A missão não termina aqui

Capítulo 06  

 A MISSÃO NÃO TERMINA AQUI…

            Francisco de Assis tinha iniciado sua missão solitariamente. A seguir, o Senhor lhe deu um povo. Deu-lhe um ideal e lhe infundiu uma alma. Depois, conferiu-lhe um governo. Agora, acabava de lhe entregar um código de vida, sua tarefa com os irmãos estava no fim, só lhe faltava dar bom exemplo e rezar por eles.

            Agora queria apenas contemplar os olhos do Senhor, perder-se neles e fazer seus todos os traços de seu rosto bendito. Queria regressar à solidão das montanhas.  Tomou Leão e Ângelo e começaram uma viagem para o vale de Rieti.

            Francisco estava muito feliz e apesar do corpo tão doente, caminhava alegremente pela neve, como se não tivesse doença alguma. Quando os irmãos o advertiam, respondia: Deus é, e basta! Isso lhe dava uma força inesgotável.

            Antes de chegarem às montanhas, descansaram, durante um dia, numa aldeia. Francisco subiu à torre da Igreja e passou o dia inteiro acocorado, com a alma imersa em Deus. Os irmãos foram pedir comida pelas casas, mas por mais que insistissem, não conseguiram convencer Francisco a comer. Onde ele estava, de vez em quando, passavam rajadas de ventos geladas, que entravam violentamente, e ele parecia que não sentia nada.

            À noite conseguiram um lugar para dormir. Antes de deitar-se, Frei Leão disse: “Irmão Francisco, tem piedade de ti mesmo. Não dizes na Regra que nós devemos cuidar uns dos outros, como faz uma mãe com  seu filho? Por que não deixas que cuidemos de ti?

            “Oh! Irmão Leão! – respondeu Francisco. Pus essas palavras nas Regras por causa da fragilidade humana. Se nos lançássemos, sem nada, no amor de Deus, não precisaríamos de nenhuma mãe para cuidar de nós. Deus é a mãe. Deus é o calor. Deus é a esposa, o filho, o alimento…

Quantas vezes vou ter que repetir, querido Leão, que quando a alma pensa em Deus desaparecem o frio, a fome e o medo? Não dá para acreditar, mas neste dia o Senhor me deu mais calor que um fogão e mais ternura que uma mãe.

No dia seguinte continuaram a viagem, até que chegaram ao Vale de Rieti e subiram a montanha chamada Fonte Colombo. Próximo dali morava Dona Columba, uma grande admiradora de Francisco, e a quem ele tratava como uma mãe. Esta, conhecendo os desejos de Francisco, tinha construído uma choça com galhos e barro, o que deixou Francisco repleto de alegria.

Francisco passou duas semanas em completa solidão. Foram dias de repleta consolação. Diante dele estava a mãe natureza, linda a expressar a beleza de seu criador. Tudo lembrava Deus, mas seu trabalho cotidiano era transcender a lembrança e ficar com o lembrado, estabelecendo uma relação inefável e silenciosa Eu – Tu. Francisco acolhia Deus que se abria e Deus acolhia Francisco que se entregava.

Passados as duas semanas, voltou para onde estavam os irmãos, que lhe aguardavam ansiosamente. Que reencontro! Parecia que não se viam desde uma eternidade, foi um ágape inesquecível.

O PRESÉPIO DE GRÉCCIO

            Certo dia, Francisco disse à Leão: “Irmão Leão, se Deus tivesse alma, chamar-se-ia PAZ. Dizem que a gente começa a dar valor a saúde, depois que a perde. Eu perdi a paz. Agora que a recuperei, sei o quanto é preciosa. Mas seria avareza guardá-la para a saborearmos sozinhos. Irmãos, vamos sair pelo mundo e semear a paz.”

            Saíram e foram a uma aldeia chamada Gréccio. Lá, Francisco falou-lhes da paz do Natal, e falou do Menino Jesus com tanta emoção, que não pode conter o pranto. As pessoas também começaram a chorar. Um senhor aproximou-se de Francisco, tomou-o pela mão e o levou sem dizer nada para sua casa. O homem chamava-se João Velita.

            No outro lado do povoado, João Velita tinha uma propriedade com características especiais. Era parte da montanha, onde havia um imponente rochedo e uma série de grutas naturais.

            João Velita disse a Francisco: “Irmão, sei que gostas de lugares solitários para falar com Deus, com muito prazer eu entrego a ti e aos teus irmãos esse lugar que estás vendo.

            Francisco ficou impressionado com o aspecto imponente das rochas,  aceitou a oferta, e pediu que João Velita construísse um eremitério rude, de galhos e barro junto da gruta grande. E lembrando da maravilha do Natal falou para o irmão: “Irmão João, neste ano, a paz voltou a minha alma, bendito seja Deus. Gostaria de celebrar o Nascimento do Senhor de uma forma especialíssima. Por isso vais preparar para mim, naquela gruta grande ali em frente, um presépio verdadeiro. Leva para lá, um boi e um asno para termos a impressão exata de como aconteceram as coisas na gruta de Belém. Anuncia esse acontecimento aos habitantes de Gréccio e convoca-os solenemente para a Noite Feliz.

            Chegou o grande dia. Todos os irmãos menores dos eremitérios próximos de Gréccio estavam na gruta. Francisco queria prepará-los para viver plenamente o mistério do Natal. E começou a falar-lhes assim: “Irmãos, Deus chegará esta noite e responderá a todas as nossas expectativas. Deus virá montado em um humilde burrinho, virá no seio de uma Mãe Pura. Deus virá esta noite, e ferirá com um raio de luz as escuridões ocultas e mostrará seu rosto para todas as pessoas. Deus virá esta noite, e nos indicará os caminhos, e nós avançaremos por suas sendas. Virá com a bandeira da paz e nos infundirá vida eterna. Já está chegando !”

 A noite chegou, e os habitantes  de Gréccio juntaram-se aos irmãos menores na gruta, para celebrarem o Natal do Senhor. Tinham preparado um enorme presépio na entrada da gruta. Junto do Presépio, de pé, repleto de felicidade, estava Francisco, que esperava o começo da liturgia. Antes  de começar, vestiu a dalmática para oficiar como diácono. A missa começou. Quando chegou o momento, anunciou, com voz sonora, a “boa nova” do Nascimento do Senhor. Fechou o missal. Saiu do altar. Aproximou-se do povo e do presépio.

            Quando começou a falar parecia que ia cair em pranto. Repetia muitas vezes: “Amor! Amor! Amor!” Depois começou a repetir palavras soltas: “Infância, Pobreza, Paz, Salvação” e no fim dizia: “Amor! Amor! Amor!”.

            De repente a ameaça de choro desapareceu e pouco a pouco, Francisco ficou completamente sereno e ausente. Parecia que tinha perdido a consciência e se ausentado por completo.

            Esquecendo do povo, começou a dirigir a palavra a “alguém” que, supostamente, encontrava-se em cima do presépio, como se não existisse mais ninguém no mundo. Agia como uma mãe com seu bebê. Pronunciava “JESUS”, “Menino de Belém” com um carinho inefável. Inclinava-se para a manjedoura, como se fosse beijar alguém ou toma-lo nos braços.

            João Velita garantiu ter visto, com os próprios olhos, o Menino Jesus adormecido. Ao sentir as carícias de Francisco, o Menino despertou e sorriu para Francisco.

            Foi uma noite inesquecível. Todos os habitantes de Gréccio tiveram a impressão de que sua gruta tinha sido transformada numa Nova Belém, e contavam milagres.

            Francisco viveu os meses do inverno e da primavera, de eremitério em eremitério. Apresentava-se nas praças e falava ao povo sobre a Pobreza, a Paz e o Amor e no fim explicava-lhes a Paixão do Senhor de maneira tão apaixonada, que o público se retirava chorando.

            Um dia, as enfermidades aumentaram, não podia nem se mover. Os irmãos levaram-no para a choça da Porciúncula.

            Ficou um dia inteiro acocorado num canto da choça, rodeado por Leão, Masseu, Ângelo e Rufino. Os irmãos o amavam mais que uma mãe, e não saíam de perto dele nenhum minuto. As vezes, as dores superavam sua capacidade de resistência e ele deixava escapar alguns gemidos. Em certo momento, a dor foi tão insuportável que Francisco se curvou todo. Frei Leão não pode conter as lágrimas. Frei Masseu, desesperado, disse: “Irmão Francisco, não há remédio humano que te possa aliviar. Mas nós sabemos que consolação é para ti, o Evangelho. Queres que chamemos Frei Cesário, especialista em Sagradas Escrituras, para que te faça alguns comentários e assim te alivie as dores?”

            Francisco continuou curvado, sem dizer nada. Depois de algum tempo, levantou a cabeça e com os olhos fechados, respondeu em tom humilde: “Não. Não faz falta. Já conheço a Cristo, pobre e crucificado e isso me basta.” E tendo dito isso, os músculos do seu rosto contraídos pela dor, relaxaram-se imediatamente. Essas palavras eram a síntese de seu ideal.

            Pensando em lhe dar maior alívio, Frei Leão acrescentou: “Irmão Francisco, pensa também em Jesus Ressuscitado, essa lembrança há de consolar tua alma.”

            Francisco respondeu: “Os que não sabem do Crucificado, não sabem nada do Ressuscitado. Os que não falam do Crucificado também não podem falar do Ressuscitado. Os que não passam pela sexta-feira Santa, nunca vão chegar ao Domingo da Ressurreição.”

            Nesse momento Francisco levantou, como um homem rejuvenescido, quase sem esforço . Os irmãos se entreolharam assustados. Levantou os braços e disse: “Escreve irmão Leão, não há nada mais alto que o cume do calvário. Não o supera nem o Pico da Ressurreição. Ou melhor, os dois são o mesmo Pico. Irmão leão, já celebrei a noite de Getsêmani. Já passei pelos cenários de Anás, Caifás e Herodes. Percorri toda a Via-Sacra. Para a consumação só me falta escalar o Calvário. Depois do Calvário, não há mais nada. É aí que nasce a Ressurreição.

            Vamos para essa solitária e sacrossanta montanha que me foi dada pelo Conde Orlando. Algo me diz que lá podem acontecer coisas importantes”.

            Levou consigo Leão, Ângelo, Rufino e Masseu.

            Disse à Frei Masseu: “Irmão, tu serás nosso guardião e te obedeceremos como ao próprio Jesus. Preocupa-te com  o sustento de cada dia, de maneira que não tenhamos outra preocupação senão a de nos dedicarmos ao Senhor”.

            Depois de dois dias, Francisco já não agüentava o caminho, suas forças tinham se esgotado. Mas precisava chegar ao Monte Alverne a qualquer custo, Frei Masseu então entrou numa aldeia para conseguir um asno e sue arrieiro.

            Bateu na primeira porta e disse ao dono:  “ – Meu Senhor, somos cinco irmãos que caminhamos ao encontro de Deus. Quatro de nós somos capazes de andar centenas de léguas. Mas, conosco vai um que não consegue dar um passo. E o mais grave é que esse um é o mais importante de todos.

— Quem é e como se chama? – perguntou o arrieiro.

— Francisco de Assis.

— O que chamam de Santo?

— Ele mesmo. – respondeu Masseu.

— Para mim vai ser uma honra transportar uma carga tão sagrada. Vamos”.

Continuaram o caminho. Francisco ia sentado no asno, de olhos fechados, em oração.

            Depois de percorrerem muitas léguas, o arrieiro não agüentou mais e  soltou o que estava querendo dizer desde o começo: “Pai Francisco, é difícil que possas calcular a altura em que a opinião pública te colocou. Dizem que quem te vê, vê Cristo; quem olha para ti, fica inundado de paz, e quem te toca, é curado na mesma hora. Pai venerado, permita-me expressar um desejo: tomara que sejas tão santo quanto o povo crê, e que nunca enganes a boa opinião que o povo de Deus formou a teu respeito”.

            Ouvindo isso, Francisco parecia não acreditar, pediu que parassem o asno e o ajudassem a descer. Ajoelhou-se, com dificuldade, aos pés do arrieiro, beijou-os e disse: “O céu e a terra me ajudem a te agradecer, irmão. Nunca saíram de uma boca humana palavras tão sábias. Bendita seja a tua boca”. E lhe beijou ao pés outra vez. O homem não sabia para onde olhar.

            Continuaram o caminho até que chegaram ao Monte Alverne. De longe, tinha um aspecto ameaçador para os inimigos e de proteção para os amigos.

            Quando Francisco viu o monte, sentiu seu coração estremecer. Pediu que o descessem do asno, ajoelhou-se e disse: “Ó Alverne, Alverne, Calvário, Alverne! Bendito os olhos que te contemplam e os pés que pisam tuas alturas.

            Continuaram caminhando, então perguntou à Leão: “Irmão Leão, qual é o emblema que coroa os cumes de nossas montanhas?”

— A Cruz, Irmão Francisco.

— Isso. Falta uma cruz na cabeça de nosso bem-amado Alverne.

— Vamos plantar uma, disse Frei Leão.

— Pode ser que não precise. Quem sabe se o próprio Senhor não vai se encarregar de plantá-la! – Respondeu Francisco.

Ao chegarem no ponto onde o Conde Orlando tinha construído o eremitério, Francisco manifestou o desejo de ficar a sós com Deus e foi para uma choça afastada do eremitério onde os irmãos ficaram. O único ponto de união entre eles seria Frei Leão.

            No Monte Alverne, Francisco teve momentos de consolação até o delírio, e momentos de profundo Getsêmani. Fazia um ano e meio que não era visitado pela desolação, agora ela tinha voltado.

            Os anos de luta pelo ideal despertaram, outra vez, em sua alma. As lembranças dolorosas o incomodava. Renovaram-se as cicatrizes. Francisco deixava-se levar pelos mais negros pressentimentos. Pensava assim: “Se estando eu no meio deles, fizeram o que fizeram, que acontecerá agora que estão sozinhos? Que será dos meus irmãos depois da minha morte?”

            Em um dos piores momentos, saiu da cabana a toda pressa, como quem foge de um perigo. Até que se acalmou e pediu perdão a Deus por tê-lo ofendido, sentindo hostilidade para com os opositores, que também eram filhos de Deus. Até que foi recuperando a paz.

            Recuperada a Paz, Francisco viveu, por alguns dias, abismado no mar de Deus.

            Frei Leão garante que o viu elevado, três ou quatro metros acima do solo. Curioso, Frei Leão bisbilhotava Francisco, com a mais santa das intenções. Um dia, surpreendeu-o elevado vários metros acima da terra. Aproximou-se de mansinho, beijou-lhe os pés e foi embora, dizendo: “Tem piedade, Senhor, deste pobre pecador, e que eu ache graça diante de teus olhos, pelos méritos de Francisco.

            Diante da santa curiosidade do amigo e confidente, Francisco permanecia calado, entretanto, não se sentia bem. Quando resolveu fazer um mês de jejum rigoroso, na solidão absoluta, pediu a Frei Leão que ficasse na porta do oratório dos Irmãos. Francisco afastou-se a certa distância e chamou-o com voz forte. Leão respondeu na mesma hora. Afastou-se mais e gritou por Leão, com toda força. Dessa vez o irmão Leão não respondeu. Este era o lugar conveniente, pensou Francisco.

            O lugar escolhido era uma pequena planície em cima de uma rocha separada da terra firme, por um precipício de uns quarenta metros. Os irmãos colocaram um tronco sobre o precipício, para servir de ponte.

            Francisco deu instruções para que ninguém se aproximasse daquele lugar. Uma vez por dia, Frei Leão poderia levar-lhe pão e água e voltaria à noite para rezar matinas. Não devia porém, atravessar a ponte sem gritar uma senha, que seria: “Domine labia mea aperies”. Se Francisco respondesse com o restante do Salmo, ele poderia atravessar, caso contrário deveria voltar.

            Conta-nos Frei Leão, que uma certa noite foi, à hora de costume, rezar matinas com Francisco. Quando gritou a senha, Francisco não respondeu. Em vez de voltar. Atravessou a ponte e entrou de mansinho na cabana e não encontrou Francisco e o encontrou de joelhos, com o rosto e as mãos levantados para o céu. Ouviu-o dizer, com fervor de espírito: “Quem és tu e quem sou eu”. Repetia essas palavras muitas vezes e não dizia mais nada.

            Muito maravilhado, Frei Leão levantou os olhos para o céu e viu chegar do alto, uma chama de fogo belíssima, a qual descendo, pousava sobre a cabeça de Francisco. Dessa chama saía uma voz que falava com Francisco; mas Frei Leão não distinguia as palavras. Julgando-se indigno de estar ali, voltou um pouco para trás, para ver de longe o fim.

            Viu Francisco abrir, três vezes, as mãos para a chama, e finalmente, a chama voltar para o céu.

            Alegre com a visão, ia voltando para sua cela, quando Francisco ouviu o barulho de folhas pisadas; mandou, pela Santa Obediência, que quem quer fosse não se movesse. Então, Frei Leão, obediente, ficou quieto e esperou com muito medo, de que Francisco não permitisse mas sua companhia.

— Quem és? Perguntou Francisco.

— Sou o Irmão Leão, meu pai – respondeu tremendo.

— Por que vieste aqui, ovelhinha de Deus? Não te disse para não me espiar? Dize-me, por Santa Obediência, se viste ou ouviste alguma coisa?

Frei Leão contou o que tinha visto e ouvido e de joelhos e entre lágrimas pediu perdão à Francisco.

O IRMÃO FALCÃO

            Foi nesse tempo que Francisco travou uma amizade com um falcão. Certo dia, Francisco estava de pé sobre uma rocha, admirando a beleza das criaturas, quando um temível falcão voltava da caça. Francisco admirou o sentido de orientação e a extraordinária facilidade, com que a ave aterrizou em uma pequena saliência da rocha.

            O Irmão sentiu carinho e admiração por aquela criatura, e a ave percebeu esse carinho, e retribuiu sendo dócil e amiga dele.

            O falcão passava, todos os dias, pela choça de Francisco. A amizade entre eles se tornou tão profunda que, à meia-noite, o falcão vinha bater as asas na choça, acordando-o para a oração de matinas, quando Francisco ficava doente, o falcão não o acordava, ou deixava para acordá-lo mais tarde. Quando Francisco se despediu do Alverne, fez uma menção especial ao irmão falcão.

OS ESTIGMAS

            “Irmão Leão, abre o missal ao acaso e lê as primeiras palavras que teus olhos encontrarem.”

 As palavras eram estas: “Eis que subimos a Jerusalém e o Filho do Homem vai ser preso, torturado e crucificado; mas ressuscitará no terceiro dia”.

            Francisco mandou Frei Leão fazer a mesma coisa, uma segunda e terceira vez, e sempre saíram palavras referentes à Paixão do Senhor.

            O Irmão ficou submerso nos abismos da dor e do amor do Crucificado. Sentia um desejo fortíssimo de sentir em si mesmo a dor e o amor que Jesus sentiu quando estava na cruz.

            Dizia ele: “Meu Jesus, sofreste por mim porque me amaste, e me amaste porque  sofreste por mim. Amaste-me gratuitamente. Teu amor não tinha nenhuma utilidade, nenhuma finalidade. Não sofreste para me redimir, mas para me amar e por me amar”.

            Depois de mergulhar no mistério da Paixão, Francisco saiu da cabana e começou a gritar desesperadamente: “O Amor não é amado, o Amor não é amado!”. Seu pensamento ardia inteiro só de pensar que o Amor não fora amado.

            Nesta noite desejava tirar Jesus da cruz e sofrer no lugar dele. Nessa noite, era a festa da Exaltação da Cruz (14 de setembro de 1224) e foi nessa mesma noite que Francisco fez a seguinte oração:

            “Senhor Jesus, peço-te que me concedas duas graças antes que eu morra. A primeira é a de sentir em vida, em minha alma e meu corpo, o mais possível, aquela dor que tu doce Jesus, suportaste naquela hora de tua acerba paixão.

            A Segunda é a de sentir em meu coração, o mais possível, aquele extraordinário amor do qual tu, Filho de Deus, estavas tão tomado a ponte de suportar por tua própria vontade, uma tão grande paixão por nós, pecadores”.

            Pouco a pouco, Francisco sentiu-se envolvido por um abraço misterioso e radical. Depois de um tempo se deu conta de uma luz muito forte diante dele e abriu os olhos.

            Viu então um Serafim com seis asas de fogo, e ao chegar mais perto percebeu, embaixo das asas, o Amado Crucificado. De repente sentiu um raio cair sobre seu corpo, era uma dor sobre-humana, deu um grito desesperador. Depois sentiu outro raio e assim foram cinco raios que se descarregaram sobre ele.

            Francisco disse: “Meu Jesus Crucificado, descarrega sem piedade, sobre mim, todas as tuas dores. Mais, Senhor, mais, quero acabar com toda a dor da terra, reduzindo-a a amor”.

            Com tudo não era preciso mais. Tinha chegado à consumação. Francisco estava crucificado.

            A visão desapareceu. Estava amanhecendo e Frei Leão encontrou Francisco caído ao chão com as mãos, os pés e o lado perfurados, manando muito sangue. Leão era a única pessoa que Francisco deixava que cuidasse e visse suas feridas. Ele as sentia doer horrivelmente.

            No dia 30 de setembro de 1224, Francisco despediu-se do Monte Alverne e dos irmãos daquele eremitério. Sabia que não voltaria mais a vê-los. E saiu em viagem apenas com Frei Leão.

            No caminho passaram a noite em uma gruta, lá teve muita febre, por causa do sangue perdido com os estigmas. E então pensava, quanta febre não deve ter sentido Jesus, antes de morrer, e bendizia ao Senhor por isso.

            Frei Leão cuidava incansavelmente de Francisco, fazendo por ele tudo que pudesse, para aliviar ou confortar suas dores.

            No dia seguinte, Leão acordou assustado, por causa de um pesadelo, e procurando Francisco percebeu que não estava na gruta, e o encontrou no alto de uma colina, com os braços abertos, olhando para o sol. Quando viu Leão disse-lhe cheio de alegria:

            “Irmão Leão, esta noite vi numerosos anjos. Todos eram músicos e estavam preparando os instrumentos para me receber com um grande concerto no céu. Que alegria, Irmão Leão! A eternidade está à vista. Como me sinto feliz!”.

            Frei Leão então lhe disse já chorando: “Pois eu não me sinto tão feliz”.

— Que é isso, querida Ovelhinha de Deus? – Perguntou Francisco.

— Irmão Francisco, eu também tive sonhos esta noite e não foram bonitos como os teus. Sonhei que, depois da tua morte, os ministros vão me perseguir, prender e açoitar, e que vou andar fugindo pelas montanhas, para escapar da ira dos intelectuais.

Por sorte, Frei Leão começou a chorar e cobriu os olhos e assim não pode ver a reação de Francisco. Seu rosto cobriu-se de uma profunda tristeza e vieram à tona todas as antigas feridas. Sabia que eles eram capazes de tudo isso.

            E de fato aconteceu. Frei Leão sobreviveu quase quarenta anos a Francisco e foi vítima de todo tipo de perseguições da parte dos ministros.

            Francisco sentia-se desesperado, mas como ia consolar Frei Leão, estando triste dessa forma?  Reagiu, afogou a tristeza, aproximou-se de Leão, deu-lhe um abraço e disse: “Campeão, lembra-te: embaixo do arco da aurora, eu vou esperar, de pé, a tua entrada triunfal na eternidade. Virás do Campo de batalha, coberto de cicatrizes; cada cicatriz vai brilhar como uma esmeralda. Quanto mais feridas receberes, mais resplandecerás no paraíso”.

            Frei Leão consolou-se e os dois começaram a descer a colina. Francisco cheio de tristeza por ter sentido aversão contra os ministros, confessou seu pecado à Leão que o absolveu.

A PERFEITA ALEGRIA

            Certo dia, em Santa Maria dos Anjos, o bem-aventurado Francisco chamou frei Leão e disse-lhe: “Frei Leão, escreve!” Ele respondeu: “Eis-me, estou pronto”.

            “Escreve o que é a perfeita alegria. Chega um enviado e informa que todos os mestres de Paris entraram para a Ordem. Escreve: isso não é uma perfeita alegria. E também diz que entraram para a Ordem todos os prelados para lá dos Alpes, não só arcebispos e bispos, mas até mesmo o rei da França e o rei da Inglaterra. Escreve: isso não é uma perfeita alegria. E se te chega ainda a notícia de que meus frades foram até aos infiéis e os converteram todos à fé ou então de que eu recebi de Deus muita graça para curar os doentes e fazer muitos milagres, eu ainda te digo: isso não é uma perfeita alegria”.

            “Mas o que é a perfeita alegria”, perguntou então frei Leão.

            “Veja, voltando de Perúsia no meio da noite, eu chego aqui. É um inverno lamacento. E tão rígido que, na extremidade de minha túnica, formam-se barras de água congelada, que me batem continuamente nas pernas a ponto de fazer sair sangue das feridas assim abertas. E eu, cheio de lama, de frio e de gelo, chego à porta. Depois de ter batido e chamado longamente, vem um frade e pergunta: “Quem és?” Eu respondo: “Frei Francisco”. Ele retruca: “Vai embora, esta não é uma hora decente para chegares, não entrarás!” Como eu insisto, ele prossegue: “Vai embora, tu és um simplório e um idiota, já não podes vir aqui. Nós já somos tantos e tais que não precisamos mais de ti!”. Eu continuo diante da porta, dizendo: “Por amor de Deus, acolham-me por esta noite!”. Pois bem, se eu mantive a paciência e não me deixei conturbar, então posso dizer-te que isso é a perfeita alegria. E aí residem a verdadeira virtude e a salvação da alma.

*          *          *

            Certo dia, Francisco estava num caminho com Frei Leão. Francisco ia olhando para o chão, quase curvado. Então Leão perguntou:

— Que aconteceu, irmão Francisco?

— As pedras, irmão Leão, as pedras! Nunca ouviste os salmistas compararem Cristo com uma pedra? Quando vejo uma pedra no chão, logo penso em Cristo. E se pisasse uma delas, teria o mesmo pesar, como se pisasse uma hóstia consagrada. Irmão Leão, escreve: “Por trás de cada criatura está escondida uma fotografia de Cristo. Quantas vezes terei que dizer, irmão Leão, que o essencial é sempre invisível! Fecha os olhos, olha com fé, e embaixo desta primeira pedra encontrarás uma formosa imagem do Senhor.”

            Andava pelos caminhos recolhendo os vermezinhos, para que não fossem pisados. Até os vermes faziam lembrar-lhe de Nosso Senhor, conforme está no livro dos Salmos: “Sou um verme não um homem”. Para as abelhas, Francisco mandava dar mel e o melhor vinho para não morrerem de fome no frio do inverno.

            Mandou que o frei responsável pela horta deixasse sempre um canto do terreno para que também as ervas daninhas pudessem crescer sem serem incomodadas, todas as criaturas tinham direito à vida!

            Francisco gostava de conversar com as criaturas, mas não era qualquer conversa, falava-lhes do amor de Deus.

            A criação correspondia a Francisco com a mesma ternura.

            Continuaram a viagem rumo a Porciúncula. O Irmão não parava de falar da vida eterna. Francisco vivia ansioso pelo céu. Ele sofria muito. Os transtornos gástricos, a hemorragia e a febre dos estigmas, mais a doença dos olhos tinham feito de Francisco uma chaga viva. A eternidade, entre outras coisas, era descanso e fim de suas dores.

            Chegou à Porciúncula, mas lá não passou nem um dia. Durante todo o inverno e primavera, foi um apóstolo incansável, percorrendo até três ou quatro aldeias por dia. Com isso sua saúde ficou mais agravada.

            Pensando que sua morte já estava  próxima, foi à São Damião passar uns dias e assim se despedir de Clara e de suas Damas Pobres.

            Lá as dores se agravaram muito. Em dado momento ele disse a Frei Leão: “Irmão Leão, não agüento mais. Pede a Deus que retire, por um momento, sua mão”.

            Frei Leão nunca tinha se sentido tão desesperado como nessa noite. Francisco gemia e se contorcia de dor. Seus olhos eram duas chamas de sangue e pus. O fígado perecia que ia arrebentar. As chagas eram incêndios.

            “Irmão Leão, disse Francisco, retiro a palavra. Não peça a Deus que afaste sua mão. Ele é meu pai. Diz-lhe que faça como achar melhor”.

            Quando amanheceu, Clara veio e trouxe remédios e alimento. Francisco não queria tomar nada, mas por cortesia aceitou. Mas mesmo assim não conseguiu tomar. Vomitou tudo, entre espasmos de dor. Leão e Clara não puderam controlar as lágrimas.

            — Estou crucificado, irmã Clara, disse Francisco, a dor me morde como um cão raivoso.

— Pai Francisco, que é que eu posso dizer? Tu sabes tudo. Tu nos falaste tantas vezes do Senhor Crucificado.

Ouvindo isso disse: “Tens razão, irmã Clara, porque me queixar. Como pude me esquecer de meu Senhor, Pobre e Crucificado ? Louvado sejas meu Senhor, pela irmã Dor, companheira inseparável de meu Senhor Crucificado, a irmã Dor nos purifica e nos lança nos braços de Deus. Dizendo isso relaxou e adormeceu.

            Clara e Leão saíram. Leão lhe contou sobre a estigmatização e Clara perguntou à Leão: “Achas que o Pai Francisco vai deixar que eu lave e enfaixe suas chagas? Para mim seria o maior privilégio da vida”.

            Leão respondeu: “Dize adeus a esse privilégio, irmã Clara. Francisco é terrivelmente ciumento de seus segredos divinos, mesmo com as pessoas mais queridas. Muitas vezes ele me disse: “Escreve, irmão Leão: Pobre do homem que não tiver segredos com o seu Deus!”.

            No dia seguinte as dores tinha dado uma trégua, mas não por muito tempo. A noite elas voltaram com força total. Nem os remédios de Clara puderam aliviar o Irmão. Francisco se retorcia gritando por Deus. De repente as dores ultrapassaram a resistência humana, dor e prazer fundiram-se e identificaram-se. Francisco perdeu, por um momento, os sentidos. E depois contou que nesse momento ouviu um som de um violino, que parecia ser executado por um anjo. A música fez desaparecer as fronteiras entre a dor e o prazer.

            Frei Leão viu que Francisco deixou de se contorcer, e que seu rosto ficou sorridente. Pensou que tivesse morrido, mas percebeu que seu coração funcionava  normalmente.

            Depois, como quem desperta de um agradável sonho, Francisco voltou a si e contou tudo a Leão. As dores voltaram, mas embora desse para ver que sofria, o sorriso não se apartou de seus lábios.

O CÂNTICO DO IRMÃO SOL ou CÂNTICO DAS CRIATURAS

            Houve ainda, outra noite em que as dores vieram com toda força e além disso o Pai tinha lhe tirado as consolações. Naquela noite, Francisco quis morrer para se ver livre do sofrimento.

            Como resposta  ao seu desespero, Francisco ouviu essas palavras: “Querido Francisco, se  alguém te desse, em recompensa de tuas tribulações, um tesouro tão grande que valesse mais do que tudo na terra, não ficarias contente com esse presente?

Claro, Senhor.

— Então dança de alegria, Pobrezinho de Deus, canta as tuas dores porque a recompensa eterna está completamente garantida para ti”.

Francisco chamou Leão e disse:

— Irmão Leão, entrega-me o violino.

Leão pensou que ele estivesse delirando, e lhe explicou que não havia violino. Francisco então lhe disse:

— Quantas vezes terei que dizer, irmão Leão, que só os cegos verão prodígios? Vai lá fora, corta dois galhos grossos da cerejeira lá de fora e traga aqui.

Foi buscá-los. Francisco apoiou um dos galhos entre a mão e o ombro e começou a esfregá-los um no outro como se tocasse um violino. E esteve durante toda a noite assim, como se tivesse se ausentado da terra. E repensou toda a sua vida, desde a infância até ali, tudo tinha sido tão bonito. E foi nessa  noite que o mundo ganhou o Cântico do Irmão Sol.

Quando raiou o dia, Clara veio saber como ele estava. Então Francisco contou a ela e a Leão tudo o que o Senhor tinha lhe dito naquela noite, e contou que tinha composto um cântico e que eles seriam os primeiros a escutá-lo.

Endireitou-se na cama. Pegou os dois pedaços de pau e começou a esfregá-los. Abriu a boca e cantou assim:

Altíssimo, onipotente, bom Senhor,

Teus são o louvor, a glória

e a honra e todo bendizer.

            A ti somente, Altíssimo, são devidos

            e homem algum é digno sequer de nomear-te.

            Louvado sejas, meu Senhor,

            com todas as tuas criaturas,

            especialmente o senhor irmão sol,

            pois ele é dia

             e nos ilumina por si.

            E ele é belo e radiante, com grande esplendor.

            E traz teu sinal, ó Altíssimo.

            Louvado sejas, meu Senhor,

            pela irmã lua e as estrelas,

            no céu, as formaste luminosas

            e preciosas e belas.

saofranciscodeassis

Louvado sejas, meu Senhor,

            pelo irmão vento e pelo ar e as nuvens,

            e o céu sereno e toda espécie de tempo,

            pelo qual às tuas criaturas dás sustento.

            Louvado sejas, meu Senhor,

            pela irmã água,

            a qual é muito útil e humilde e preciosa e casta.

            Louvado sejas, meu Senhor,

            pelo irmão fogo,

            pelo qual iluminas a noite;

            e ele é belo e alegre

            e vigoroso e forte.

            Louvado sejas, meu Senhor,

            pela nossa irmã e mãe terra,

            que nos alimenta e governa

            e produz variados frutos

            e coloridas flores e ervas.

            Louvai e bendizei a meu Senhor

            e rendei-lhe graças

            e servi-lhe com grande humildade.

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