6º DOMINGO DA PÁSCOA ANO B (Estudo Bíblico)

João 15,9-17 – Ser amigos de Jesus

Introdução

O texto de Jo 15,9-17 é uma belíssima catequese pascal que provém da boca de Jesus. Ao proclamar que Jesus está vivo e atuando no meio de nós, a comunidade joanina compreende que Jesus Ressuscitado não é só “nossa vida” (como o enfatiza a alegoria da “videira e dos ramos”), mas também “nosso viver”, quer dizer, sua vida em nós se traduz em novo estilo de vida caracterizado pelo amor, a alegria e o serviço; tudo isso de modo contínuo, e não como momentos pontuais. (…)

1.  O texto em seu contexto

1.1. Leiamos João 15,9-17

1.2. Contextualizemos

Antes de entrar no texto situemo-nos, ainda que seja brevemente, primeiro no discurso da despedida de Jesus (cc.13-16), logo no específico do c.15 e, finalmente em alguns traços da temática bíblica da amizade          

  1. Um ‘ponto alto’ do discurso de despedida: a separação e a nova forma de presença

Quando Jesus está para findar sua missão (16,28), surgem as perguntas: Haverá uma verdadeira separação? Como continuará presente no mundo? É neste contexto (discurso da despedida, cc.13–16), que Jesus vai colocando, um a um, os modos de sua presença ressuscitada no mundo, tendo por base a obra consumada na Cruz (13,1). 

Em torno à mesa (cc.13–14) e a caminho do horto (cc.15–16) Jesus:

(1) Inclina-se e lava os pés dos discípulos, recomendando-lhes em seguida a fazer o mesmo com os demais: “Dei-vos o exemplo para que, como eu vos fiz, também vós o façais.” (13,15);    

(2) Quando o discípulo amado o interroga na intimidade da amizade, revela-lhe a traição de Judas (13,22-30); 

(3) Daí passa a uma série de confidências uma após a outra: (a) as razões de sua partida; (b) a habitação do Pai e do Filho no coração do crente; e (c) o dom do Espírito Santo, o “paráclito”, que manterá a relação contínua entre os discípulos e Ele. 

Enfim, a morte não será separação, mas o início de um novo tipo de relação mais profunda que a anterior. Para explicá-la, Jesus utilizou a comparação da “Videira, dos ramos e dos frutos”. Aos discípulos só lhes pede que permaneçam estreitamente unidos a Ele, como está o ramo que extrai da videira a seiva vital.

É aqui onde escutamos as palavras de Jesus que aquecem o coração dos discípulos: “Vós sois meus amigos”. Jesus expande esta frase revelando de onde vem sua amizade e como esta é consistente e concreta. Do mesmo modo terá que ser a contínua resposta dos discípulos a Jesus enquanto viverem seu peregrinar comunitário e missionário no mundo.

  1. A relação com o evangelho da “Videira, dos ramos e dos frutos” (15,1-17)

O primeiro que fazemos ao ler o Evangelho é relacioná-lo com a passagem anterior. Assim captamos imediatamente que a catequese da “Videira e os Ramos” não terminou, posto que a seiva da “videira” é o amor que tem sua fonte no Pai e nisto é preciso aprofundar.

O texto de João 15,1-17 é como uma grande peça articulada em três partes:

Jo 15,1-8Jo 15,9-11Jo 15,12-17

Para entendermos melhor, expliquemos com uma simples comparação (a João também agrada os símbolos, imagens e figuras).

Imaginemos o texto como uma moeda:

(1) A 1ª e a 3ª parte (vv.1-8 e 12-17) são como os dois lados de uma moeda: o primeiro descreve a união de Jesus e seus discípulos (como a videira e os ramos) e a outra o amor dos discípulos entre si. 

(2) Os dois lados estão unidos pelo amor de Jesus e do Pai do qual nos fala a 2ª parte (vv.9-11). Isto é que faz com que a moeda seja compacta;

 (3) E assim como não há moeda sem dois lados, também ninguém pode ser verdadeiro cristão se não está unido a Jesus e sustenta, ao mesmo tempo, uma relação profunda de amor com seus irmãos. O material com o qual a moeda cristã foi feita (de ouro) é o amor divino (do Pai e do Filho).

Não percamos de vista isto na leitura.

  1. A Bíblia: um convite à amizade com Deus

A amizade é um valor profundamente enraizado na mensagem bíblica. Não só se dá a nível humano, mas também entre Deus e o homem.

Belas histórias sobre a amizade humana

Se percorremos rapidamente a Bíblia, veremos como vão aparecendo uma e outra vez histórias de amizade. Algumas delas são deslumbrantes, como, por exemplo, a amizade entre Davi e Jonathan (ver 1 Sm 18,1). Igualmente a amizade entre Ruth e Noemí, onde nora e sogra, duas mulheres bem distintas em todos os sentidos, se solidarizam e chegam a ser modelo de profunda amizade (ver Rt 1,16).

E que dizer, no Novo Testamento, da amizade entre Maria e Isabel (Lc 1,39-57), entre Barnabé e Paulo (At 9,27;11,25;13-15), entre Paulo e o casal Áquila e Priscila (At 18,1-3; Rm 16,3-5).

A amizade maior que pode haver é a amizade com Deus

Deus teceu suas relações com o povo com o qual selou sua Aliança, não com a autoridade de um patrão, mas com a ternura de um amigo. Por exemplo, a vinha – símbolo de Israel –  devia sua existência ao amor de Yahveh (Is 5,1-3). (…)

Isto se nota no modo como Israel compreende e vive suas liturgias. (Ver Sl 25,14). E não só na liturgia, mas também na vida cotidiana. Assim dá a entender a literatura sapiencial, como em Sb 7,27, onde se diz que a sabedoria faz os homens “amigos de Deus”. De certo, esta frase se ilumina com o costume que havia nas cortes dos reis: nelas havia um grupo muito seleto de pessoas que se chamavam “os amigos do rei” que, a qualquer momento, tinham acesso ao rei… Os amigos do rei eram os que tinham a mais estreita e íntima relação com ele. Não é iluminadora esta imagem?

Além do mais, da amizade coletiva com Deus, expressão da Aliança, em duas passagens brilhantes do Antigo Testamento, vemos como dois personagens importantes da história da salvação têm o privilégio de serem considerados “Amigos de Deus”: Abraão e Moisés. (…)

A experiência do “amor” e da “amizade” com Deus não é novidade, mas no Evangelho notaremos que há uma “Boa Notícia” que supera todos os modos como Deus se relacionava no Antigo Testamento. A partir da pessoa de Jesus a relação com Deus e todas as relações de amizade humanas vão muito mais longe.

  1. Algumas observações iniciais sobre o texto

Como vínhamos dizendo, o tema central de Jo 15,9-17 é o amor como conteúdo da existência cristã.

Para uma maior apropriação do texto leiamos devagar o texto e notemos: (1) O centro de tudo é Jesus. Veja-se como em cada versículo aparece enfatizado o “eu” e o “meu” de Jesus; (2) A repetição do verbo “amar” (5x), do substantivo “amor” (4x) e de “amigo” (3x); (3) Os protagonistas das relações: Deus Pai, Jesus, os discípulos; (4) O que faz Jesus para expressar seu amor pelo Pai e a seus discípulos (notemos os verbos e as repetições de termos e frases); (5) O que estão chamados a fazer os discípulos para expressar de maneira concreta seu amor por Jesus, entre eles e pelo mundo (note-se os verbos e as repetições); (6) A finalidade e o resultado do amor.

O texto tem duas partes (e não percamos de vista o quadro que fizemos no contexto): (1) 15,9-11, ou “O fundamento do amor”; (2) 15,12-17, ou “As expressões do amor”.

  • O fundamento do amor (15,9-11)

Que texto tão belo! A dinâmica do amor aparece com todos os seus protagonistas, em seu duplo movimento de ser amado e amar e com o resultado desta experiência: (1) O amor fundante ou “amor primeiro” (v.9a); (2) A resposta ao “amor primeiro” (vv.9b-10); (3) O resultado do amor (v.11).

  1. O amor fundante ou “amor primeiro”: Ser “amado” (v.9a)

O amor recebido é que nos faz capazes de amar.  É assim que Jesus nos revela o segredo de sua vida, alegria e fecundidade missionária. Ele diz: “Sou amado”. Igualmente, o discípulo que é amado, também deve apresentar-se dizendo “Eu sou alguém amado”.

Quando Jesus diz: “Como o Pai me amou eu também vos amo” (v.9ª) quer dizer:   

  • A origem do amor: vem do coração do Pai e através do Filho e chega aos discípulos;
  • O modelo do amor: o amor do Pai pelo Filho é modelo do amor de Jesus aos discípulos; 
  • A intensidade do amor: o “assim como”, que Jesus inicia sua frase, implica ainda que o amor entranhado do Pai e do Filho, que é o mais estreito possível, que é perfeito e que vem da eternidade (Jo 1,1.18), é o amor que Jesus oferece aos discípulos.

Um dos grandes problemas do homem é a carência de amor. Esta é uma das causas de tantas bobagens que fazemos. Por isso o amor de Jesus é a resposta à “perda de sentido” que muitos experimentam, e também à falta de segurança, a fragilidade interna que se nota, às vezes, na personalidade; fragilidade e perda de sentido que é raiz da inconstância, infidelidade, violência, medos, depressões, etc.

Quando alguém se sente insegura, trata de esconder sua debilidade projetando uma imagem de segurança, domínio das situações e até de grandeza e êxito que de fato não se apóia na realidade; isto ocorre porque, no fundo, se sente indigna e rejeitada. No fundo tudo é carência de amor.

A primeira frase de Jesus é importante. Podemos relê-la assim: “Não importa se as mediações do amor no mundo fracassam (pai, marido, superiores). O que é a fonte do amor está aí te amando; revelando o quanto Deus-Pai te ama em Jesus. Tu lhe pertences. O Pai te ama. Jesus te ama. És precioso a seus olhos. A obra de Jesus em ti, hoje, é ajudar-te a ver tudo o que Deus-Pai tem feito por ti. Ele te devolve tua humanidade”. (…)

  1. A resposta ao “amor primeiro”: “permanecei em meu amor” (vv.9b-10)

O amor pede reciprocidade.É preciso dois. Por isso, a frase seguinte de Jesus é um convite a responder ao amor. Jesus urge a resposta com um imperativo: “Permanecei!”. E logo repete o termo duas vezes, para dizer que essa é sua situação atual em relação ao Pai, situação que os discípulos inspiram sua vida nele seguindo seu caminho (“permanecereis em meu amor”). Tão importante é que três vezes repete permanecer”.

O termo permanecer” já havia aparecido em Jo 15,4-5. O que se quer dizer está bem claro na imagem do ramo que adere (e bem aderido) à videira: viver de sua vida acolhendo (ativamente, com uma atitude pessoal) seu seiva.

Quando Jesus retoma o “permanecer” e o une “no amor” (que repete também 3x) avança com relação à proposta primeira, para referir-se a três decisões que deve tomar o discípulo em relação a Ele:

  • Deixar-se amar: Permanecer em seu amor, inserir-se nele, entrar em íntima comunhão de vida com Ele, acolhendo todos os sinais de seu amor, ou seja, deixando-se amar tal como ele quiz fazer conosco. A relação com Jesus não pode ser abstrata, supõe a tomada de consciência das formas concretas como nos tem amado e nos segue amando;
  • Atuar segundo o querer de Deus. Permanecer em seu amor, querer o que Ele quer. Ao amor “primeiro” se responde com obediência. “Obedecer” é saber responder, isso significa que se captou a mensagem do amor e se entra numa incrível sintonia na ação. Ou seja, quando alguém ama outro sempre quer fazer o que lhe agrada, quer vê-lo feliz. Essa é a resposta esperada que Jesus expressa como “guardar seus mandamentos”.
  • Ser como Jesus. Permanecer em seu amor é dar solidez a todas as nossas relações, dando-lhes a força interna do amor do Filho que permaneceu no amor do Pai, também ele, pela via concreta (e não sentimental) do “guardar seus mandamentos”. O tipo de resposta que Jesus dá ao amor do Pai é o modelo para os discípulos (tem que ler todo o evangelho para ver concretamente). À Jesus se ama, se “insere nele”, encarnando o modo como ele costumava responder ao Pai: com sua prática do Reino.

Estas três decisões do discípulo ante o amor recebido não são momentos pontuais, mas ações constantes é modo como se cultiva a “responsabilidade” (isto é a resposta ao amor).  O amor se baseia na responsabilidade.

Notemos que em duas ocasiões Jesus diz que o modo de permanecer no amor é guardando os mandamentos. Com isto quer dizer que o amor não é simples sentimento, mas atos concretos, e estes atos se resumem na frase “cumprir o mandamento”, ou seja, querer o que ele quer afinar a vida para entrar em sintonia com o projeto de Deus. Jesus é o melhor exemplo, como bem disse antes de iniciar este capítulo (ver Jo 14,31).

Segundo isto, não se ama unicamente “sentindo”, mas, e sobretudo, “fazendo”. Um amor que realiza o querer do amado é um verdadeiro amor. O conteúdo deste mandamento se explicará em seguida na segunda parte (em Jo 15,12-17: “este é meu mandamento…”).

Jesus é o Senhor da fidelidade e da responsabilidade e nisto os discípulos o seguem de perto, mas sabendo que sobretudo é dom recebido de seu amor. Com alguma frequência temos hoje dois problemas que se referem ao que Jesus está ensinando: (1) a inconstância no amor; e (2) a irresponsabilidade. Com relação à primeira, notamos que as relações (de parentesco, de amizade, ou votos) tem se tornado descartáveis, trazendo imensa dor e deixando sequelas por toda a vida, deteriorando tudo ao redor. As relações são frágeis e em muitos casos praticamente “insustentáveis”.  Em relação à segunda, vemos ainda que o sentimento prima sobre o compromisso. 

Ante isto Jesus diz: “permanecei”, ou seja, “tu sofres porque teu verdadeiro interesse tem sido o de amar de verdade, sofres porque teu coração de ouro tem sido lastimado; hoje te digo que se é possível construir relações sólidas, estáveis; não é o objeto da carência de alguém que te utilizou para satisfazer-se e logo descartar-te; não é mais a vítima duma imaturidade tua ou de teu amigo que te levou a tomar decisões equivocadas; convido-te a experimentar a solidez, intensidade, constância, satisfação, felicidade que há na minha relação com o Pai; o verdadeiro amor tem sabor de eternidade, isto é o que te ofereço”.

  • O resultado do amor: a plenitude da alegria (v.11)

O objetivo do evangelho é chegarmos à alegria de coração. Seguindo a linha do texto, notamos que de repente se troca o termo “amor” por “alegria”. Isto tem sua lógica, pois o que resulta do amor é o amor mesmo, ou melhor, a alegria de amar e ser amado.  Jesus o destaca bem: o fruto que resulta dessa seiva de amor é um estado de “alegria”. Onde há verdadeiro amor há alegria. Aprofundemos nisto.

Não só há comunhão no querer, mas na alegria. Portanto, o “guardar os mandamentos”, forma concreta da inserção em Cristo, não é algo pesado, insuportável. Ao contrário, é fonte de alegria, de uma imensa alegria, uma alegria que chega à sua máxima expressão.

Como podemos caracterizar esta alegria? Se olharmos bem o texto veremos um triplo movimento que vai tecendo o tema: (1) É a alegria de Jesus: “minha alegria”. (2) Dele vem a alegria. E ele comparte-a com seus discípulos: “para que esteja em vós”. (3) Então a alegria do discípulo começa a crescer: “para que vosso gozo seja pleno”.

Vejamos: Jesus diz expressamente “minha alegria”. Visto que a vida de Jesus esteve sempre fundamentada no amor do Pai, sua vida se caracterizou pela alegria. Jesus estava, como dizemos “bem sarado por dentro”, era um homem realmente curado, tinha todos os motivos para viver feliz. Que maravilha o mistério da encarnação! (…)

As expressões do amor (15,12-17)

Como já destacamos, os vv.12-17 contém um dos textos talvez mais lidos do evangelho de João e, sem dúvida, como afirmamos antes, constituem o ponto de chegada da proposta do Evangelho. Trata-se de uma espécie de confirmação dos ensinamentos anteriores. Além do mais, tudo que lermos doravante é a realização do v.11: este é o modo como Jesus partilha aos discípulos sua plenitude.

  • Não é difícil captar a proposta e o desenrolar do tema. (1) Notemos a repetição do mandamento do amor no começo e ao final, formando uma espécie de “marco” do texto; (2) Logo, no centro, se abre uma lista de características do amor de Jesus e da tarefa dos discípulos no mundo, consequência desse mesmo amor. Resulta o seguinte:
v.12 Mandamento do amor   “Amem-se uns aos outrosvv.13-16. Características do amor de Jesus “Eu os tenho amado…”. Dando a vida por elesFazendo-os seus “servidores” e “amigos”Revelando-lhes seus segredosSeparando-os (dom da eleição)Destinando-os para a missãoDando-lhe um só fundamento a sua oraçãov.17 Mandamento do amor   “Amem-se uns aos outros
v.12 Mandamento do amor   “Amem-se uns aos outrosvv.13-16. Características do amor de Jesus “Eu os tenho amado…”. Dando a vida por elesFazendo-os seus “servidores” e “amigos”Revelando-lhes seus segredosSeparando-os (dom da eleição)Destinando-os para a missãoDando-lhe um só fundamento a sua oraçãov.17 Mandamento do amor   “Amem-se uns aos outros

O amor de Jesus por seus discípulos é tal, que é capaz de redefinir completamente o modo como compreendemos nossas relações com os demais.

3.1. O mandamento do amor (vv.12 e 17)

Notemos três elementos que compõem a frase de Jesus:

  • Jesus inicia com um imperativo: “Amem-se”. Para o discípulo o amor não é opção, é um imperativo que define a essência de seu “estar” em Jesus. Por que o coloca no plano de “mandamento” e não de “recomendação”? Por isto: mesmo que o amor num primeiro momento seja um sentimento (e neste nos parecemos todos os seres humanos, cristãos ou não), é, antes de tudo, uma decisão. Um dos grandes perigos nas relações é manejá-las unicamente ao nível do sentimento, reduzindo-as a uma emoção passageira (de altos e baixos, que pode mudar com o tempo) sustentada pela “simpatia”, é o que chamamos “sentimentalismo”.  Como vimos no v.10, para Jesus o amor é uma força moral que se expressa na obediência à vontade Do Pai, consciente de que só assim o ser humano pode chegar à sua plenitude, à sua realização. Portanto, Jesus, está pedindo um salto qualitativo na maneira de tecer as relações: o amor se constrói no plano da decisão.
  • Jesus lhe dá uma identidade própria. O chama “meu mandamento”.Quando disse “Este é o meu mandamento”, Jesus está dizendo duas coisas: (1) É ele quem o dá: “é meu”; e (2) É o critério distintivo da vida de Jesus no discípulo (como bem havia afirmado em 13,35: “neste conheceram todos que sois discípulos meus”).
  • Jesus mesmo é o conteúdo do amor. Há muitos modos de amar, uns válidos, outros talvez não (sobretudo quando há possessividade). Para Jesus não há ambiguidades, o coração do seu mandamento do amor é o “Como eu vos tenho amado”. O proceder de Jesus, então, é o que define a “sustância” do verdadeiro amor. Dai que não é um mandato genérico, mas específico, que se circunscreve ao “ser como Ele”, isto é, as decisões que Ele tomou e que caracterizaram sua relação com a comunidade de amigos que ele formou ao longo de seu ministério. A originalidade do imperativo está então em seu conteúdo: “Amar” é encarnar o “Como eu vos tenho amado”.  Isso é: “Em suas relações sejam como eu”. Como foi o amor de Jesus com seus discípulos? É o que responde os vv.13-16.

 3.2. As características do amor de Jesus (vv.13-16)

O conteúdo dos vv.13-16 é a explanação do “Como eu vos tenho amado”. Neste, as grandes ações de Jesus com relação aos discípulos, são três:

(1) Deu sua vida por eles;

(2) Fez deles seus amigos e não simplesmente servidores; e

(3) Confiou-lhes a sua missão.

A segunda pode dividir-se em dois: (a) o fato de chamá-los a seu serviço; (b) convertê-los em seus amigos. O mesmo acorre com a terceira: (a) elege-os, (b) envia-os à missão e (c) assegura-lhes o respaldo firme do Pai em sua oração missionária. 

Daí que os distintivos do amor de Jesus por seus discípulos são: (1) Deu sua vida por eles; (2) Deu-lhes a honra de ser seus servos; (3) Levou-os até a intimidade, revelando-os seus segredos; (4) Elegeu-os (separou); (5) Destinou-os à missão; (6) Assegura-os respaldo firme do Pai na missão.  

Mas, o que é mais belo: não se trata duma ilustração do amor de Jesus por seus discípulos, é muito mais: é a apresentação dos elementos que constituem uma autêntica comunidade que faz jus ao título de “cristã”. O imperativo “Amem-se deste modo” faz o contraponto a cada um dos pontos assinalados.

Neste “construir a comunidade” vemos dois movimentos:

  • vv.13-15, o que Jesus faz por sua comunidade para que esta seja a tal ponto que seja o amor fundante que determina o modo de relacionar-se no interior da comunidade; e
  • v.16, o que a comunidade está chamada a fazer para fora: ama o mundo e sua missão leva a experiência da comunidade no mundo (os frutos), para que todo ele chegue a ser real e durável à família do Pai. Jesus aparece sempre no fundo como “Senhor da Igreja”.

Podemos ler, então, a sessão de Jo 15,13-16, assim:

(1) A comunidade para dentro: uma comunidade de “amigos” de Jesus (vv.13-15)

O amor de Jesus constrói uma comunidade de “amigos” (note-se a repetição do termo nesta seção). A mudança de termos, “amor”/”amigo”, não é um jogo de palavras mas de um avanço no ensino: o “amor” se concretiza em relações estáveis, de mudança viva, de “amigos”.

Além disso, se diz “amigo”, que é concreto e visível (como costuma expressar-se no pensamento hebreu), e não “amizade”, que é uma abstração.

De que modo Jesus faz dos discípulos, seus amigos? Nas próprias palavras de Jesus podemos notar que:

(1) Ele toma a iniciativa, mas a amizade é “a dois”, por isso espera uma resposta concreta.

(2) Conduz por dois níveis de relação: a do “servidor” e a do “amigo”.

(3) A amizade se concretiza no “querer juntos o mesmo” e para isso passam por duas etapas: a do “conhecer” e a do “fazer”.

Ainda que estas três idéias sejam transversais nos vv.13-15, vão se desenvolvendo lentamente de um a outro versículo. (…)

(2) A comunidade para fora: uma comunidade de “enviados” de Jesús (v.16)

(…) Quando a comunidade está bem firmada no amor e no projeto de Jesus, tem força missionária e transforma o mundo. Isto o vemos nas três idéias fortes que enuncia Jesus, segundo as quais a Igreja é:

(a) Comunidade eleita (v.16ª): A toma de consciência do ser “eleitos”

Na leitura do texto vimos como se tem sublinhado a iniciativa de Jesus (que pede sempre ser adequadamente correspondido). Agora vemos que a iniciativa vocacional de Jesus, que estava implícita nos versículos anteriores, vem à tona e se caracteriza melhor.

Na frase “não fostes vós que me elegestes” há uma primeira e grande implicação para a vida comunitária”. Posto que não foram os sarmentos que elegeram a videira, mas a videira aos ramos, de consequência os ramos, tampouco, se elegeram entre si.

Daqui se deriva que

(1) a Igreja se constrói na acolhida de todos os que tem sido “escolhidos” pelo Senhor. Não somos pessoas que se tornaram amigas por eleição mutua (o grande perigo dos “guetos” na vida comunitária);

(2) a essência da vida da Igreja é partilhar a vida que o Senhor nos dá nas celebrações partilhadas, na Bíblia lida em comunidade, etc;

(3) A Igreja se constrói no aprender a partilhar o mesmo projeto do Senhor, um projeto que em cada etapa da história vai se atualizando com o aporte de todos. Porém Jesus utiliza aqui um termo técnico que não se pode descuidar: “eleição”. 

Deus “elegeu” Israel. Quando lemos Dt 7,7-8 vemos que a iniciativa de Deus com Israel correspondia à motivação do amor: “Não porque sejais o mais numeroso de todos os povos tem se enamorado Yahveh de vós e vos tem elegido, pois sois o menos numeroso de todos os povos: mas pelo amor que os tem”.

Porém, esta “eleição” de Israel não era um privilégio mas uma missão.  Deus em sua pedagogia, começou com um povo que devia ser a semente de um mundo novo, a qual irradiaria o projeto de Deus no mundo, porque nessa semente Deus estava escolhendo ao mundo inteiro.

A eleição, então, não era para benefício próprio de Israel mas era uma missão para ser seu testemunho entre os demais povos (ver Is 2,2s;43,9-12;55,4s;Sl 87).

Quando Jesus “elege” seus discípulos tem em mente isto: é a comunidade modelo, realização plena do projeto “Povo de Deus”, começo da grande comunidade que deve ser a Igreja e na Igreja o mundo inteiro (ver Jo 10,16, o cume da obra do Pastor; Jo 11,52, que a morte de Jesus era “para reunir os filhos de Deus que estavam dispersos”; e em Jo 21,15-17, tarefa pastoral de Pedro).

Daqui se conclui que a tomada de consciência da “eleição” é o ponto de partida da missão: “Foi eu mesmo que vos elegi.

(b) Comunidade enviada (v.16b): Levar a sério o ser “enviados”

Como envia Jesus estes discípulos chamados a ser “servidores”, os quais conhecem a fundo – como “amigos” – o projeto do Pai para o mundo em seu Filho Jesus e foram “eleitos” para a missão de formar o Povo de Deus?

Jesus envia os “eleitos”, a comunidade “modelo” de comunhão com Deus no mundo, com três mandatos:

(1) “vos tenho constituído”;  

(2) “para que vos ponhais a caminho”; e

(3) “para que deis fruto”.

O termo ‘constituído’, em grego conota “estrategicamente posto”. Também se pode entender como “constituído”, no sentido de “oficialmente enviado” (como uma investidura para um cargo). Jesus não diz expressamente onde devem ir os missionários (como em Mt 28,19: “às nações”, ou seja, aos pagãos; o como At 1,8, que se dá a geografia da missão).

No evangelho de João se deixa entender algo curioso: “nos lugares estratégicos”. Como entendê-lo hoje? Se analisarmos bem, veremos que cada lugar é estratégico para que construamos comunidades de “amigos do Senhor”. É como se o Senhor nos dissesse: “Aonde quer que tu estejas, eu te pus ali, evangeliza!”.

Logo Jesus diz “para que vaiáis”, porém o termo grego aqui também, é mais sugestivo: “para que vos ponhais a caminho”. Isto implica um contínuo “sair de si mesma” da parte da comunidade, não pode permanecer encerrada, deve ir ao encontro do mundo. Isto é importante na dinâmica de vida da comunidade.

 Termina dizendo “para que deis fruto”.  A frase agrega à anterior o conteúdo da missão. O termo grego “fero” (=“sacar fora”) implica todo o processo da árvore que germina e vive todo o processo que o leva até o momento máximo que se expressa nos frutos.

Quer dizer, que a missão tem duas implicações:

(1) a comunidade partilha o que tem recebido do Senhor (sua Palavra, experiência de vida já descrita, etc.) e (2) a comunidade missionária acompanha o processo de formação da nova comunidade: desde a inserção em Cristo até que também ela se converta em portadora de “frutos”.

(c) Comunidade respaldada (v.16c): A certeza de estar respaldados pelo Pai

Toda a obra de Cristo e da Igreja é do Pai, Ele é o agricultor do mundo novo (15,1-2), para a glória dele aponta toda a obra (15,8), ele é que elaborou o plano de salvação realizado pelo Filho (15,15), ele é que respalda a missão dos discípulos que estão continuando no mundo a obra de Jesus.

A oração que este texto se refere é a oração missionária: “Tudo que pedirdes” não é tudo que imaginamos, mas que está em função da realização da obra de Jesus no “mundo (“no referente à missão” e “no estar vivendo Jesus”=“em meu nome”) para que frutifique”.

Isto supõe que os discípulos-missionários:

(a) continuamente contemplam o Pai, pois são conscientes de está formando “sua família no mundo”, o “povo de Deus”;

(b) fazem a missão entregando continuamente ao Pai as necessidades do mundo: seus sofrimentos, anseios, situações; e

(c) sabem que, emfim, em tudo que fazem está a mão do Pai. (…)

5.  Cultivemos a semente da Palavra no profundo do coração

  1. Qual é a ordem ideal do texto: qual o tema principal e quais seus desenvolvimentos? Que é “amar” segundo o texto? Quais são os círculos concêntricos do amor e que significa isso? Quais são as características da maneira como Jesus se faz nosso “amigo”?
  2. Que características deve ter a vida comunitária segundo Jesus?
  3. Releiamos com a “luz” da Palavra as ondas de nossa própria vida, deu luz da “verdade” entrar: Como descreveria a realidade do amor hoje Em nível da vida da família (relação conjugal, relação pais-filhos e entre irmãos). Em nível das amizades. Em nível das comunidades (paróquias, pequenas comunidades, grupos, movimentos, etc.)?
  4. Como deixaria viver o chamado ao “amor” nestes espaços? Que significa “permanecer no amor”? Se amar é acolher e não simplesmente “sentir”, a quem tenho que acolher (ou quais) nestes momentos de minha vida?
  5. Quem é Deus para mim? Minha relação com Deus é uma relação de amizade? Como cultivo sua amizade? Minha vida é uma contemplação contínua da Cruz onde sou amado, um deixar-me acolher pelo Senhor para dar seus frutos, um escutar amorosamente sues “segredos” na leitura da Bíblia e responder-lhe com opções vitais livres e valentes?

Pe. Fidel Oñoro, cjm

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