. Olhai os corvos: não semeiam nem colhem, não têm celeiro nem despensa. No entanto, Deus os sustenta. Será que vós não valeis mais do que os pássaros? Quem dentre vós pode, com sua preocupação, acrescentar um só dia à duração e sua vida? Se não está em seu poder fazer a mesma coisa, como então vos preocupar com o resto? Olhai como crescem os lírios. Não trabalham, nem fiam. No entanto, eu vos digo: nem Salamão, em toda a sua glória, jamais se vestiu como um só dentre eles. Ora, se Deus veste assim a erva do campo, que hoje existe e amanhã é lançada ao forno, quanto mais não fará convosco, gente de pouca fé. Também vós, não fiqueis ansiosos com o que comer ou beber. Não vos inquieteis! Os pagãos deste mundo é que vivem procurando todas essas coisas, mas o vosso Pai sabe que delas precisais. Buscai, pois, o seu Reino, e essas coisas vos serão dadas por acréscimo’” (12,22-31). Só quando procuramos a paz e a justiça do Reino temos a certeza de que nunca nos faltará nada.

Senhor, tua Palavra é eficaz, corre veloz sobre a terra e atinge todos os seres, toda a criação. Ciência e fé devem caminhar juntas. Nunca entrarão em conflito porque quem cria as leis da ciência não é o ser humano, mas Deus. Ao ser humano é dada a alegria de descobri-las, mas elas já estão escondidas como segredo do Pai desde a eternidade. Não é lícito violentá-las ou modificá-las e colocá-las contra o ser humano ou contra Deus. Louvo-te, ó Senhor, por todos os cientistas sérios que colocam sua ciência a serviço da verdade. Que nunca a ciência seja arma de morte, mas sempre de vida. Que todas as enfermidades sejam curadas, e não provocadas. Que tudo concorra para o bem do ser humano. Que o universo não seja provocado contra o mesmo ser humano a quem deve servir e ser servido. Amém.

 

MEDITATIO: O homem se caracteriza pelo desejo infinito de vida e felicidade, sede nunca plenamente aplacada e que o con­verte em um incansável buscador de Deus. E, sem dúvida, hoje, talvez mais que nunca, nós enfrentamos um novo fenômeno: o de uma humanidade cansada e into­lerante. Os caminhos antigos – os velhos? – não satisfazem; os novos aparecem, com muita frequência, como autênticos becos sem saída e suscitam descrença ou desespero. As leituras da presente liturgia tornam a nos levar a um caminho concreto, “reto”; quer dizer, que leva di­retamente a seu fim. Primeiro: seu ponto de partida é a escuta da Palavra e exige humildade e obediência; segundo: o passo a seguir consiste em levar à prática a Palavra a cada dia; e terceiro: a meta é o encontro com a Palavra – Jesus – e, por con­seguinte, a felicidade, a bem-aventurança. O caminho pode parecer exigente, porém, para quem caminha, se converte em estímulo para dilatar o coração. Não se trata tanto de praticar com rigor os precei­tos, mas de seguir a uma pessoa, passo a passo: Jesus. A palavra lei pode parecer hoje sinônimo de escravidão, legalismo, algo frio ou a hipocrisia. Pelo contrário, há algo mais estupendo que o verdadeiro amor, que sempre busca e encontra novos modos de dar-se? Esta fidelidade absoluta ao ensinamento do Senhor pode fazer, radicalmente, nova nossa vida, inclusive aos olhos dos demais. A fidelidade a manda­tos antigos nos fará testemunhos da perene novidade: Jesus, o Senhor, está conosco, e n’Ele encontramos plenitude de gozo até no cotidiano trabalho da existência.

 

ORATIO: Senhor, em tua grande bondade, Tu nos tem mostrado o cami­nho a seguir, para chegar à meta da eterna comunhão contigo. Com frequência, temos preferido escutar outras vozes diferentes da tua, temos aderido a nor­mas de acordo com nossos gostos, temos queri­do abrir atalhos alternativos para encontrar uma felicidade ilusória. Perdoa-nos, Senhor! Ajuda-nos a voltar a iniciar, a começar partindo da escuta humilde e fiel de tua Palavra, de caminhar dócil e generosamente por teus mandamentos: estes são os passos – pequenos, porém se­guros – que nos conduzirão a um amor grande, contigo e com os irmãos; são passos humildes que nos podem fazer “grandes” em teu Reino.

CONTEMPLATIO: Ouve, filho meu, minhas palavras suavíssimas, que excedem toda ciência dos filósofos e letrados deste mundo. “Minhas palavras são espírito e vida” (Jo 6,63) e não se po­dem ponderar pelo sentido humano. Não se devem trazer ao sabor do paladar, mas que se devem ouvir com silêncio e receber com humildade e grande afeto. Disse: “Feliz o homem a quem tu educas, Senhor, aquele a quem instruis com tua lei” (Sl 93,12s). Eu, disse o Senhor, ensinei aos profetas desde o princípio, e não cesso de falar, a todos, até agora; porém, muitos são duros e surdos à minha voz. Muitos ouvem, de melhor grado, ao mundo, que a Deus; seguem mais facilmente o apetite de sua carne que o beneplácito divino. O mundo pro­mete coisas temporais e pequenas, mas, ainda assim, lhe servem com grande ânsia. E eu? Prometo coisas grandes e eternas, contudo, entorpecem-se os corações dos mortais. Eu darei o que tenho prometido. Eu cumprirei o que tenho dito, se alguém perseverar fiel em meu amor até o fim […]. Escreve tu minhas palavras em teu coração e considera-as com grande diligência, pois no tempo da tentação as farás necessário. O que não entendes quando lês, conhecerás no dia que te visite (Imitação de Cristo, lU, 3).

 

AÇÃO: Repete com frequência e vive hoje a Palavra:

“Inclino meu coração a cumprir tuas leis, minha recompensa será eterna(Sl 118,112)

 

PARA A LEITURA ESPIRITUAL – Quando aqueles a quem amamos nos pedem algo, lhes damos graças por pedir-nos. Se Tu desejasse, Senhor, pedir-nos uma única coisa em toda nossa vida, nos deixarias pasmos, e o ter cumprido uma só vez tua vontade seria o grande acontecimento de nosso destino. Porém, como cada dia, cada hora, cada minuto, põe em nossas mãos tal honra, o achamos tão natural que ficamos enfastiados, que estamos cansados… E, sem dúvida, se entendêssemos que inescrutável é teu mistério, ficaríamos estupefatos ao poder conhecer essas faíscas de tua vontade que são nossos minúsculos deveres. Deslumbraría-nos conhecer, nesta imensa treva que nos cobre, as inumeráveis, precisas e pessoais luzes de teus desejos. O dia que o entendêssemos, iríamos pela vida como uma espécie de profetas, como videntes de tuas pequenas providências, como agentes de tuas intervenções. Nada seria medíocre, pois tudo seria desejado por ti. Nada seria angustiante, pois tudo teria sua raiz em ti. Nada seria triste, pois tudo seria querido por ti. Nada seria tedioso, pois tudo seria amor por ti. Todos nós estamos predestinados ao êxtase, todos nós estamos chamados a sair de nossas pobres maquinações para ressurgir, hora após hora, em teu projeto. Nunca somos pobres rejeitados, mas chamados bem-aventurados; chamados a saber o que te agrada fazer, chamados a saber o que esperas de nós a cada instante: pessoas que necessitas um pouco, pessoas cujos gestos seriam de menos se nos negássemos a fazê-los. O novelo de algodão para costurar, a carta a escrever, a criança que é preciso levantar, o marido que tem que alegrar, a porta a abrir, o telefone que tem que atender, a dor de cabeça que tem que suportar…: outros tantos trampolins para o êxtase, outras tantas pontes para passar de nossa pobre e má vontade ao sereno arroio de teu desejo (M. Delbrêl, La alagria de creer, Santander).

 

 

 

 

 

 

QUINTA-FEIRA, 28 de março de 2019 – 3ª SEMANA DA QUARESMA

Lucas 11,14-23 (Jesus e beelzebu) Jesus acaba de ensinar aos seus o Pai nosso (vv.2-4); dá-lhes a oração por excelência, que abre o coração à vinda do Espírito Santo (v.13). O Reino dos Céus já está na terra. Acontece um momento de cura. O povo simples se admira: percebe que algo extraordinário está acontecendo e se dispõe a acolher a sal­vação. Porém, nem todos pensam o mesmo (vv.14s). Como na primeira leitura, se dá uma oposição en­tre duas atitudes inconciliáveis. Surge forte tensão (vv.14-15) entre os fariseus e Jesus, a quem acusam de blasfêmia e de aliar-se com Satanás. É o desti­no de todo profeta. Jesus responde com um discurso apo­logético. A imagem forte da catástrofe (v.17) leva o ouvinte a excluir, que Satanás possa lutar contra si mes­mo. A conclusão se impõe: está atuando “o poder de Deus”, expressão que recorda os prodígios executados por meio de Moisés no tempo do Êxodo. O mesmo que depois do ensinamento sobre a oração, aparece essencial: “O Reino de Deus chegou a vós”, Jesus, expulsando os demônios, abre nova época, época de liberdade da escravidão, de acolher livremente a Boa Notícia que anuncia (v.23).

 

 

Jr 7,23-28 (O culto sem fidelidade) Na dura condenação do culto convertido em ato vazio (Jr 7,1-8,3), o profeta denuncia, sobretudo, a surdez de Israel à voz de Deus (v.23), ouvida extraordinariamente no Sinai, no momento da aliança (cf. Ex 20,1-21). Somente na escuta obediente, de fato, o primeiro mandamento inicia com “Escuta, Israel”, o povo eleito poderá conhecer seu Deus, distinto de outra divindade ou ídolo. Os verdadeiros profetas não cessam de exortar, mas, jun­to está a escuta mais fácil e cômoda: a dos fal­sos profetas. A eleição é radical: é caso de vida ou morte O texto está dividido em três partes; as duas primeiras têm uma idêntica estrutura: ao mandato de Deus “Escutai” (v.23) e sua urgente solicitude “Enviei” (v.25), correspondem as claras rejeições: “Porém não escutaram” (vv.24.26). Não aparece nem som­bra de arrependimento, nenhum desejo de conversão. Só fica uma conclusão, terceira parte: enquanto o povo torna a cair, obstinadamente, na idolatria e, espiritualmente, volta a ser escravo do Egito, longe de Deus (vv.24-27; Nm 11,4-6), o profeta não deixa de ser fiel a sua vocação: enviado a desmascarar esta situação (v.27), compartilha com Deus o sofrimento de ser rejeitado, inclusive de ser tachado de impostor pelos que preferem a mentira à verdade.

 

Sl 94/95 (Invictatório) Esta é uma oração de louvor à grandeza de Deus, que sempre surpreende os que o procuram. O mais belo do Senhor é que Ele nos ama, mesmo quando decidimos não amá-lo e não permitir que Ele nos ame. Este Salmo muda às vezes de direção; passa do louvor a advertência, chamando a atenção de todos que fecham os corações ao amor de Deus, como o povo em Meriba. Esta lembrança histórica nos alerta e não nos permite fechar os olhos à presença do Senhor. Cada vez nos tornamos surdos à Palavra do Senhor e cegos à sua mensagem. Que saibamos resgatar a sensibilidade do coração e da fé.

Senhor, continua a chamar-nos a atenção, a repreender-nos sem medo e a fazer com que nós, em determinados momentos da vida, experimentemos o peso de tua mão direita. Temos consciência de que Tu nos amas, e se nos repreendes, é por puro amor, para que diante da dor, saibamos reconhecer a tua presença e te responder com nosso sim. Fechar a inteligência e o coração é caminhar rumo ao abismo que impossibilita a salvação e a vida. Senhor, quero ser dócil à tua graça, ao teu amor. Sei que somos um povo de coração transviado, sem caminho ou andarilhos de caminhos errados, mas sabemos que com teu amor podemos reencontrar-te como caminho, verdade, vida. Amém.

 

 

 

MEDITATIO: Se, instintivamente, sentimos a necessidade de valorizar pessoas e acontecimentos, vendo-o com nossos pró­prios olhos, a Palavra que se nos atualiza hoje nos pro­porciona matéria abundante: para saber ver de verdade, é indispensável aprender antes a escutar. Escutar o que? A voz do que criou tudo com sua Palavra amorosa e tem tudo em sua mão. Mas há um inimigo ciumento da felicidade do homem, sempre a espreita para impedir-lhe escutar a voz do Senhor e deixar-se con­duzir por sua mão. O mentiroso sugere pensamentos falsos, infunde dúvidas e suspeitas. E se o homem não guarda em seu co­ração a Palavra de Deus, lâmpada de seus passos, se não a medita, dia e noite, não estará em disposição de discer­nir retamente, com risco de extraviar-se e até de cair totalmente sob o domínio de falsas doutrinas. Pode acontecer, também, em tantas questões, que não nos sintamos em sintonia com o Evangelho, que nos pareça duro, defasado, incapaz de pôr-se ao dia… Deste modo, imperceptivelmente, em muitas oca­siões, aparentemente secundárias, deslizamos para um paganismo talvez, não de calibre maior, porém, pa­ganismo ao fim: Aos poucos se perderá o gosto pela Palavra: não só não parecerá doce ao paladar, mas até chegaremos a perder a necessidade dela e, inclusive, pode chegar a incomodar-nos se alguém nos recorda.

 

ORATIO: Pai, que tua voz ressoe sempre em nosso coração. Não deixes que outras vozes a apaguem. Volta a sussurrar-nos o muito que nos queres. Aparta-nos dessas sugestões sutis, das mensagens persuasivas do antigo inimigo astuto, ciumento de nossa amizade con­tigo. Sabes bem, que o orgulho e o medo, frequentemente, nos espreitam e nos paralisam, frente à dor ou à prova. Com o pretexto de sofrer menos, estamos dispostos a vender a pele ao diabo. Perdoa, Senhor, nossa arrogância e au­dácia com que nos erguemos presumidos frente a teu Filho e frente a ti, quando nos falas de cruz, de caminho estreito, de escuta, obediência, sacrifício… Compadece-te de nossa fragilidade, olha nossa boa vontade, acrescenta em nós os desejos de verdade e bondade. Se te ofendemos, não nos tomes a sério; se te compreendemos mal, ajuda-nos a retificar; se te damos as costas, segue buscando-nos.

 

CONTEMPLATIO: Certamente, o fruto da Sagrada Escritura não é qualquer um, mas a plenitude da bem-aventurança eterna. As palavras desta Escritura são palavras de vida eterna. A esta plenitude se esforça em introduzir-nos a divina Escritura: com este fim e com esta intenção deverá ser, a Sagrada Escritura, perscrutada e ensinada e, também, escutada. Para que cheguemos a este fruto, andando diretamente pelo reto caminho das Es­crituras, temos de começar pelo início, a saber, por aproximar-nos, com fé, do Pai das luzes, dobrando os joelhos de nosso coração, a fim de que Ele, por seu Filho, no Espírito Santo, nos dê o verdadeiro conhecimento de Jesus Cristo e, com o conhecimento, seu amor. Só assim, conhecendo-o e amando-o, e, consolidados na fé e na caridade, poderemos compreender a amplitude, longitude, a altura e a profundidade da Sagrada Escritura.     E chegar, por este conhecimento, ao co­nhecimento perfeito e amor estático da Trindade, aonde tendem os desejos dos santos e on­de se fala o termo e a plenitude de todo o verdadeiro e bom. (São Boaventura)

 

AÇÃO: Repete com frequência e vive hoje a Palavra:

“Senhor; a quem iremos? Tu tens palavras de vida eterna” (Jo 6,68)

 

PARA A LEITURA ESPIRITUAL Calar-se não significa estar mudo, como tampouco falar equivale à loquacidade.         O mutismo não cria solidão, como tampouco a loquacidade cria comunhão.(…). Do mesmo modo que existem na jornada do cristão determinadas horas para a Palavra, especialmente as horas de meditação e de oração em comum, devem existir também certos momentos de silêncio a partir da Palavra. Serão, sobretudo, os momentos que precedem e seguem à escuta da Palavra. Esta não se manifesta a pessoas charlatãs, mas no recolhimento e no silêncio. Calemos antes de escutar a Palavra, para que nossos pensamentos se dirijam à Palavra, igual à criança que cala quando entra na habitação de seu Pai. Calemos depois de ter ouvido a Palavra, porque ainda ressoa, vive e quer permanecer em nós. Calemos ao iniciar o dia, pois é Deus quem deve dizer a primeira palavra; calemos ao cair à noite, pois a Deus corresponde a última palavra. Calemos somente por amor à Palavra. Calar não significa outra coisa que estar atentos à Palavra de Deus para poder caminhar com sua benção (D. Bonhoeffer, Vida en Comunidade).

 

 

 

SEXTA-FEIRA, 29 de março de 2019 – 3ª SEMANA DA QUARESMA

Marcos 12,28-34 (O primeiro mandamento) A pergunta do escriba nos conduz a uma discussão de atualidade nas escolas rabínicas daquele tempo. Na Lei se enumeram 248 mandatos e 365 proibições, agrupados em diversas categorias. A questão se expõe a Jesus: Antigo e Novo Testamen­to encontram-se frente a frente. Talvez apareça o in­tento de estender uma armadilha ao jovem rabi. Ele resolve a dificuldade indo diretamente ao essencial. De fato a resposta de Jesus não é desconhecida: cita o Shema Israel (“Escuta, Israel”), de Dt 6,4s, que todo israelita repetia, na oração, três vezes ao dia. A este primeiro mandamento, Jesus associa – o verbo grego que indica uma relação de forte e recíproca interdependência – um segundo, tirado, também, da Sagrada Escritura (Lv 19,18). Nesta união está a originalidade da resposta de Jesus ao escriba, que reconhece a ver­dadeira síntese da Lei e do culto; mais ainda: o amor vale mais que todos os holocaustos e sacrifícios. Jesus elogia o escriba, e em sua resposta aparece explícito outro elemento novo: a proximidade/presença do Reino de Deus, cuja lei é o amor e, por conseguinte, a liberdade.

 

 

 

Oseias 14,2-10 (Retorno sincero de Israel a Iahweh) Neste texto, estruturado como uma liturgia penitencial, Oséias convida o povo a “voltar”, quer dizer, a converter-se ao Senhor reconhecendo o próprio pecado como causa das desgraças atuais. É necessária uma confissão lúcida e sincera da culpa; o próprio profeta sugere palavras para expressá-la e o modo de apresen­tá-la, acompanhada não com vítimas de sacrifício, mas com uma vida purificada e oferenda de louvor (v.3). Além do mais, é necessária uma decidida renúncia ao mal, a compromissos e diversas opções idolátricas. Livre de todo apoio humano, o povo se encontrará, aparentemente, pobre, será, então, quando Deus em pessoa cuidará dele. A conversão do povo corresponde a “conver­são” de Deus: deporá sua ira e com a força de seu amor curará o mal de Israel, perdoará sua infidelidade. Os efeitos benéficos deste amor se evocam com ima­gens magníficas que recordam o Cântico dos Cânticos, em uma refrescante descrição de vida nova (cf. a imagem de Deus como orvalho). Estas promessas chegam ao cume no v.9: Deus será para o povo libertado dos ídolos “cipreste frondoso”. O epílogo do redator da corte sapiencial indica que é necessário o discernimento para compreender o texto de Oséias, porque nele se manifestam os caminhos de Deus, e só caminha por eles quem proceda com retidão.

Sl 80/81 (Para a festa das Tendas) Este é um Salmo litúrgico cantado provavelmente em grandes festas. O povo se reunia e ouvia-o para lembrar as graças já recebidas de Deus e pedir perdão pelas tantas vezes que se fizeram surdos à voz do Senhor. Gosto de definir este cântico como “tristeza de Deus”, que vê o povo negando seu convite à conversão. Lembremo-nos das palavras de Jesus a Jerusalém: “Jerusalém, Jerusalém, que matas os profetas e apedrejas os que te foram enviados! Quantas vezes eu quis reunir teus filhos, como a galinha reúne seus pintainhos debaixo das asas, mas não quiseste!” (Lc 13,34). Antes de se participar das festas do Senhor, é preciso se purificar dos pecados e se arrepender deles, para então colocar as vestes alegres do perdão de Deus. Toda festa sagrada traz-nos uma mensagem de Deus: escutemos sua voz, nos voltemos para Ele, arrependidos e possamos, assim, começar uma vida nova. Hoje, faço um convite especial: interrompa os seus afazeres e escute a voz de Deus a lhe chamar. Responda a esse chamado, abandone o pecado e viva em plenitude de graça e amor.

Senhor, eu reconheço que sou “cabeça dura” e que muitas vezes sou surdo à tua Palavra. Há momentos em que prefiro viver no pecado, que me oferece satisfações imediatas, passageiras, inúteis, e tenho medo de abandonar os meus comodismos. Preferimos beber em todos os riachos que prometem felicidade a buscar a água viva que é felicidade para sempre. O meu coração se fecha ao teu amor. Bate forte à minha porta, Senhor, até que, molestado de tanto bater, eu te abra e te receba em minha casa. Rompe a minha cabeça para que possa compreender a tua delicadeza e o teu amor. Força a minha indecisão e preguiça para que eu decida me colocar no bom caminho. Necessito, Senhor, ser “repreendido” com força e com amor para que em mim aconteça uma verdadeira conversão. Que não seja uma máscara que anuncia o que vive, nem haja na minha vida divórcio entre fé e vida, mas que a minha felicidade seja consagrada pela tua felicidade. Senhor, que eu possa voltar a ti e nunca me afaste. Amém.

 

 

MEDITATIO: Um escriba pergunta a Jesus fazendo-se porta-voz de todos nós, que tratamos de entender melhor o que nos pede o Senhor. Trata-se de uma pergunta simples que, talvez, expomos, não por curiosidade, mas para obedecer. A resposta não é menos simples: Deus, que é amor, quer de nós amor, pois quer fazer-nos partícipes de sua vida. O que nos manda é, antes de tudo, dom inaudito, tesou­ro, fonte de todo bem. Hoje a Palavra nos assinala o horizonte ilimitado desta nova realidade e como temos que atuar para poder abarcá-lo em sua plenitude. A condição essencial é renunciar a qualquer forma de idolatria: “O Senhor nosso Deus é o único Senhor”. Porém, quantas vezes temos chamado “nosso Deus” às obras de nossas mãos, adorando nossas reali­zações de bens materiais, de carreira e posição so­cial, de êxito… E temos nos feito escravos de coisas efêmeras, transformando os irmãos em rivais, per­dendo a liberdade tão desejada. Desde o profundo deste abismo queremos voltar aos altos cumes. Porém, não será nosso esforço que o alcançará, senão nossa humildade, nossa pobreza: mendigos de amor e de paz, receberemos, gratuitamente, o dom, se acolhemos ao Amor superabundante que nos renova, dia após dia, rompendo as barreiras de nosso egoísmo, traspassando os estreitos horizontes de nossa capacidade de amar. Então, todo homem se converterá em “próximo”.

 

ORATIO: Ó Pai, Tu és puro dom, e de ti vem todo bem: acolhe nosso humilde e frágil desejo de entrar na re­gião bem-aventurada de teu amor. Não somos capazes de nada, porém tu quiseste derramar em nossos corações teu Santo Espírito; fonte de amor. Faz que acolhamos com generosidade um dom tão grande. Abre, de par em par, a capacidade de nosso coração para que deixemos que tu mesmo, feito amor em nós, chegue a todo irmão que encontremos no caminho. Sabe que todos nós, temos necessidade de experimentar um amor santo que, superando qualquer formalismo convencio­nal, todo cálculo, se manifeste, em gestos verdadeira­mente evangélicos, criativos, capazes de surpreender em beleza. Porém, quem semeou, em nós, esta aspiração tão nobre, senão tu mesmo? Dá-nos o que nos mandas, leva a plenitude o que começastes em nós.

 

CONTEMPLATIO – O amor não está submetido ao tempo, conserva sem­pre seu fogo. Alguns pensam que o Senhor tenha sofrido por amor aos homens e, como não encontram este amor em sua própria alma, lhes parece que isso aconteceu em um passado remoto. Porém, quando a alma conhece o amor divino pelo Espírito Santo, percebe com claridade que o Senhor é um Pai conosco, o mais real, o mais íntimo, o mais carinhoso, o melhor. E não existe maior felicidade que amar a Deus com todo o entendimento, com toda a alma, com todo o coração, e ao próximo como a nós mesmos, como nos tem mandado o Senhor. Quando este amor mora em nós, tudo dará gozo à alma. A graça vem do amor a nosso irmão, e é mediante o amor ao nosso irmão que se conserva. Porém, se não amamos a nosso irmão, o amor de Deus não virá a nossa alma. Se os homens observassem os mandamentos de Cristo, a terra seria um paraíso. Todos teriam o suficiente e o indispensável com pouco esforço. O Espírito divino viveria nas almas dos homens, pois Ele bus­ca, por si mesmo, a alma humana e deseja viver em nós; se não fixa sua morada em nós, isso só se deve ao orgulho de nosso espírito (Archimandrita Sofronio, San Silouan el Athonita).

 

AÇÃO: Repete com frequência e vive hoje a Palavra:

“Todo o que ama nasceu de Deus e conhece a Deus” (1 Jo 4,7)

 

PARA A LEITURA ESPIRITUAL O fluxo e o refluxo da caridade entre Deus e os homens, este amor que o cristão, solidário com toda a humanidade, recebe de Deus por todos e a todos remete a Deus, este amor e só isto é o que constitui a vitória de Cristo, a missão e o esforço de sua Igreja. Os dois polos deste amor são o amor filial a Deus e o amor fraterno ao próximo. O amor filial que anseia em cada momento o que a esperança espera; que crer ter todo o amor de Deus para amá-lo. O amor filial que deseja de Deus incessantemente o que incessantemente recebe dele, que o deseja como o respirar. O amor fraterno que ama a cada um em particular. Não a qualquer um de qualquer modo, mas a cada um como o Senhor o tem criado e redimido, a cada um como Cristo o ama. O amor fraterno que ama a cada um como próximo dado por Deus, prescindindo de nossos vínculos de parentescos, de povo, raça ou simples simpatia. Que reconhece a cada um seu direito acima de nós mesmos. Sabemos que devemos amar ao Senhor “com toda a alma” e “com todas as forças”. Porém esquecemos facilmente que devemos amar ao Senhor com todo o coração. Ao não recordá-lo, nosso coração fica vazio. Por isso, amamos aos demais com um amor bem mais tíbio. A bondade tende a ser para nós algo externo ao coração. Vemos o que pode ser útil ao próximo, tratando de atuar em consequência, porém não chega muito ao coração (M.Delbrêl, Las comunidades según El Evangelio).

 

 

SÁBADO, 30 de março de 2019 – 3ª SEMANA DA QUARESMA

Lucas 18,9-14 (O fariseu e o publicano) Estamos no contexto da subida de Jesus a Jerusalém, e a atenção se dirige às condições necessárias para entrar no Reino (cf. Lc 18,9-19,28). Aparecem dois personagens contrapostos, e ambos oram: Em seu modo de orar se revela seu modo de viver e suas relações com Deus e os demais. Ambos, na oração, dizem a verdade de sua existência. O fariseu trás à tona seus méritos: se tem por credor de Deus. No fundo, não necessita de Deus, ainda­ que lhe dê graças, ao menos formalmente, porque lhe tem concedido ser tão perfeito. Porém há mais. Sua justiça lhe faz juiz, e juiz sem piedade: tão cega é a estima que encontra em si mesmo, que quando olha os demais é só para desprezá-los (v.11). O publicano, ao contrá­rio, consciente de seus pecados, que lhe fazem ter a ca­beça inclinada, na realidade está aberto ao céu e espera de Deus tudo: golpeando o peito, chama à porta do Reino, e se lhe abre.

 

 

 

Os 6,1-6 (Conversão efêmera a Iahweh) O texto é um ato litúrgico penitencial (vv.1-3) que participa todo o povo. O ponto mais longínquo que move à conversão é o temor do dia do castigo messiânico, anunciado várias vezes (cf.5,9). O contexto próximo é, sem dúvida, o atual es­tado de guerra entre Israel e Judá. O buscar ajuda no inimigo mortal, Assíria, extirpou as regiões se­tentrionais do reino do Norte (732 a.C), com os inevitáveis horrores da ocupação, destruição e de­portação (cf.2Re 15,29;17,55). O profeta exorta e admoesta: tantas desgraças ocorreram pois o coração estava longe do Senhor, aplacado com sacrifícios vazios, pobre de amor. Com uma imagem frequente na Escritura (cf. Ex 15,26; Dt 32,29; Is 30,26; Ez 34,16), o povo re­conhece-se como enfermo (Os 5,13) e recorre a Deus como seu médico: Ele mesmo produziu a ferida, com vistas à emenda, e, só Ele, pode curá-la (v.1). Yahweh é Ele o Senhor da história. Mas o arrependimento do povo, além de interessado (v.3) é, também, efêmero (v.4). Deus sabe bem. E, sem dúvida, não se cansa de convidar à conversão: sua palavra é uma espada que, inexoravelmente, fere para curar (cf Is 49,2; Hb 4,12): pede amor, não holocaustos (v.6); confiança, não sim­ples observância de práticas cultuais hipócritas.

 

 

 

Salmo 50/51 (Miserere) Este Salmo é um capítulo do livro de nossa história. Todos nós, assim como aconteceu com Davi, passamos por três fases distintas em nossa vida, dominados por sentimentos contrários: bondade, pecado e conversão. A história de Davi é belíssima: quando jovem era puro e bom. Deus, então, pousou sobre ele o seu olhar, escolhendo-o como rei e profeta. Mas o pecado e o poder o depravaram e ele, seduzido pelo amor de Betsabeia, mandou matar Urias, o hitita, a fim de roubar-lhe a mulher. Deus suscitou o profeta Natã para abrir os olhos de Davi, mostrando o pecado que cometera. Arrependido, Davi se converte e escreve esse belo Salmo, cheio de emoção, esperança e confiança. Quando nos arrependemos de nossos erros, Deus nos lava, purifica e dá um coração novo e puro. Ele nos convida a cantar cantos de festa e de alegria. Este Salmo deve ser lido muitas vezes e considerado como um projeto de vida para todos nós. Ele ajudará a abrir o nosso coração à conversão, conscientizando-nos de nosso pecado, não por intermédio do desespero ou do medo, mas pela confiança de que nosso Deus é misericordioso. Em nosso coração, teremos a certeza de que Ele não quer sacrifícios inúteis, vazios, mas sim aqueles carregados de amor. Quando os laços do pecado nos agridem e tentam nos afastar da misericórdia do Senhor, devemos novamente meditar este Salmo. Assim, venceremos o medo e nos lançaremos na misericórdia do amor. Por que temer o amor de Deus? Por que temer confessar o nosso pecado? Por que a vergonha dos erros cometidos, se não podemos voltar atrás? A pedagogia do pecado é que nos ensina a pecar mais.

Senhor, confesso e reconheço que sou pecador. Minha natureza é maldosa e pecaminosa, por isso necessito de tua graça e do teu amor para superar o mal que está em mim. Sinto na minha carne as mesmas tentações que Davi sentia e as quais nem sempre resistiu. A tentação de querer ser maior que os outros, de buscar o poder como forma de autoafirmação e fazer do poder um meio nem sempre lícito para dominar e espezinhar os outros. O poder me corrompe e me permite acreditar que tenho regalias e que me é lícito fazer o que quero. A tentação da carne, da sensualidade e da sexualidade, nem sempre orientada, é forte e não é canalizada para fazer o bem, mas sim instrumento de prazer e de condescendência aos instintos que tentam dominar e me levar para longe do projeto de amor. A tentação me faz querer tudo: coisas e pessoas. No entanto, Senhor, percebo que dentro de mim há algo de bom, um desejo de infinito, uma luta para vencer o mal e a vontade para fazer o bem. Quero entrar no meu coração para escutar a tua Palavra, para me colocar aos teus pés na atitude de discípulo. Envia-me profetas corajosos como Natã, que me jogue na cara o meu pecado para que eu possa me converter. Todos nós necessitamos de conversão, do mais santo ao mais pecador, do grande ao menor. Senhor, é o que te peço, não afasta de mim o meu pecado para que, tendo-o na minha frente, evite outros pecados. E faz que ensine, com a minha experiência e as quedas, o caminho certo, e que outros não cometam os mesmos erros meus. Amém.

 

 

MEDITATIO: Conhecer a Deus e conhecer-se a si mesmo, ou melhor, conhecer-se a si mesmo em Deus: esse é o começo da sa­bedoria e da verdadeira vida. Todos os santos tem experimentado. De fato, que é o homem sem Deus? Um soberbo destinado à escura solidão, rodeado de rivais ou de seres julgados indignos; em resu­midas contas, um desesperado pilar no cepo de seu egoísmo, de seu pecado. Que é o homem com Deus? Segue sendo um orgulhoso, um pecador. Porém, sabe que a experiência do pecado pode conver­ter-se em um lugar no qual Deus, o Misericordioso, re­vela seu rosto. Vemos, pois, o importante que é deixar cair às máscaras com as quais pretendemos ocultar-nos, sobretudo a nós mesmos, a pobreza de nosso ser, a mes­quinhez de nosso coração, a dureza de nossos julgamentos. Só pode curar-se se, se reconhece enfermo, necessitado de salvação. Deus espera este momento, in­clusive até o provoca sabiamente com sua pedagogia inconfundível. Todos somos sempre um pouco “fariseus”, porém, Deus oferta a todos poder fazer a experiência do publicano da parábola, lograr uma autêntica hu­mildade, a quem reconhece que Deus é maior que nosso coração e que sempre perdoa.

 

ORATIO: Ó Deus, o universo in­teiro é lugar de tua presença, morada de teu santo nome. Em ti, sob teu olhar, nos vivemos, nos movemos e existimos. Todas nossas palavras e ações são oração que sobe a tua presença. A verdade de nós mesmos está patente a teus olhos. O temor nos assalta porque sabemos que nosso coração não é puro, que nossa vida não é santa, e tratamos de ocultar-nos e de desprezar os demais para justificar a nós mesmos; pensamos adornar-nos com tantas obras que são pura aparência. Tratamos, em vão, de buscar uma segurança. Não podemos calar uma voz que do mais profundo de nós mesmos nos grita: “Por que atuas assim? Que tratas de buscar com o que fazes?”. É tua voz, ó Senhor, que, silenciosamente, vai criando em nosso interior um grande vazio: deste abismo brota, desesperadamen­te, o único grito verdadeiro: “Tem piedade de mim, que sou um pobre pecador”. O orgulho me mata…, humildemente, te busco, ó Senhor.

CONTEMPLATIO Me perguntais […] se uma alma pode auxiliar a Deus confiadamente, conhecendo sua própria miséria. Respon­do que a alma conhecedora de sua própria miséria não só pode ter uma grande confiança em Deus, mas que lhe será impossível alcançar a verdadeira confiança se carece do conhecimento de sua própria miséria; porque o conhecimento e a confissão desta miséria nos in­troduzem na presença de Deus. Por isso os grandes santos, como Jó, Davi e outros, começavam sempre suas orações confessando a própria miséria e indigni­dade; é, portanto coisa excelente reconhecer-se pobre, vil, baixo e indigno de comparecer ante a divina sentença. O célebre ditado dos antigos: “Conhece-te a ti mes­mo”, geralmente se interpreta assim: “Conhece a grandeza e ex­celência de tua alma para não empobrecê-la, nem profaná-la com coisas indignas de sua nobreza”. Porém, se interpreta, também, desta outra maneira: “Conhece-te a ti mesmo, quer dizer, tua indignidade, tua imperfeição, tua miséria”. Quanto mais miseráveis somos, tanto mais devemos confiar na bondade e misericórdia de Deus; porque entre a misericórdia e a miséria existe um parentesco tão grande que uma não se pode exercitar sem a outra. Se Deus não tivesse criado os homens, seria, certamente, bondoso, porém, não misericordioso, visto que não teria podido exercitar sua misericórdia com ninguém, já que a misericórdia se pratica com os mi­seráveis (Francisco de Sales).

 

AÇÃO: Repete com frequência e vive hoje a Palavra:

“Conheces até o fundo de minha alma” (Sl 138,14)

 

PARA A LEITURA ESPIRITUAL Da ascese de pobreza surge cada dia um homem novo, todo paz, benevolência e doçura. Fica para sempre marcado pelo arrependimento, porém um arrependimento cheio de alegria e de amor que aflora por todas as partes e sempre e permanece em segundo plano de sua busca de Deus. Este homem tem alcançado já uma paz profunda, pois foi quebrantado e reedificado em todo seu ser por pura graça. Apenas se reconhece.             É diferente. No mesmo instante em que tocou o abismo profundo do pecado, foi precipitado ao abismo da misericórdia. Aprendeu a entregar as armas ante Deus, a não defender-se ante Ele. Está despojado e sem defesa. Há renunciado à justiça pessoal e não tem projetos de santidade. Suas mãos estão vazias ou só conservam sua miséria, que se atreve a expor ante a misericórdia. Deus se há feito verdadeiramente Deus para ele, e nada mais que Deus. Isso é o que quer dizer Salvador, salvador do pecado. Inclusive estar quase reconciliado com seu pecado, como Deus se há reconciliado com ele. Para seus irmãos e próximos há se convertido em um amigo benevolente e doce que compreende suas debilidades. Já não tem confiança em si mesmo, mas só em Deus. É o primeiro pecador – assim o pensa -, porém pecador perdoado. Por isso deve abrir-se, como a um igual e a um irmão, a todos os pecadores do mundo. Se sente próximo a eles porque não se crer melhor que os demais. Sua oração preferida é a do publicado, que parece a sua respiração e ao latir do coração do mundo, seu desejo mais profundo de salvação e cura: “Senhor Jesus, tem piedade de mim, pobre pecador” (A. Lou

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