18º DOMINGO DO TEMPO COMUM ANO B (Estudo Bíblico)

João 6,24-35

Introdução

“Queremos mais!”, é a expressão que conecta o evangelho deste domingo com o anterior.  E Jesus, por sua parte, nos convida a ir mais fundo com Ele, na busca da realização de nossa vocação como seres humanos e filhos de Deus, para satisfazer a fome e a sede que não se saciam com soluções humanas, que sempre são incompletas e deixam sempre uma “ponta” de insatisfação.

Jesus vai nos conduzindo à nova mesa do banquete do amor em que a mediação para alcançar a  vida  é um novo pão. Um pão que, repartido naquele dia, na montanha, era apenas um sinal do grande dom que estava por vir.

A multiplicação dos pães é o ponto de partida para a catequese de Jesus sobre o pão. O povo não percebe o alcance real da multiplicação dos pães e, de repente, se lança sobre a pobre humanidade de Jesus para carregá-lo sobre os ombros e levá-lo a Jerusalém para proclamá-lo rei (Jo 6,15). Jesus, então, começa a educar o povo para que passe da busca do pão terreno ao pão que dá vida eterna, pão que só Ele pode oferecer e que é Ele mesmo. Este é o ponto central da primeira parte da formosa catequese sobre o “Pão da Vida” que lemos este domingo.

1. O texto: Leiamos João 6,24-35

Na primeira parte da catequese sobre o pão da vida (Jo 6,24-35), vemos os seguintes passos:

(1) O novo encontro “no outro lado do mar” (6,24-25);

(2) 1º movimento: Do homem para Deus. Purificar os motivos da “busca” (6,26-29);

(3) 2º movimento: De Deus para o homem. Aprender a ler os sinais de seu amor (6,30-33);

(4) A comunhão vivificante entre o homem e Deus: acolher o “Pão da Vida” que é Jesus (6,34-35).

  •  O novo encontro “na outra orla do mar” (6,24-25)

Recordemos que quando Jesus multiplicou os pães havia uma grande multidão, somente os homens eram uns 5 mil (6,10).  A multidão ficou admirada pelo pão inesperado, gratuito e abundante. O povo permaneceu aquela noite ali mesmo, na verde grama a beira do mar de Tiberíades, obviamente, aguardando a Jesus que havia escapado.

De manhã viram que os discípulos haviam ido embora, no único barco disponível, por isso deduziram que Jesus ainda estava por ali (v.22). Mas não demoram muito em ver que ele não estava. Começa, então, a busca do Mestre (v.24).  Pensando que Jesus tenha se unido aos discípulos mais adiante, em alguma parte do caminho, a multidão corre para os botes que estavam pela manhã à beira do lago. Os botes haviam chegado durante a noite fugindo da tempestade (v.23; 6,16-21). Voltam nesses botes para Cafarnaum e encontram Jesus a beira do mar (v.25ª).

Os discípulos perguntam: “Rabi, quando chegastes aqui?” (v.25b). A pergunta, de fato, não só significa “quando”, mas que também “como”. Em sua resposta, Jesus faz caso omisso da curiosidade do povo sobre a maneira como e quando chegou ali sem que se dessem conta, e lhes responde, devolvendo-lhes a pergunta, questionando-os sobre o “por que” eles vieram a buscá-lo em Cafarnaum. Sobre este ponto se desenvolve agora uma vibrante conversa.

  • 1º movimento (do homem para Deus): purificar os motivos da “busca” (vv.26-29)

São três as etapas deste movimento.

  •  A constatação (v.26)

Aqui as palavras de Jesus pressupõem a pergunta: Por que me buscam?”. Jesus deixa entender claramente que Ele não é um distribuidor de pães, que sua obra no mundo não é resolver o problema da fome no mundo mediante um incrível plano administrativo e financeiro (que por certo quebraria as padarias do mundo). Indica-se, com muita força, que o assunto não é por ai; que Ele quer oferecer algo muito mais de fundo, algo mais duradouro e valioso que coisas materiais. Ao por em questão as expectativas do povo, surge à pergunta mais importante: Que Jesus veio fazer no mundo?  O ponto não é só o que se crer que o Senhor deva fazer na vida de alguém e no mundo, mas que é que Ele veio a fazer, aquilo para o qual foi “enviado”. E é assim que Jesus vai adiante com sua catequese. Não somente corrige, mas abre caminhos.

  •  A direção que deve “buscar” (v.27)

Logo dá uma orientação concreta sobre a direção na qual deve “buscar”. Jesus acentua três pontos com os quais abre novos caminhos à “busca” por parte do povo:

  • Diz: “Trabalhai, não pelo alimento perecível, mas pelo que permanece para a vida eterna”. Jesus nos disse que além do imediato da vida – que tem sua importância, é claro – temos uma necessidade mais profunda, e que, se sabemos resolver o segundo – o viver plenamente – poderemos resolver com maior sentido o primeiro – o manter e promover a vida hoje.
  • Diz: “… O que vos dará o Filho do homem”: Jesus dá a si mesmo um título: “Filho do homem”. É, curiosamente, um título de “glória”, porém que passa pela “paixão”. O problema que Jesus enfrenta com a multidão que o busca para que repita o milagre do pão abundante, tem relação com a imagem que têm d’Ele. Jesus lhes faz entender que n’Ele há muito mais do que vêem à primeira vista. O povo se deixa arrastar pelo messianismo e corre atrás do primeiro que lhes ofereça soluções imediatas. Por isso, ao final da multiplicação dos pães já queriam fazer de Jesus Rei, porém Jesus –para desconcerto deles– o que fez foi esconder-se. Porque não entendemos, a fundo, Jesus, é que, facilmente, temos decepções em nossa vida espiritual. O povo da multiplicação dos pães pensava em um Messias Rei que usasse seu poder para eliminar os romanos, um messias que lhes repartira pão gratuito todos os dias sem ter que fazer nenhum esforço, um messias à medida das expectativas populares, que não corrigisse suas atitudes egoístas. Se queremos entender a vida temos também que procurar entender a Jesus: quem é verdadeiramente  Ele, por que Ele não é um homem qualquer que se acomoda a qualquer expectativa.
  • Diz: “… Porque a este Deus Pai marcou com seu selo: A autoridade de Jesus vem de Deus. Isto expressa com uma imagem: “o selo de Deus”. Por que esta imagem do “selo”? Na antiguidade o “selo” autenticava os documentos. Este se imprimia com um anel, assim as decisões eram válidas e permaneciam garantidas. Os selos eram de argila, de metal ou de jóias, nos dois primeiros casos parte do material ficava no documento e assim se expressava que o assunto ali contido era firme.

Em Jesus está o “selo” de Deus:

  • Deus o tem autenticado com a unção do Espírito Santo: “O que aceita seu testemunho certifica que Deus é veraz; porque aquele a quem Deus enviou fala as palavras de Deus, porque dá o Espírito sem medida” (Jo 3,33-34; 1,33-34).
  • Ele é a “verdade” encarnada de Deus (termo que em João traduz o hebreu “emet”, que descreve a fidelidade de Deus com seu povo).
  • Por tudo, Ele é o único que pode satisfazer a fome de eternidade que está impressa no coração de todo homem. Há que buscar a Jesus porque oferece “firmeza”.
  •  O que “fazer” ter essa firmeza (vv.28-29)

Finalmente, disse claramente o que deve fazer, isto é, a essência da vida em Deus, plenitude da vida humana. Ante o imperativo “Trabalhai!”, a reação não se deixa esperar: Como? Em outras palavras: onde há que por os melhores esforços da vida espiritual para que nossa vida se realize em a direção do projeto de Deus? Nesta parte do diálogo de Jesus com o povo, aparecem novas luzes sobre o que deve caracterizar a relação dos homens com Deus.

Notemos, primeiro, que a pergunta que se faz a Jesus requer uma explicação. Quando Jesus falou das “obras de Deus”, o povo entendeu “as boas obras”. Desde pequenos foram educados na convicção de que o favor de Deus se ganha fazendo “boas obras”. Portanto, a pergunta “Que temos de fazer para realizar as obras de Deus?” Espera uma resposta concreta, quase prevista: qual é a lista das “Boas Obras” que agradam a Deus. A resposta breve de Jesus corrige o intento de seus interlocutores e abre a porta para entender as relações com Deus de outro angulo que é muito mais profundo e de grandes consequências. Na frase “A obra de Deus é que creiais naquele que Ele enviou”, deixa entender que o que Deus espera do homem é a “fé”, e isto é importante.

A espiritualidade é “ação”, porém é ante tudo “relação”. Corre-se o risco de perder de vista o essencial quando tudo se reduz a procedimentos mecânicos de nossa parte (ritos religiosos, de caridade, etc.), e pior ainda, se vê a Deus como alguém que também se comporta mecanicamente conosco, ao ritmo de nossos requerimentos, em uma lógica de contraprestação. Deus é Pai e Amigo a relação com Ele deve ser de confiança, de entrega, de obediência, de amor, de gratuidade. A “obra” que Jesus propõe, então, é que construamos uma nova relação com Deus: mais próxima e profunda determinada por sua Palavra na Escritura, avivada pela oração, recriada na comunidade, coerente com nosso estilo de vida, consistente com nossos princípios de ação.

A nova relação com Deus (o caminhar da fé em Jesus) desemboca em um estilo de vida. Esta relação se converte em projeto de vida compartilhada entre Ele e alguém, entre alguém e a comunidade de fé e de amor à que pertence. Dai aí se desprendem todas as “obras boas” de amor e de serviço, institucionais e espontâneas, porque tudo que fazemos (e não somente umas quantas coisas) reflete esse conhecimento de Deus em Cristo que habita nossa vida. Para esta “obra” o mesmo Jesus nos capacita. Isto é o que se vai aprofundar em seguida.

(3) 2º movimento (de Deus para o homem): aprender a ler os sinais de seu amor (6,30-33)

O relato supõe um momento de pausa. Logo se retoma a conversação em um novo nível. A última frase pronunciada por Jesus suscita uma nova pergunta deste tipo: “Se tu te apresentas como o Messias (o enviado, o que Deus Pai marcou com seu selo), e isto supõe que te aceitemos com todas as implicações (crer), então nos mostre suas credenciais”. Em outras palavras: Em que devemos apoiar nossa fé? E aqui se suscita uma nova parte do diálogo no qual intervêm os judeus e Jesus.

  •  A interpelação a Jesus por parte dos judeus (vv.30-31)

Esta parte da conversa é tipicamente judia e nos recorda tanto os temas como o estilo das discussões dos rabinos: se expõe uma pergunta difícil e se dá uma pista de solução em que se indica o tipo de resposta que o rabino estaria esperando. Tomando como base a carta que Jesus acaba de por sobre a mesa, que o crer n’Ele era verdadeira  obra de Deus, os judeus lhe fazem uma interpelação acadêmica:  “Se  és o Messias, mostra-o!”. Isto expõe com duas perguntas sobre o “agir” e um exemplo “modelo” do “agir” de Deus na história: As perguntas: “Que sinal fazes… que obra realizas?” (6,30).

Jesus é interpelado explicitamente sobre o que Ele “faz”. De fato, se olharmos a história da salvação o “fazer” de Deus sempre tem precedido ao “fazer” do homem. A obra do homem é “crer”, porém, previamente, deve fazer uma obra da parte de Deus que sirva de base e de rota para o caminho do crer. Esta é como a “prova” da confiabilidade de Deus.

As duas perguntas, que na realidade expõe o mesmo (“E que prova nos dás, para que ao vê-la creiamos?”), soam estranhas. Como se expõe semelhante pergunta depois da multiplicação dos pães, em que todos estiveram de acordo de que se tratava de um ato extraordinário? É claro que a multidão não está satisfeita com o sinal dos pães e dos peixes. Não crêem que seja um sinal de que Jesus é o Messias e por isso lhe pedem um “sinal” ainda maior. Os interlocutores de Jesus, tendo em conta que Ele se apresenta como o que “age” da parte de Deus, remitem-se imediatamente uma das grandes ações de Deus em favor de seu povo no caminhar pascal e lhe pedem que atue nesse plano.

Porém é claro que os interlocutores de Jesus não viram no milagre da multiplicação dos pães o sinal pedido. É como se estivessem pensando: “O que fizestes ontem foi simplesmente dar-nos pães e peixes, deste-nos comida comum, o que comemos todos os dias aqui à beira do lago da Galileia. Não há nada de extraordinário nos pães e nos peixes, ainda o fato de multiplicá-los superou um pouquinho o normal. Porém Moisés alimentou a nossos pais quarenta anos com maná, comida do céu. O pão e o peixe vem da terra, ao contrário o maná vem do céu. Que fazes para superá-lo?”. Portanto, os judeus estão interpelando a proposta de Jesus de que “creiam no enviado” desafiando-o para que produza “o pão de Deus”, “o pão do céu” (como se chama, a partir das referências citadas) e desta maneira justifique suas pretensões e lhes dê um apoio para depositar n”Ele sua fé, ao mesmo nível de sua fé em Yahweh “Senhor” e “Pai providente” do Povo que leva seu nome”.

  •  A resposta de Jesus (vv.32-33)

A raiz das dificuldades para “crer”, até agora apresentadas, é a incapacidade de interpretar os “sinais” de Jesus. Os judeus que conversam com Jesus não foram capazes de “ver além” do milagre: o pão que comeram os cinco mil não era mais que pão terreno, multiplicado como pão terreno. Para eles o maná sim era uma prova contundente. A resposta de Jesus vai pela linha educativa: não só corrige a visão estreita que têm dos assuntos de Deus, mas também lhes dá pistas para saber entender a fundo os sinais da presença salvífica de Deus na história.

Dito de outro modo sua resposta, com palavras bem precisas, lhes abre os horizontes da mente e do coração para poder ler a fundo a presença e obra de Deus na pessoa d’Ele. Vejamos os passos que dá Jesus. Em sua resposta, que faz com toda a força de sua autoridade (“Em verdade, em verdade vos digo…”) faz basicamente duas afirmações: A primeira faz uma correção ao pensamento “teológico” de seus interlocutores acerca do doador do pão: Quem é que dá o pão? (v.32). A segunda faz duas precisões sobre a natureza do “verdadeiro pão do céu”: Como é este pão? (v.33).

  • Comunhão vivificante entre o homem e Deus – acolher o Pão da Vida: Jesus (vv.34-35)

A última etapa do diálogo do povo com Jesus é o pedido e o oferecimento desse pão que Jesus, pouco a pouco, fez desejado. A reação do povo tem os elementos de uma oração (v.34):

  • “Senhor”: um título que reconhece em Jesus sua divindade;
  • “Dá-nos”: compreensão de que o que Jesus oferece não se alcança pelo próprio esforço, mas que é um “dom” que requer diretamente esta abertura, este desejo, esta receptividade;
  • “Sempre”: não um dia nem dois. A relação com Jesus se constrói na constância;
  • “Desse pão”: já não se quer o pão da multiplicação, mas o novo pão que fala Jesus. Portanto, o povo diz “desse pão”, sem saber nomeá-lo.

Falta ainda um passo. Os ouvintes do ensinamento de Jesus estão sendo educados inclusive na oração. Jesus arranca deles uma súplica que parte do fundo do coração e na qual se deixa entender que “Jesus” é a maior das necessidades vitais do homem. Por fim o povo entendeu que não deve buscar no Mestre só o pão terreno. Isto seria um triste empobrecimento, uma clara incompreensão de seu grande valor. Reconhecem que Ele pode, e de fato quer dar um tesouro incomparavelmente maior que vem do alto. Até agora Jesus apenas disse que é Ele quem dá esse pão, porém ainda não disse que Ele mesmo é o pão. Então disse claramente (v.35):

  • “Eu sou”

Com a expressão “Eu Sou”, Jesus nos remete à revelação divina participada a Moisés no momento de seu chamado no monte Horeb, onde Deus revelou seu nome: “Eu sou o que sou” (Ex 3,14). O verbo “ser”, em hebraico (como em outras línguas), significa também “estar”. Quando Deus se revela como “O que É”, na realidade está se apresentando como o que “está”. Portanto, na revelação de seu nome a Moisés, Deus se definiu essencialmente pelo fato de estar presente no meio de seu povo. Com a definição que dá de si mesmo, Jesus disse que Deus está presente n’Ele em função de nós, os homens e que está interessado por nós, por nossa vida.

Jesus em pessoa é a nova e definitiva forma da presença poderosa e ativa de Deus, dirigida não somente a ser proteção e guia, mas a ser comunhão pessoal de vida. Jesus não quer dar-nos somente pão, mas também a eterna comunhão pessoal de vida com Deus. Porém, como às vezes buscamos a Deus em uma vida de oração caracterizada, mas de um modo “solucionistica”, chegamos a colocar a comunhão com Deus tão fora de nossos interesses e de nossas expectativas naturais, que não podemos captar o sentido da proposta de Jesus e vivemos “espiritualmente” longe ao Senhor. O que buscamos em Jesus e o que devemos receber d’Ele, está nesta frase. Aqui, pela primeira vez, nos encontramos com uma dessas expressões em que Jesus, tomando como ponto de partida uma realidade terrena de necessidade vital, explica a importância, o valor que Ele tem para nós. Este é o primeiro “Eu sou” de todos: Eu sou a luz do mundo” (8,12), “… o bom pastor” (10,11), “… o caminho, a verdade e a vida” (14,6), “… a videira e vós os ramos” (15,1).

  •  “… o pão que dá a vida”

Pode-se compreender melhor o sentido desta e das outras expressões que começam com “Eu sou”, se, se determina com claridade de que tipo é nossa relação com as realidades terrenas assinaladas e se conseguimos captar a pretensão que elas contêm. Por isso perguntemo-nos: Por que Jesus se compara com o pão? E imediatamente salta a resposta: porque o pão (que é uma maneira de referir-se ao alimento em geral) é imprescindível para viver. A relação que uma pessoa tem com o alimento não é opcional nem acessória. Efetivamente, nossa relação com o pão – e com o alimento em geral – está caracterizada pelo fato de que devemos ir a ele necessariamente. Não se pode dar-se ao luxo de dizer que vai viver neste mundo sem alimentar-se. Dependemos do pão não como algo ao que se possa renunciar, mas como à base de nossa existência, para nossa vida.

  •  “Não passará fome… nunca terá sede”

Se a multiplicação dos pães alimentou “até saciar” os comensais daquele dia sobre a montanha, passando agora ao plano espiritual, como será a plenitude que se alcança na relação com Jesus, a que leva a fundo o coração? Jesus utiliza duas imagens cotidianas e fortes para expressar o que acontece no encontro vivo com Ele. Em Jesus a vida encontra uma nova satisfação porque é a resposta ao que está no fundo de todas as buscas. A fome da situação humana termina quando conhecemos a Jesus e, por meio dele, a Deus. Nele o coração inquieto encontra seu repouso, o coração faminto fala transbordante em seus mais profundos desejos.

A vida deixa de ser um “sobreviver”, e ainda mais um mero vegetar, ou um campo de batalha indesejável onde nos derrotam as solidões e as frustrações, para converter-se em uma aventura cheia às vezes da emoção e de paz. Na comunhão com Jesus, nossa vida está segura além da morte. O último dia, quando chegarmos ao porto, quando o presente histórico terminar, não cairemos no vazio porque a morte não é carência (fome-sede) de vida, mas plenitude dela, porque –em última instancia– a vida está em Deus (Jo 1,4). A frase sobre fome-sede que se sacia, definitivamente, mostra-nos além do toque de eternidade que tem. Cada hora de nossa vida é realmente vida se está cheio de Deus.

  •  “O que vem… o que crer”

A última expressão é para reafirmar que o dom de Deus supõe uma ação de nossa parte: o crer. O Evangelho deixa claro que a comunhão com Deus só é possível por meio de Jesus e por isso Ele é “pão” imprescindível para a vida em Deus. Sem Ele nada teria sido possível e a parte d’Ele segue sendo o impossível, daí que tenho que entrar em relação com Jesus, porém não qualquer tipo de relação. “Ir” a Jesus é o mesmo que “crer” em Jesus. Com estes termos se está descrevendo a fé como uma relação, como um ir a Ele mediante sucessivas aproximações. O vemos cara a cara, na Santa Escritura, na Eucaristia, nos irmãos, porém o “crer” é mais que vê-lo: tem que aproximar-se d’Ele, dar o passo da fé, estreitar as relações como em uma ceia com Ele, porque “ir a Ele” é aceitar este convite.

A dinâmica da fé é parecida com a busca do alimento. Ao ligar a imagem do “ir” com a da “fome-sede” vejamos: Que é que se faz quando tem fome? Se alguém vai à mesa e come regularmente, nunca terá fome. Que é o que se faz quando tem sede? O mesmo: beber, e se bebe água ou algum outro líquido regularmente nunca vai ter sede. Assim é a dinâmica da fé: é um profundo impulso interno e não ato racional e frio. Porém, atenção! Na fé é a busca de uma pessoa, não de coisas. Não se deve olhar a Jesus a distância, como quando se vê uma película ou se lê um livro (por mais importante que seja).

Tem que aproximar-se de Jesus como a alguém acessível, como de um amigo que nos acolhe no calor de sua morada. Então, nossa vida se fundamenta n’Ele e nosso ser desabrocha e cresce em um impulso de liberdade, e nos sentimos felizes com Deus e com a vida. A vida que Jesus oferece é proporcional a esta relação. Os horizontes do coração se abrem na medida em que se aprofunda na intimidade com o Senhor. Nossa vida se fortalece na mesma vida d’Ele fazendo caminho da fé, para que no espaço da relação profunda com Ele, brote em nós sua mesma vida. É assim como recebemos o dom do pão do céu, vida que sem dúvida é verdadeira vida.

2. O eixo desta primeira parte da catequese do “Pão da Vida”: O chamado a “crer”

Retomemos o essencial desta primeira parte da catequese sobre o “Pão da Vida”: Com a expressão “Eu sou o pão da Vida”, Jesus afirma que entre Ele e nós há uma relação profunda, uma relação que é do mesmo tipo da que se dá entre o pão e nós. Por sua parte, isto significa que n’Ele em pessoa, com tudo que lhe pertence, pode dar aquilo que nos dá o pão. Não para uma vida mortal, mas para a vida eterna. O que nenhum pão pode nos dar e ao qual não chega nenhuma promessa humana, por maior que seja, Ele pode nos dar. Jesus é superior à morte e quer conduzir-nos mais além da morte.

De nossa parte, isto significa também que os limites da morte vêm abaixo. Assim como encontramos no pão o meio para superar a morte e permanecer na vida eterna, assim Jesus é para nós o caminho para superar a morte e entrar na vida eterna. Sua promessa é enorme. De outro lado, para que o pão me mantenha vivo, tenho que comer. Se não como, morro de fome, mesmo diante de uma cesta cheia de pão. Não basta simplesmente falar do pão, ou simplesmente fazer considerações piedosas sobre Ele; devo entrar na justa relação com Ele.

O mesmo se deve fazer para a justa relação com a pessoa de Jesus: não basta saber algo sobre Ele ou falar profundamente d’Ele; há nexos reais e profundos com o Senhor quando tenho fé n’Ele, a fé é esse nexo. Eu creio n’Ele quando entrego-o toda minha confiança, apóio-me n’Ele e identifico-me com sua proposta, sua pessoa e seu caminho, quando construo toda minha vida sobre Ele, quando entrelaço minha vida com a sua. A fé não é, em primeiro lugar, uma certeza intelectual, mas, sobretudo, a atitude firme e confiada na pessoa de Jesus, com a plena certeza de quem é Ele e com o pleno reconhecimento de sua identidade. A fé é relação e nexo de pessoa a pessoa. Eu creio em Jesus quando me uno totalmente a Ele e me deixo determinar completamente por Ele.

Uma boa amizade ou um verdadeiro matrimônio demonstra-nos quão importante é uma relação pessoal, sólida e determinante para a vida. Na fé em Jesus, o poder e a eficácia doadora de vida que provém do nexo pessoal com Ele, chega a seu ponto culminante. E o mais importante: a fé em Jesus dá vida eterna. Este é o alimento que permanece para a vida eterna. Como se lerá em 6,47: “quem crer tem vida eterna”. Esta vida começa com a fé em Jesus, não somente depois da morte. Ela cresce e se reforça na medida em que cresce a fé. Assim como Jesus, também ela passa através da morte e chega a desenvolve-se totalmente.

A vida eterna é vida de qualidade, distinta e superior. A única à qual se pode aplicar com todas as letras o nome de “vida”. Vida que não tende continuamente para seu fim. Vida que não passa ilimitada, indestrutível, sem pesos, tranquila, cheia de significado, de alegria e de harmonia. Jesus trata de esclarecer e de conduzir nossa busca d’Ele para seu dom essencial. O alimento que busca a multidão é um sinal. Nós o desvalorizamos se o buscamos com base em nossos interesses imediatos e esperamos dele pão e saúde. Ele tem muito mais, por isso disse: Eu sou o pão da vida”.

3. Releiamos o Evangelho desde a patrística

São Justino (100-160), filósofo, mártir.

«O verdadeiro pão descido do céu» (uma das primeiras descrições da Eucaristia para além do NT)

No dia a que chamamos dia do sol [domingo], nas cidades e nas aldeias todos os habitantes se reúnem num dado lugar. Lêem-se as memórias dos apóstolos e os escritos dos profetas segundo o tempo de que se dispõe. Quando a leitura termina, aquele que preside toma a palavra para chamar a atenção sobre os ensinamentos recebidos e para exortar ao seu seguimento. Depois levantamo-nos, e em conjunto apresentamos as intenções de oração. Seguidamente traz-se o pão, o vinho e a água. O presidente dirige ardentemente ao céu súplicas e ações de graças, e o povo responde com a aclamação «Amém!», uma palavra hebraica que quer dizer: «Assim seja». Chamamos este alimento Eucaristia, e ninguém o pode tomar se não acredita na verdade da nossa doutrina e se não recebeu o banho do batismo para a remissão dos pecados e regeneração. Porque nós não tomamos este alimento como se toma um pão ou uma bebida vulgar. Do mesmo modo que, pela Palavra de Deus, Jesus Cristo nosso Salvador encarnou, tomando carne e sangue para nossa salvação, também o alimento consagrado pelas próprias palavras rezadas e, destinado a alimentar a nossa carne e o nosso sangue para nos transformar, este alimento é a carne e o sangue de Jesus encarnado: esta é a nossa doutrina. Aos apóstolos, nas memórias que nos deixaram, a que chamamos os Evangelhos, transmitiram-nos a recomendação que Jesus lhes fez: Tomou o pão, abençoou e disso : «Fazei isto em minha memória; isto é o meu corpo». De igual modo tomou o cálice, abençoou-o e disse: «Isto é o meu sangue». E só lhos deu a eles (Mt 26,26s; 1Co 11,23s)… É no dia do sol que nos reunimos todos, porque este é o primeiro dia, aquele em que Deus para fazer o mundo, separou a matéria das trevas, e ainda o dia em que Jesus Cristo nosso Salvador ressuscitou dos mortos.

4. Para cultivar a semente da Palavra de Deus no profundo do coração

  1. Onde estou buscando a realização de minha vida? A partir do Evangelho, como se compreende a vida? Por que se fala tanto de comida neste evangelho?
  2. Que profundidade é minha relação com Jesus? Jesus é uma necessidade vital para mim? Em meu caminho de fé atual, sinto Jesus como gerador de vida em mim?
  3. Como se pode conseguir o “verdadeiro pão” que vem do Pai e que Jesus oferece?
  4. Como ilumina esta passagem minha compreensão e vivencia do sacramento da Eucaristia?
  5. Depois de ler, meditar e orar este evangelho, a frase que se coloca nas recordações da Primeira Comunhão, “Eu sou o Pão da Vida”, é para mim uma simples frase bonita e poética, ou consigo entendê-la com todo seu rico conteúdo e suas consequencias?

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