A Bênção da Igreja e a idade de ouro do franciscanismo

Capitulo 03  

A BENÇÃO DA IGREJA E A IDADE DE OURO DO FRANCISCANISMO

Francisco sempre foi um filho obediente da Igreja, nada poderia fazer sem sua aprovação. O próprio Deus tinha lhe revelado aquele estilo de vida, mas era necessário que o representante de Jesus aqui na terra a confirmasse.

           

            Quando a pequena Regra ficou pronta, Francisco reuniu seus doze irmãos e seguiram para Roma. Os irmãos pareciam crianças felizes e Francisco, vendo-os assim ficava tranqüilo, mas em todas as paradas falava-lhes de esperança e de consolação, pois pressentia que em Roma passariam por fortes provações.

            Freqüentemente paravam nos bosques solitários que encontravam pelo caminho, e consagravam horas ou dias inteiros ao Senhor.

            Sempre tiveram grande amor pela Eucaristia, por isso sempre que viam a torre de alguma igreja, lembravam-se que lá estava o Corpo Eucarístico do Amado, e não importava onde estavam, ajoelhavam-se e devotadamente rezavam o “Adoramos”, assim intitulado por Francisco. A oração era a seguinte:

“Nós vos adoramos,

Senhor Jesus Cristo,

            aqui e em todas as tuas igrejas

            espalhadas pelo mundo inteiro,

            e vos bendizemos porque,

            pela vossa Santa Cruz,

            redimiste o mundo.”

“IGREJA MINHA, MINHA IGREJA,

POR PIOR QUE SEJAS, CONTINUAS

SEMPRE A MINHA IGREJA”

            Enfim chegaram à Roma. A maioria deles nunca tinham estado naquela cidade e ficaram surpresos diante de tanto poder.

            Atravessaram a cidade no meio de olhares curiosos de todos e foram para a Basílica onde estava  o Santo Sepulcro dos Apóstolos. As sair de lá, procuraram informar-se onde vivia o Santo Padre, e lhes indicaram o Palácio de Latrão.

            Quando lá chegaram Francisco disse: “Fiquem aqui, meus irmãos. Supliquem ao Senhor que se digne inclinar o coração e a mente do Santo Padre para que ponha seu selo em nosso Pequena Regra”.

            O Irmão entrou no Palácio e começou a procurar a sala do Santo Padre, e de repente num dos corredores encontrou-se de improviso com o Papa Inocêncio III. No mesmo instante, Francisco lançou-se aos pés do Papa e começou a falar depressa: “Bom dia, Santíssimo Padre. Eu me chamo Francisco e sou de Assis. Venho a seus pés para pedir um privilégio: quero viver o Evangelho ao pé da letra. Quero Ter o Evangelho como única inspiração e regra de nossa vida, não ter rendas nem propriedades, viver com o trabalho de nossas mãos…”

            Depois dessas primeiras palavras, o Papa disse: “Está bem, está bem!”. Como quem diz: Basta! O Irmão calou-se na mesma hora. O Papa ficou surpreso com a obediência instantânea.

            Depois de algum tempo de silêncio entre os dois, Francisco recomeçou a falar: “O próprio Senhor me revelou que eu devia viver segundo a força do Santo Evangelho. Faz alguns anos que comecei a viver esta forma de vida. Depois o Senhor me deu irmãos. Agora somos doze. Eles estão lá fora. Escrevemos uma Regrazinha, com palavras simples e breves…”

            Quando ia começando a tirar a Regra debaixo do braço, o Papa fez um movimento, quase um gesto, como quem dissesse: Agora, chega! E disse a Francisco:

            “Francisco, eu carrego aos ombros problemas urgentes e gravíssimos. Estou velho. Não posso atender tudo pessoalmente. Se quiser que te escute, pede recomendação, consegue uma audiência e espera tua vez”. Deu meia volta e se foi.

            O Pobre de Assis levantou-se e ficou olhando até que perdeu o Papa de vista. Começou a voltar para onde estavam os irmãos, e enquanto isso começou a pensar: “Ele tem razão. O Santo Padre carrega o mundo nas costas. Seus problemas são graves. Os nossos não são nada. A quem irei pedir recomendação? Não conheço ninguém”.

            Quando reencontrou os irmãos, a primeira coisa que lhes disse foi: “Temos que rezar mais e fazer penitência”. E mal saíram do Palácio deram de cara com Dom Guido, bispo de Assis, que logo decidiu dar todo apoio que os irmãos precisavam.

            Dom Guido lembrou de seu grande amigo o Cardeal João de São Paulo. Dom Guido o procurou e contou a história de Francisco e do Movimento, e o aconselhou que os conhecesse mais de perto, convivendo com eles por alguns dias.

            De fato, Francisco e seu companheiros foram hóspedes do Cardeal por alguns dias. E neste tempo em que estiveram com ele viveram sua forma de vida ao pé da letra, como de costume. O cardeal os observava sempre, e como era sensível às coisas do Espírito, não custou para descobrir o dedo de Deus na vida daqueles pobrezinhos.

            Durante alguns dias, o cardeal submeteu Francisco a vários interrogatórios, e bem depressa ficou cativado pela simplicidade de alma do Irmão.

            Estava encantado com a dedicação e o amor com que seguiam o Evangelho. Mas mesmo assim, temia por essa Fundação. Então, um dia chamou Francisco e tentou faze-lo mudar de idéia, dizendo-lhe:

            “Francisco, uma nova fundação é, em nível humano, uma empresa tremenda, e nesse caso, quase temerária. Uma nova fundação, requer uma preparação intelectual por parte dos fundadores, é quase uma batalha, e os iniciadores têm que saber manejar com habilidade e dialética. Na Cúria, a aprovação de uma fundação exige uma recomendação poderosa. Uma recomendação poderosa pressupõe recomendadores poderosos. Os poderosos se deixam influenciar pelo poder, seja espiritual, apostólico ou militar. Vós estais alistados, e jurais fidelidade, na Ordem da Santa Impotência. Acho que essa intenção está quase destinada ao fracasso. Desculpe-me, filho querido”

Francisco escutava tranqüilo. O coração do Cardeal estava cem por cento de acordo com os ideais de Francisco, mas conhecendo os bastidores da cúria romana, temia que o pedido de Francisco fosse negado, e queria preparar-lhe o ânimo, para lhe evitar uma profunda frustração.

Então propôs-lhe uma solução. Disse ele: “Por que não vos incorporais numa Ordem Religiosa que tenha as características da vida que desejais viver?”

Houve um grande silêncio. Francisco olhava para o chão. Não era a primeira vez que lhe faziam essa proposta, nem seria a última. Então Francisco respondeu:

“É temerário demais. Nós não temos nada. Não temos estudos, não temos coisas nem propriedades. Não temos influência política. Não temos base para sermos recomendados. Não podemos impressionar porque não oferecemos utilidades apostólicas palpáveis e eficazes. Parecemos uma estranha Ordem da Santa Ignorância ou da Santa Impotência…”

Ficou de pé, levantou os braços e com a voz mais elevada acrescentou:

“Justamente por isso, porque somos impotentes e fracos como o Crucificado, porque chegamos ao paralelo total da inutilidade e da inservibilidade como Cristo na Cruz, por isso o Onipotente vai revestir de Onipotência a nossa impotência. Por meio de nós, indignos, inúteis, ignorantes e pecadores, vai ficar bem claro diante de todo o mundo que o que salva não é a ciência, o poder ou a organização, mas só Deus Salvador. Vai ser a vitória de nosso Deus e não da diplomacia.”

O Cardeal levantou-se sem dizer nada e retirou-se para que Francisco não visse as lágrimas em seus olhos. Entrou outra vez e disse: “Francisco, vai para a capela e reza.”

Enquanto isso, foi rapidamente para o Palácio de Latrão. Pediu audiência papal em caráter urgente. Procurou o Papa e disse: “Santo Padre, Deus é testemunha de quão sinceramente lutamos todos estes anos pela santidade da Igreja. Estávamos esperando um enviado do Senhor para restaurar ruínas e ressuscitar mortos. O esperado, chegou, observei sua vida e perscrutei sua alma.”

O Papa alegrou-se com essa notícia e mandou suspender as audiências do dia seguinte.

No dia seguinte estavam outra vez frente a frente o Pobre de Assis e o Papa Inocêncio III. O Santo Padre o reconheceu e não deixou de lhe dar um leve sorriso.

Quando Francisco recebeu permissão para falar, começou assim: “Santo Padre, venho a seus pés para pedir-lhe o privilégio de viver ao pé da letra o Santo Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo. Não desejamos ter rendas nem propriedades. Queremos subsistir com o trabalho de nossas mãos. Iremos pelo mundo sem provisões, sem bolsas e nem dinheiro, anunciando a Palavra do Senhor…”

Papa e Cardeais pareciam estar mais ansiosos que o próprio Francisco.

Francisco continuou: “Queremos celebrar hoje o divórcio com o dinheiro e os esponsais com a Senhora Pobreza. Queremos nos vestir pobremente e não desprezar os que se vestem ricamente. Ofereceremos a outra face aos que nos feriram e responderemos as ofensas perdoando. Acolheremos com bondade os ladrões das estradas e nossos príncipes vão ser os leprosos e os mendigos”.

De repente um dos cardeais falou em voz alta: “É um sonho! Meu filho, nossas costas estão encurvadas pelo peso de tanta desilusão. Cada ano aparecem nesta sala sonhos de ouro. O tempo demonstra que esses sonhos acabam, um por um, na cova da frustração. Acabamos não acreditando nas palavras. Costumamos esperar os resultados.”

Francisco respondeu: “Tudo que acabo de expor, nós já o pudemos praticar”.

O Cardeal tomou novamente a palavra e disse: “Agora sois poucos. Todos os princípios são animadores. Muitos de nós, na juventude, sonhamos com esses ideais. Mas a vida nos faz pôr os pés no chão. Não somos derrotistas, somos realistas. Podes me dizer, Francisco de Assis, o que faria para alimentar, por exemplo, dois mil irmãos?”

O Irmão respondeu o seguinte: “Se a mão de Deus alimentou até agora doze orfãozinhos, por que não vai alimentar dois mil? Será que o Altíssimo tem limitações? Se a misericórdia de Deus é mais profunda do que os abismos, nós só temos uma coisa a fazer: Saltar!”

O Papa estava estranhamente encantado. Nem ele mesmo sabia bem por quê. Gostaria de ter dado-lhe ali mesmo a sua benção, mas era bom que os cardeais pusessem o profeta à prova e peneirassem seu programa.

Havia um grupo de Cardeais que não concordavam de forma alguma com aquela vida. Diziam que era impossível. Que era um programa para gigantes…

Então levantou-se o Cardeal João de São Paulo e disse: “Irmãos do Sagrado Colégio Cardinalício, gosto de ver que julgais friamente. Acho que é nosso dever cortar as fantasias artificiais. Só que, temos que ser conseqüentes e tomar cuidado para não cortar o laço da coerência. Se Vossas Eminências opinam que não se deve aprovar esta forma de vida por ser impossível de praticar, eu pergunto: Que está pedindo esse Pobrezinho de Deus a não ser cumprir ao pé da letra o Evangelho do Senhor Jesus?

Se esse programa for impraticável, então sejamos conseqüentes! O próprio Evangelho é também  uma utopia, e seu autor um outro fantasista. Mas, se o Evangelho é impossível, que sentido tem a Igreja? Que significa e para que serve o Colégio Cardinalício e o próprio Papa? Que estamos fazendo aqui? Tiremos a conclusão: Todos nós somos uns impostores.”

Os Cardeais ficaram em silêncio, olhando para o chão. Era óbvio. Ninguém mais se atreveu levantar a voz contra aquela Regra. Seria louco quem o fizesse. Então o Papa resolveu suspender a sessão.

Francisco e os irmãos retiraram-se. Todos estavam confusos, com medo. O Pobre de Assis pediu aos irmãos que o deixassem sozinho, na verdade eles precisavam dele agora mais do que nunca. Mas Francisco não tinha para dar-lhes nesse momento o que precisavam: consolação, certeza, paz. Ele mesmo precisava recuperar tudo isso.

O Irmão não conseguia entender nada. Acostumado a receber uma inspiração e a colocá-la em prática na mesma hora, não conseguia compreender aquela lentidão.

Nessa noite demorou muito para mergulhar em Deus. O desânimo lhe perturbava, até que conseguiu desprender-se de si mesmo e depositou sua alma em Deus. Mais de uma vez escutou as palavras do Senhor dizendo: “Vem, pula em meus braços, meu filho. Em minhas mãos estão as chaves. Abandona-te, confia. Eu farei o resto.”

Agora podia consolar os irmãos.

A sessão foi remarcada e decidiram dar-lhe uma autorização verbal.

Francisco começou a pensar que os Cardeais não o aprovavam, por não saber falar direito. Não tinha jeito de professor, assim como Jesus. O mestre sempre impunha as coisas com parábolas, comparações, como um jogral. Então pensou em fazer o mesmo. E assim aconteceu.

Na sessão, quando Francisco teve licença para falar, contou o seguinte: “Era uma vez uma mulher que vivia no deserto. Era muito pobre, não tinha nada, mas era muito bela. Um dia, o rei estava atravessando o deserto em sua carruagem. Quando viu aquela mulher, ficou cego por sua beleza e se apaixonou. O rei e a mulher tiveram muitos filhos, que cresceram com a mãe e tornaram-se adultos. Um dia a mãe os chamou e disse-lhes: ‘Vocês são pobres, mas não fiquem com vergonha disso. Levantem a cabeça porque vou dar-lhes uma grande notícia, vocês são filhos de um grande rei. Vão a sua corte e peçam tudo o que quiserem.’ Eles ficaram radiantes. Foram à corte e se apresentaram diante do rei. Só de vê-los, o coração do rei começou a bater, e ele não sabia porque. Quem são esses, que parecem o espelho de minha alma? E perguntou: Quem são vocês o onde vive sua mãe? Responderam: Nossa mãe vive no deserto, é uma mulher muito pobre. Quando percebeu que eram seus filhos, o rei ficou sem falar de emoção. Depois disse-lhes: vocês são príncipes e herdeiros de meus reinos. Alegrem-se”.

O papa já tinha visto muitas coisas durante seu longo pontificado, mas nunca um penitente com alma de jogral.

Quando a parábola terminou, Francisco disse: “Essa mulher pobre sou eu”. O resto estava claro. A condição para pertencer ao Reino é ser pobre. Só os pobres herdarão à Deus.

Inocêncio III levantou-se, aproximou-se dos irmãos, olhou para Francisco e disse: “Eu já sou velho, meu filho. Quantas coisas não aconteceram nos últimos quinze anos… Quis ser santo. Fui medíocre. Em vez da Reforma da Igreja, vi que a heresia e a rebeldia levantaram a cabeça de todos os lados. Com o tempo, eu me convenci de que era preferível acender uma luzinha do que atacar as trevas. Passei muitas noites de insônia, e houve noites em que chorei… É terrível ser Papa. É o ser mais solitário da terra. Todo mundo recorre a ti, e tu, a quem vais recorrer? Infeliz do Papa que não se apoiar em Deus. Na solidão das noites, supliquei a Deus que enviasse quanto antes o ungido por sua mão, o eleito que há de restaurar as ruínas da Igreja. Parece que minhas súplicas foram ouvidas, Bendito Seja o Senhor! Nestes dias pensei muito em ti, Francisco. E perguntei a Deus se tu não eras o seu eleito. E essa noite recebi a resposta”.

Todos ficaram espantados. Francisco olhava fixamente o Santo Padre.

O papa continuou: “Esta noite eu vi em sonhos, estas poderosas torres de São João de Latrão curvando-se como palmeiras. O edifício inteiro começou a ranger e, quando parecia que as paredes da Igreja iam ao chão, um homenzinho esfarrapado apoiou-a com os ombros, agüentou-a e impediu que a Igreja viesse abaixo. E ainda estou vendo aquele mesmo esfarrapado; eras tu, Francisco, filho de Assis e jogral de Deus. Agora já posso morrer em paz. Meus filhos, saiam pelo mundo. Onde houver fogueiras, ponham rosas. Transformem em jardins os campos de batalha. Anunciem que depressa vai chegar a era do Amor, da Alegria e da Paz. E antes de minha morte, venham contar-me as boas notícias, para a consolação de minha alma”.

Deu-lhe a bênção. Abraçou a cada um. E os irmãos foram embora, voltaram para Assis.

            A IDADE DO OURO

            Os irmãos voltaram para Assis radiantes. Lá chegando instalaram-se Rivotorto, uma velha cabana, próxima da Porciúncula e de São Damião, também ficava próximo do monte Subásio e de umas grutas naturais que eles chamavam de cárceres, lugar ideal para a vida contemplativa.

            Os doze já não cabiam mais na Porciúncula, por isso tiveram que mudar para essa cabana.

            Era uma moradia paupérrima. Era parada obrigatória dos mendigos e passantes com animais. Mas para os irmãos era um verdadeiro palácio.

Em Rivotorto reinava alegria e ela provinha do espírito de renúncia. Quanto mais renunciavam, mais alegres eram.

A alegria franciscana surgia da pobreza franciscana. Francisco e os irmãos viviam intensamente a confiança filial de que a Providência de Deus não falha. Vejamos dois episódios que comprovam essa realidade:

Um dia Francisco chamou um dos irmãos e mandou que fosse pedir esmolas na cidade.

Depois de algumas horas o irmão voltou, com poucas esmolas, mas cantando de alegria. Escutando de longe seu canto, Francisco saiu correndo aos seu encontro e louvou ao Senhor com essas palavras: “Bendito seja o nosso irmão que foi mendigar sem fazer-se de rogado e agora volta para casa de tão bom humor”.

O segundo episódio foi descoberto por um pastor calvinista francês chamado Paul Sabatier, apaixonado e grande estudioso de São Francisco:

Conta-se que pouco tempo depois de fundada a Ordem Primeira, Francisco e Bernardo, o primogênito da Ordem, foram a uma cidade pedir esmolas. Cansados e atormentados pela fome, Francisco propôs ao companheiro que se dividissem para pedir esmolas e depois se encontrariam naquele mesmo lugar.

Frei Bernardo, tomado pelo cansaço e pela fome, nada guardou porque comia os pedaços de pão que a boa gente lhe dava. Voltando ao lugar combinado, Francisco radiante de felicidade foi mostrando o fruto da esmola colhida, dizendo-lhe:

            — Grande irmão meu, esta foi a esmola que me deu a Divina Providência. Mostra-me, agora, o que recebeste. Depois a comeremos em nome de Deus.

            Frei Bernardo, todo envergonhado, prostrou-se aos pés de Francisco, dizendo:

            — Santo pai, confesso meu pecado. Nada guardei comigo das esmolas recebidas. Comi tudo o que me deram, por estar morto de fome.

            Francisco, ouvindo, chorava de alegria e, abraçando a Bernardo, exclamou:

            — Ó filho dulcíssimo, és mais bem-aventurado, certamente, do que eu; és um perfeito observador do Evangelho, porque nada ajuntaste e nada aguardaste para amanhã, e todo o teu pensamento puseste no Senhor. 

MÃE QUERÍDISSIMA

            Frei Pacífico, o “Rei dos Versos”, como Francisco gostava de chamá-lo, dava a Francisco o seguinte título: “mater caríssima” (mãe queridíssima). Pois na verdade era isso que Francisco era para a Fraternidade.

            Uma vez, quando todos estavam dormindo, um irmão começou a gemer.

            Francisco perguntou: “Que aconteceu?”

Estou morrendo, respondeu o irmão.

            Francisco levantou-se rapidamente, acendeu a lâmpada e começou a andar entre os irmãos adormecidos perguntando: “Quem és? Onde estás?”

            O irmão respondeu: “Estou aqui, sou eu…”

            Francisco encontrou o irmão e perguntou o que estava acontecendo e o irmão respondeu que estava morrendo de fome. O Pobre de Assis sentiu o coração apertar-se, quis disfarçar a dor da alma com ares de alegria.

            Acordou todos os irmãos e resolveu fazer uma festa. Mandou que trouxessem tudo o que tivesse para comer, mas só havia algumas nozes e azeitonas.

            Todos comeram e cantaram.

            Deitaram-se outra vez, rindo bastante.

            Em momentos como esse, não havia nenhuma prioridade, nem mesmo a pobreza. A única coisa importante era o próprio irmão. Não lhe importava se era dia de jejum rigoroso. O irmão estava acima de tudo. Quando um sofria, todos sofriam.

            Outra vez aconteceu que fazia dias que um irmão estava com cara de doente. Apenas Francisco percebeu, e ficou preocupado. Então pensou: “Se esse irmãozinho comesse umas uvas bem maduras, em jejum, haveria de sarar bem depressa”.

            Na manhã seguinte, levantou bem cedinho, acordou o doente e o levou a primeira vinha que encontraram (não importava quem era o dono). Sentaram no chão e se fartaram. Francisco ia buscar para o irmão os cachos mais maduros.

            Fizeram isso durante vários dias, até que o irmão se recuperou.

            Como em uma família, os mais fracos eram os preferidos do Irmão. Não se importava de sair à rua para pedir carne para os seus doentes durante a quaresma, a fraternidade estava acima de todas as considerações.

            Francisco  tinha vivido muito em pouco tempo. Desde que o Senhor lhe deu irmãos, não tinha mais saído desse campo de batalha que chamam de relacionamento humano. E tinha aprendido muito nesse campo.

            Certo dia, Frei Rizzério, estava com um tanto de mania de perseguição. Ficou com a obsessão  de que Francisco não lhe queria bem, o que, para ele, era sinal fatal de que Deus já não o amava. Por conta disso vivia em trevas pelos cantos.

            Francisco, que nessa época estava longe, ficou sabendo disso e lhe escreveu uma carta de amor, que dizia:

            “Meu filho, eu te suplico, por favor, que tires da cabeça esses pensamentos que são a tua aflição. A verdade é esta: eu te amo muito. Até mais: eu gosto mais de ti do que dos outros. Se é verdade que gosto muito de todos, tu és o que merece minha maior predileção. Vem ver-me sempre que quiseres e, quando vires meus olhos, hás de convencer-te de minha predileção por ti.”

            Essa cartinha foi o talismã mágico que libertou o irmão de suas sombras.

            Francisco costumava dizer que no fundo de toda tristeza havia uma carência afetiva.

            Até um pedacinho de unha pode consolar uma pessoa, quando existe carinho. Uma vez, um irmão estava abatido por uma série de crises pessoais e dizia a si mesmo: “Se eu tivesse um pedacinho de unha do pé de Francisco, estas tentações haveriam de dispersar-se  como nuvens.”

            Nessa época, Francisco estava em Rieti, muito doente. O fradinho foi para lá manifestou o desejo de ter um pedacinho de unha do pé de Francisco. Os que estavam cuidando de Francisco acharam o pedido ridículo e não o deixaram entrar.

            Francisco soube e mandou que o deixassem entrar. Estendeu-lhe o pé com grande carinho, e enquanto o frade cortava a unha, Francisco foi dizendo-lhe palavras de infinita consolação. Depois impôs as mãos e lhe deu uma calorosa bênção. Não havia no mundo homem mais feliz do que aquele fradinho como o seu pedacinho de unha e o carinho de Francisco.

            O amor é a força suprema do mundo. É tão fácil fazer uma pessoa feliz, basta um pouco de carinho, pensava Francisco.

            E com amor, Francisco também corrigia os irmãos, dando-lhes grandes lições…

            Outro dia os irmãos estavam em oração numa cabana, num lugar chamado Montecasale, entre eles estava Frei Ângelo Tarlati, que antes tinha sido cavaleiro.

            Circulavam por esse lugar três bandidos, que assaltavam os passantes. Como estavam próximos da cabana dos irmãos e não tinham ninguém para assaltar, apresentaram-se, mortos de fome e não com boas intenções, entre os irmãos.

            Frei Ângelo, quando os viu os reconheceu e ficou furioso. Expulsou-os de lá com um bastão. Era mais uma vitória do antigo soldado. Os outros irmãos se divertiram muito.

            Quando Francisco voltou da esmola, os irmãos contaram, no meio de risadas, o que tinha acontecido. Francisco não viu a menor graça, quando eles perceberam pararam de rir.

            Francisco não disse nada, retirou-se para o bosque, precisava acalmar-se, estava agitado.

            “Um soldado!” pensava. “Todos carregamos um soldado dentro de nós. O soldado sempre quer afugentar, ferir, matar.”

            A espada nunca semeou um metro quadrado de paz e esperança.

            O irmão estava perturbado, nas não queria que esse sentimento se voltasse contra Ângelo e os outros, pois isso seria pior que dar pauladas em bandidos.

            Convocou os irmãos e começou  a falar-lhes com muita calma. Os irmãos estavam assustados.

            Francisco disse: “Eu sempre penso que se o ladrão do Calvário tivesse tido um pedaço de pão quando teve fome pela primeira vez, nunca teria cometido o que levou à cruz”.

            Francisco falava baixo, sem acusar ninguém. Continuou: “Todos os justiçados sentiram a falta de uma mãe em sua vida. Quem é que sabe o que está por trás de cada coisa? Ninguém é mau. No máximo, é fraco. E o certo até seria dizer doente. E o Evangelho diz que fomos enviados para servir os doentes. Doentes de quê? Doentes por falta de amor.

            Esse é o segredo. O bandido é doente por falta de amor. Distribuam um pouco de pão e de carinho e vão poder fechar as cadeias.

            Agora, eu mesmo vou sair por aí para procurar os bandidos, pedir-lhes perdão e levar-lhes pão e carinho”.

            Ouvindo isso Frei Ângelo levantou-se e disse: “Irmão Francisco, eu sou o culpado; sou eu quem deve ir”.

            Francisco respondeu: “Todos somos culpados. Pecamos em comum, santificamo-nos em comum, salvamo-nos em comum”.

            Frei Ângelo ajoelhou-se e disse: “Pelo amor do Amor, deixa-me fazer esta penitência”.

            “Está bem, disse Francisco, mas vais fazer como eu disser”.

            Quando encontrar os bandidos vais dizer: “Venham irmãos, comer a comida que o Irmão Francisco preparou para vocês com tanto carinho. Se eles perceberem paz em teus olhos, vão se aproximar e te obedecer. Então vais servi-los com o maior carinho e cortesia. Quando estiverem saciados, suplicarás de joelhos que não assaltem ninguém. O resto vai ser feito por Deus”.

            Foi o que aconteceu. Os ex-bandidos foram transformados e juntaram-se aos irmãos.

A SANTA OBEDIÊNCIA

            A obediência era para Francisco, a alta demonstração da liberdade humana. Num dos seus escritos, leva tão longe essa virtude, que chega a dizer:

            “Pegai num cadáver e fazei dele o que quiserdes. Não oporá resistência. Colocado num trono, não olhará para cima, mas para baixo. Vestido de púrpura, não se envaidecerá. Assim deve ser o perfeito obediente: não pergunta por que se manda, não se inquieta. As honras aumentam-lhe a  humildade e quanto mais o louvam, mais mesquinho se vê a si mesmo.”

            Certo dia Francisco chamou Frei Rufino e mandou ir pregar em Assis.

            Frei Rufino lhe disse: “Pai, suplico-te que me perdoes e não me envies, pois não tenho o dom de pregar e sou simples e idiota”.

            Então disse Francisco: “Como não obedeceste, agora eu te ordeno, pela santa obediência, que vá para Assis nu e entre numa Igreja e pregues”.

            Frei Rufino obedeceu. O povo ria.

            Francisco começou a pensar na severa ordem que tinha dado e começou a censurar a si próprio dizendo:

            “De onde te vem tanta presunção, filho de Pedro de Bernadone, vil homenzinho, para ordenares a Frei Rufino, que é dos melhores gentis-homens de Assis, que fosse nu pregar ao povo, com um louco ? Por Deus, que hás de experimentar em ti o que ordenaste ao outro”.

E imediatamente tira a roupa e dirige-se para Assis para pregar junto com Rufino.

FREI LEÃO

            Destaca-se entre os primeiros franciscanos, Frei Leão, que sempre se mostrou de uma humildade a toda prova.

            De leão tinha apenas o nome, pois em tudo era uma ovelhinha, por isso Francisco o chamava de OVELHINHA de DEUS, pela sua mansidão sem igual.

            Foi companheiro de todos as horas de Francisco. Era seu companheiro, amigo, irmão, secretário, enfermeiro e confessor.

            Desse franciscano inesquecível se conta vários fatos.

            Certa vez, voltaram à Porciúncula, já de madrugada. Quando chegou a hora das matinas, Francisco pediu que Frei Leão desse resposta de confirmação à sua confissão de pecador.

            Era uma espécie de oração alternada.

            E Francisco começou  a dizer a si próprio:

            ” – Ó Irmão Francisco, tens feito tanto mal neste mundo e cometido tantos pecados, que mereces as punições do inferno”.

            A reposta deveria ser: “Realmente, Francisco, é verdade que tu mereces cair no eterno abismo”. Mas a Ovelhinha do Senhor respondeu:

            ” – Irmão Francisco, Deus fará tanto bem por teu intermédio, que terás, depois, a doce paz do amor no paraíso”.

            E Francisco, admirado, esclareceu melhor, declarando que de maneira nenhuma desejava ouvir semelhante resposta, que o companheiro devia dizer apenas: “Bem mereces, por tuas grandes faltas, o eterno castigo”.

            Frei Leão declarou haver compreendido e prometeu dar as respostas de acordo com a vontade de Francisco. E recomeçaram o diálogo:

            ” – Senhor, Deus do céu e da terra, eu Francisco, sou o ser mais vil, o pior do mundo, mereço ser colocado entre os condenados”.

            E Frei Leão, sem vacilar, exclamou:

            “Irmão Francisco, Deus por ti realizará tão grandes coisas, que serás bem-aventurado entre os grandes santos do céu”.

            Maior foi a surpresa de Francisco, que voltou a pedir ao companheiro que não respondesse de tal maneira, mas confirmasse, unicamente, as suas palavras; e prosseguiu, com lágrimas nos olhos:

            “ – Tenho sido miserável; como posso crer que Deus tenha piedade de mim, se tenho cometido tantos pecados contra o Pai de Misericórdia?”

            Frei Leão respondeu:

            ” – Irmão Francisco, Deus, cuja compaixão é infinita, terá misericórdia de ti e te conceberá grandes e inesgotáveis graças”.

            Francisco ficou contrariado e pediu a Frei Leão que se lembrasse do dever da obediência, pois aquilo era uma ordem a seu cumprida. E novamente Francisco fala:

            ” – Infeliz e miserável pecador sou eu, como poderá Deus ter misericórdia de mim?”.

            E novamente  Frei Leão responde:

            ” – Irmão Francisco, receberás de Deus as maiores graças; ele te exaltará, e por toda a eternidade serás glorificado, pois tu te humilhaste na terra, e engrandecido serás no céu.”

            E acrescentou aos prantos:

            ” – Não pude obedecer-te. Outra coisa não conseguia dizer, senão o contrário do que desejavas. Mas fica certo, irmão Francisco: o Senhor falava pela minha boca”.

            Francisco abraçou e beijou Frei Leão e juntos louvaram ao Senhor.

A Fraternidade sempre teve um grande amor à Nossa Senhora.

            Frei Leão, na sua vida perfeita de humildade, foi favorecido diversas vezes por Deus de diversas visões.

            Certa vez, em êxtase, apareceu-lhe ao espírito um vale imenso repleto de uma multidão. Parecia-lhe o julgamento final.

            Via, nitidamente, duas escadas. Uma delas era vermelha e era destinada aos heróis da religião, aos mártires da fé. A outra era branca. Era a escada luminosa da Mãe de Deus.

            Frei Leão notava, comovido, que vários dos seus irmãos de hábito tentavam subir pela vermelha, muitas vezes retrocediam, feridos pelas arestas do caminho.

            Aqueles que se dirigiam à escada de Maria chegavam felizes à direita do Pai.

O AMOR PELA ORAÇÃO

            Frei Tomás de Celano diz que Francisco “não era tanto um orante, mas um homem feito oração”. Sobre a perseverança na oração, Francisco costumava dizer aos irmãos: “O demônio rejubila quando consegue extinguir ou impedir, no coração do servo de Deus, a alegria e a devoção, nascidas da oração pura ou de outras boas obras.” Na oração obtemos e acumulamos graças, ao passo que a pregação é, uma distribuição dos bens recebidos do céu.

Quando, encontrando-se em público, era improvisamente visitado pelo Senhor, procurava sempre ocultar-se de algum modo aos que estavam por perto, para que os íntimos contatos com o esposo não se propagassem entre todos.

            Muitas vezes aos seus confidentes dizia coisas como estas: “Quando o servo de Deus, durante a oração, recebe a visita do Senhor, deve dizer:

            ‘Ó Senhor

            mandaste do céu

            esta doce consolação

            para mim, indigno pecador:

            e eu a confio a tua guarda,

            porque me sinto um ladrão

            de teu tesouro.’

            E quando regressa da oração, deve mostrar-se tão pobrezinho e pecador, como se não tivesse recebido graça especial alguma”.

TENTAÇÃO DAS SAUDADES

            Francisco sempre teve medo que o tentador se vestisse de saudades. Era a pior tentação, por ser a mais sutil. E o inimigo usou, por diversas vezes, dessa tentação, contra Francisco, especialmente no que diz respeito a sexualidade.

            Conta-se que certa noite em que Francisco estava em oração, alguém o chamou por três vezes, dizendo:

            — Francisco, Francisco, Francisco !

            — Que queres ?; respondeu Francisco. E o demônio acrescentou maliciosamente:

            — Não há pecador nenhum neste mundo a quem o Senhor não perdoe, se converter. Mas aquele que se mata com suas penitências, jamais encontrará misericórdia.

            Francisco percebeu, por revelação divina, a astúcia do inimigo que queria que ele voltasse a uma vida morna. Mas o inimigo continuou com a tentação, até que Francisco tirou a roupa e se açoitou duramente com uma corda, dizendo:

            “— Vamos, irmão burro, é assim que te deves comportar! É assim que tens que ser castigado! O hábito religioso não deve ser posse de um homem luxurioso.”

            Quando percebeu que a tentação não ia embora nem com as chicotadas, saiu da cela e rolou nu na neve. Em seguida, Francisco encheu as mãos de neve e fez sete bonecos de diversos tamanhos. Começou a dizer a seu corpo:

            “— Essa maior é tua mulher, essas outras quatro são teus dois filhos e duas filhas, as outras duas são o servo e a criada que precisas ter para o teu serviço. Trata de vestir a todos, pois estão morrendo de frio. Mas, se és molestado por todo este cuidado por eles, serve com solicitude e alegria a Deus somente.”

            E a tentação desapareceu.

Dois ‘milagres’ relacionados à isso aconteceram com Francisco, e contra o homem velho lutou bravamente.

            O primeiro foi o milagre das rosas, milagre este que rendeu o “Perdão de Assis” – a indulgência franciscana:

            Achava-se ele em sua cela, na Porciúncula, numa noite de inverno rigoroso. Abrigava-se do vento e da neve.

            De repente ouviu uma voz que lhe dizia: “Francisco és um sonhador e tolo, deixa essas penitências. Não maltrate teu corpo, ainda jovem e perfeito. Foste feito para o prazer.

            Vem para os salões participar das festas, onde lindas mulheres te esperam.”

            Francisco sentia-se arrastado, por um momento mirou seu corpo jovem e são, num movimento rápido de sensualidade.

            De repente lembrou-se de Jesus, cujas pegadas desejava seguir. E sem vacilar saiu para o relento, tirou a roupa e atirou-se a um espinheiro, ferindo todo o corpo.

            De manhã, ao raiar do sol, o espinheiro havia se transformado num arbusto cheio de rosas vermelhas e brancas lindas. Nesse meio tempo, dois anjos se apresentaram, revestidos de um hábito branco e o convidaram para entrar na capela da Porciúncula. Francisco mal pôde crer. Dentro da capela, apareceram-lhe Jesus e Maria, sobre o altar.

            Jesus pergunta a um Francisco extasiado, que graça desejava receber como prêmio pela fidelidade no combate ao inimigo. A resposta foi imediata:

            “— Que todos aqueles, que arrependidos e confessados, entrando nesta igreja, recebam o perdão completo dos pecados.”

            Após a intercessão materna de Maria, Nosso Senhor concordou. Francisco deveria, no entanto, apresentar-se ao Papa Honório III para confirmar esta extraordinária indulgência. Sem perder tempo, no dia seguinte, Francisco, cheio de alegria e simplicidade, apresentou-se ao Papa, partilhando-lhe tudo o que acontecera.

            Naquele tempo havia somente três Igrejas no mundo que tinham semelhante indulgência: a do Santo Sepulcro, em Jerusalém, São Pedro e São Paulo, em Roma, e Santiago de Compostela, na Espanha.

            No dia 02 de agosto de 1216, com a presença do povo e de todos os bispos da região da Úmbria, na Porciúncula, Francisco de Assis proclamou radiante de alegria:

            “— Irmãos, quero mandar-vos todos ao paraíso !”

            Até hoje se pode usufruir desta graça divina, herdada de Francisco.

            O segundo milagre foi o seguinte:

            Em outro dia, o Imperador da Alemanha, Frederico II, que havia se tornado Rei da Sicília, em 1215, ouvindo falar de Francisco quis conhecê-lo e pensou em por à prova a virtude do Irmão.

            Certa noite, após a ceia, recolheram-se todos. Francisco alarmado com o luxo do quarto de dormir, pedia misericórdia à Deus.

            De repente sentiu algo estranho e viu formosa mulher que se dirigia a ele, envolvendo-o em sensuais carinhos.

            Então, olhou e viu uma lareira e atirou-se nas chamas, sendo  logo envolvido pelo fogo.

            Vendo-o em chamas, a mulher começou a gritar pedindo socorro. Frederico, tomado de medo e espanto, viu Francisco sair ileso das chamas, ficando livre do fogo.

O AMOR ÀS CRIATURAS

SERMÃO AOS PASSARINHOS

Andavam pelo caminho, Francisco e Frei Masseu. De repente o irmão viu uma multidão de pássaros numa árvore.

Então Francisco pensou: “Foi o Senhor quem me preparou este auditório original. Também as aves vão entrar no paraíso.”

Chamou as aves, e da ramaria das árvores desceram milhares de pássaros que se puseram em ordem diante de Francisco: na frente, as pequeninas, no meio as de tamanho médio e atrás as maiores. Durante todo o tempo em que pregou as aves ficaram quietas.

Quando Francisco parou de falar elas não foram embora, esperaram, curvadas diante dele, que ele lhes desse a bênção.

Ele traçou uma cruz sobre elas. Então saíram em revoada, cantando, e dividiram-se em quatro grupos, seguindo a cruz que Francisco traçou.

As palavras do sermão foram essas:

“Meus irmãos passarinhos, entoai ao Senhor os mais altos louvores, pois tudo ele vou deu, desde as asas ao canto, canto de vários tons, asas de várias cores!

Podeis construir, onde quereis, os vossos ninhos, beber em qualquer fonte, e ter, sem trabalhar, o melhor alimento.

Tudo o que existe é vosso; é preciso portanto, que o louveis sem cessar, de momento a momento, meus suaves  irmãos passarinhos!”

O LOBO DE GÚBIO

            O caso mais extraordinário que aconteceu com Francisco, com relação aos animais, foi o caso do lobo de Gúbio.

            Na pequena cidade de Gúbio, na Úmbria, ao norte de Assis, um lobo ferocíssimo atacava os animais e as pessoas da cidade. O povo estava apavorado.

            Francisco soube o que estava acontecendo e resolveu procurar o animal. E deu-se uma coisa prodigiosa: a fera saiu dos penhascos e veio ao encontro do homem de Deus, fazendo-se, ao vê-lo, manso como um cordeiro, deitando-se-lhe aos pés.

            Francisco falou assim com o lobo:

            “Irmão lobo, em nome de Cristo, não me faças mal nem a mim, nem a ninguém. Até aqui a tua vida tem sido abominável, pois mataste muitas criaturas. Tu bem mereces morrer como ladrão e homicida. Toda essa terra tem horror de ti. Mas eu quero, irmão lobo, fazer as pazes entre ti e os homens. E como sei que tens cometido todos os males pela fome, venho prometer-te alimento; todos te darão comida, desde que sejas pacífico e bom. Irás de casa em casa, sem que faças mal algum a ninguém.”

            O lobo, inclinando a enorme cabeça, fez evidente sinal de que aceitava a proposta. E mansamente, acompanhou Francisco à cidade. Aí, diante da multidão reunida, o Pobrezinho disse:

            “Deus permitiu este flagelo por causa de muitos pecados, mais atendei bem: mais perigosa é a chama do inferno do que a fúria deste lobo que não pode matar senão o corpo, portanto voltai a Deus, e fazei digna penitência, vivendo como homens de honra; e Deus vos livrará do lobo no tempo presente e do fogo infernal na vida futura. O irmão lobo, que está aqui diante de vós, prometeu-me fazer as pazes convosco, e não vos ofender mais em coisa nenhuma, prometei-lhe vós, dar-lhe todos os dias, o necessário para o seu sustento.”

            O povo todo, cheio de júbilo, jurou tratar o lobo daí por diante como a um cão bom e fiel. O lobo, por sua vez, com o movimento da cauda, renovou o propósito de verdadeira paz.

            Dizem que esse animal, outrora tão feroz, viveu ainda alguns anos, mansamente, na cidade de Gúbio.

            Andava pela rua à luz do dia ou da noite, e sempre lhe davam algo de comer, como a um manso cachorrinho. E depois morreu de velhice. Mas, enquanto viveu, foi um atestado da santidade de Francisco, que em sua vida nunca desejou outra coisa senão a paz entre todos, mesmo entre os homens e os animais.

            Mas esse não foi o único lobo que Francisco amansou…

            Certo dia, houve um encontro entre Francisco de Assis e um perigoso bandido que se escondia nas montanhas, e que o povo dera o nome de “Lobo”, porque do lobo tinha mesmo a grande astúcia e a ferocidade; de humano, apenas o aspecto.

            Ao encontrar-se com ele, Francisco disse:

            “Irmão, a paz esteja contigo”.

            E o bandido respondeu:

            “A paz ? Mas eu amo a guerra! A paz? Mas eu gosto é da luta, da agressão, da chacina. Chamam-me de “Lobo”. De mais, não tenho irmão algum. E tu, quem és? Por que me perturbas no alto do monte, onde procuro refúgio?”

            E Francisco, com todo carinho, respondeu: “Eu sou Francisco de Assis, pobre servo de Deus. Sou irmão de todas as criaturas. Sou, pois, teu irmão.”

            O bandido então lhe perguntou: “E por que vens com teus companheiros neste lugar ermo e triste, que afinal me pertence?  Este lugar não é teu, nem dos outros frades que te acompanham.”

            “Realmente não é meu, respondeu Francisco, eu e os meus frades nada possuímos no mundo. Aqui estamos por algum tempo, pois aqui desejamos fazer meditação e penitência”.

            “Vai-te, frade. Deixa estas terras, antes que seja tarde. Poderei esmagar-te com os meus pés”.

            Francisco, com seu olhar sereno e firme, dominou o feroz ladrão. E voltando a falar, assim disse:

            “Irmão ‘Lobo’, tu terás de começar vida nova e feliz. Irás deixar o crime e a maldade, antes que o castigo divino caia sobre a tua cabeça. Muda de vida enquanto é tempo, hoje mesmo, peço-te de joelhos. Deixa para sempre a vida de miséria moral e vem comigo. Serás nosso companheiro e terás as riquezas do céu”.

            Perturbou-se o bandido ao ouvir a voz mansa de Francisco. Ficou confuso, e docilmente entregou-se à força do amor. Com sinceridade pediu perdão de todos os seus pecados. Entrou para a comunidade do Monte Alverne, e ao receber o hábito e o cordão, chamou-se Frei Cordeiro. Cordeiro foi daí por diante.

A PERFEITA HUMILDADE

O BISPO DE ÍMOLA

            Conta-nos São Boaventura que, certo dia, Francisco chegou a Ímola e dirigiu-se ao bispo local para lhe pedir, humildemente, autorização par pregar ao povo, pois os irmãos nunca podiam pregar sem o consentimento do bispo da diocese.

            Aconteceu que o bispo não estava de bom humor, e ao ouvir o pedido de Francisco, respondeu-lhe com certa dureza:

            — Meu irmão, eu mesmo prego a meu povo, e isto basta !

            Francisco inclinou a cabeça, com toda humildade, e saiu. No entanto, não havia passado ainda uma hora, e lá estava ele de novo.

            O bispo, ao vê-lo, ficou visivelmente irritado e lhe perguntou o que vinha fazer de novo. Francisco explicou-se:

            “— Senhor, quando um pai expulsa o filho por uma porta, este deve encontrar uma outra para entrar.”

            Vencido com tanta humildade, o bispo, sorrindo, abraçou-o, dizendo-lhe:

            — Daqui por diante, tu e teus companheiros tendes permissão de pregar em minha diocese, sem restrição alguma !

            Certo dia, em um dos Capítulos Gerais, Francisco aproveitou para explicar sobre a perfeita humildade, disse-lhes ele:

            “Eis que os frades me convidam ao capítulo, com grande devoção e reverência. Movido por esta piedade, eu vou. Em assembléia, eles me suplicam que anuncie a palavra de Deus e pregue. Levanto-me e lhes prego o que o Espírito Santo me ensinou. Suponhamos que, terminado o sermão, todos me digam, aos gritos: ‘Não queremos mais que tu nos dirijas, pois não tens a eloquência que o cargo requer e, além do mais, és demasiado simples  e ignorante. Envergonhar-nos-íamos de um superior tão simples e tão desprezível.’ E assim me despedissem com grande vergonha e desprezo. Parece-me que não seria perfeito frade menor, se não me alegrasse, quando eles me humilhassem e não me quisessem mais como superior, do mesmo modo como me alegraria, se me honrassem e respeitassem !”  

O TRONO DE LÚCIFER

            Na Legenda de São Boaventura, encontramos o seguinte episódio, narrado por Frei Pacífico, que conta-nos que em 1214, quando acompanhava Francisco, em uma visita a uma igreja abandonada, enquanto rezava, entrou em êxtase e viu no céu muitos tronos, entre os quais, se destacava um, mais elevado e mais luminoso, ornado de pedras preciosas. Encantado com o que via, perguntava-se a quem pertencia. Ouviu, então, uma voz:

            — Este era o assento de Lúcifer e, agora, está reservado para o humilde Francisco. 

            Quando se preparavam para sair da igreja, Frei Pacífico jogou-se aos pés de Francisco, dizendo:

            — Pai, perdoa-me os meus pecados e pede ao Senhor que me perdoe e tenha piedade de mim !

            Francisco deu-lhe a mão, ergueu-o e percebeu que ele havia tido uma visão, enquanto rezava. Parecia todo transfigurado.

            Frei Pacífico, querendo disfarçar para não lhe falar da visão que tivera, perguntou:

            — Irmão Francisco, que pensas de ti mesmo ?

            — Eu penso que sou mais pecador que qualquer homem deste mundo. Respondeu Francisco.

            Logo, frei Pacífico ouviu a voz do Espírito Santo em seu coração que dizia:

            “Fica certo de que tiveste uma verdadeira visão, porque a humildade levará o humilde para o trono que foi perdido pela soberba.”

POR QUE A TI?

            Naquele tempo, Francisco estava sendo acompanhado por Frei Masseu em suas saídas apostólicas. Frei Masseu era um dos Irmãos mais queridos da fraternidade. Os irmãos já sabiam que, quando Frei Masseu saía para pedir esmolas, o dia era de boa colheita. Seus modos agradáveis cativavam a todos.

            Nesse tempo Francisco já era conhecido e amado por todos.

Fazia muitos dias que Frei Masseu estava intrigado e não conseguia entender por que todo mundo ia atrás de Francisco.

            Um dia quando caminhavam em silêncio, soltou a pergunta: “Por que a ti?”

            Francisco não entendeu a pergunta e continuou em silêncio. Um pouco depois, com voz mais forte, veio a pergunta outra vez:

            “Por que a ti mais do que a outro qualquer?”

Francisco perguntou: “Que queres dizer com isso, irmão Masseu?”

Francisco não entendo nada. De acordo com as regras do mundo, tu, Francisco de Assis, não tens nenhum motivo para cativar a atenção popular.

Não és bonito, porque todos querem ver-te? Não és eloqüente, porque todos querem ouvir-te? Não és sábio, porque todos querem consultar-te? Por que é que todo mundo acorre a ti quando não tens nada para atrair? Qual é o segredo do teu fascínio?

Quando ouviu isso Francisco ficou emocionado e louvou o Senhor dizendo: “Obrigado, Senhor, por teres revelado as grandes verdades às almas transparentes”.

Depois respondeu a Masseu: “Queres saber porque todos vêm a mim. Eu vou dizer: é para confundir. Ó Frei Masseu, Deus olhou para terra e não encontrou criatura mais incapaz, inútil, ignorante e ridícula do que eu. Justamente por isso, Ele me escolheu, para ficar bem claro diante de todo mundo que o único Magnífico é o Senhor.

            Pois se eu tivesse uma bela figura, uma eloqüência arrebatadora, o povo ia dizer: é a sua beleza, é a sua sabedoria, é a sua eloqüência. Mas como não tenho nada disso, as pessoas são obrigadas a concluir que é o Senhor.

Em resumo, ele me escolheu para confundir a nobreza, a grandeza, a fortaleza, a beleza e a sabedoria do mundo”.

E concluiu: Frei Masseu, nós nada temos, tudo é dom de Deus. E o homem que se apropria dos dons de Deus é um ladrão. O irmão que se envaidece por suas qualidades (que não lhe pertencem) é um ladrão vulgar.

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