Mudanças no Catolicismo?
Ventos de mudança para o catolicismo?
A passos lentos, testemunhamos a transformação sonhada por João XXIII e executada 50 anos depois pelo Papa Francisco.
Por Mirticeli Dias de Medeiros*
O último sínodo para os bispos, que foi dedicado aos jovens, sinalizou o quanto a Igreja Católica na era Francisco assume uma postura diferente diante do homem moderno. Dizer que o atual pontificado não traz nenhuma novidade demonstra um total desconhecimento em relação ao magistério contemporâneo. Desde João XXIII, nenhum outro pontífice havia abalado as estruturas da cúria romana – no bom sentido do termo – da maneira que o atual tem feito. E aqui não se trata somente de uma mudança do ponto de vista organizacional, mas no tocante à natureza desse organismo que, há quase um milênio, assume a tarefa de auxiliar o papa no governo da Igreja.
Até o século XI, não existia propriamente uma cúria, mas uma rede de colaboradores do romano pontífice dotado de plenitudo potestatis, ou seja, que reunia na mesma pessoa as funções de legislar, julgar e governar. Desse período em diante, a cúria passou a ser um órgão de centralização administrativa e jurídica, dividida em departamentos, tribunais e comissões. A mudança que Francisco promove nessa estrutura, não é só para ampliar sua representatividade internacional – algo iniciado por Paulo VI – mas de transformá-la em um instrumento de unificação e de serviço para o restante da Igreja Católica, deixando de lado um pouco do espírito autorreferencial que a caracterizou durante séculos. E é por isso que, em 2019, se espera a oficialização de uma transformação que, sorrateiramente, já se nota: Paolo Ruffini, atual secretário para a comunicação vaticana, é o primeiro leigo da história a ocupar o cargo de presidente de um conselho pontifício. Além disso, é de se esperar que o próximo “prefeito” para a Congregação para os leigos, vida e família seja um leigo ou uma leiga, o que não é factível até o momento, porque, pela regra promulgada por João Paulo II, apenas um cardeal pode presidir uma congregação. A nova constituição sobre a cúria romana poderá flexibilizar esse item, permitindo, dessa forma, que não somente os prelados exerçam a autoridade suprema nesses dicastérios.
João Paulo II e Bento XVI, apesar das boas intenções, foram papas que acabaram sendo absorvidos pela estrutura. E é por isso que se intuía, às vésperas do conclave de 2013, que um papa “não curial” poderia fazer a diferença e seria necessário para os tempos de hoje. Em um passado não muito distante, mais precisamente na década de 60, foram as resistências impostas pela cúria que impediram Paulo VI de levar adiante o espírito revolucionário de João XXIII, o papa bom; o mesmo que, corajosamente, em meio ao advento do feminismo, disse que as mulheres “estão no mesmo nível dos homens”, destacando a complementaridade entre homem e mulher.
Pela primeira vez na história, um evento eclesial organizado pelo Vaticano reitera que as mulheres devem, sim, participar ativamente das decisões da Igreja: e em todas as instâncias (uma novidade em absoluto!). Apesar de o assunto já ter sido tratado em outras ocasiões pelo Papa Francisco, é a primeira vez que o episcopado do mundo inteiro, representado pelos padres sinodais, em outubro deste ano, apresentou a questão sem reservas – algo que, até um tempo atrás, era impensável. E em meio a esses ventos de novidade, a comissão instituída por Francisco para debater a possibilidade do diaconato feminino ganha corpo. Uma das vozes católicas mais sensíveis à questão feminina, o cardeal alemão Reinhard Marx, disse que já passou da hora de discutir seriamente o assunto.
O que esperar do ano que vem? Teremos Sínodo sobre a Amazônia, o lançamento da nova constituição apostólica de reforma da cúria romana e visitas apostólicas internacionais a países jamais visitados que poderão definir os rumos da Igreja daqui para frente. Se até agora todos se surpreenderam com as mudanças, é hora de se preparar para um ano rico em debates, no qual o catolicismo se deparará com seus maiores tabus e demonstrará, a partir disso, que tipo de diálogo pretende manter ou inaugurar com a sociedade contemporânea.
*Mirticeli Dias de Medeiros é jornalista e mestre em História da Igreja pela Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma. Desde 2009, cobre primordialmente o Vaticano para meios de comunicação no Brasil e na Itália, sendo uma das poucas jornalistas brasileiras credenciadas como vaticanista junto à Sala de Imprensa da Santa Sé.
fonte: http://domtotal.com