22º DOMINGO DO TEMPO COMUM ANO B ( Estudo Bíblico)

Marcos 7,1-8a.14-15.21-23

(Discussão sobre as tradições farisaicas; sobre o puro e o impuro)

Introdução

O evangelho de hoje trata da pureza do coração. Podemos sintetizá-lo assim: o homem “puro” é o que tem o coração puro, e tem o coração puro quem segue a vontade de Deus revelada na Bíblia, vontade que centra todas as decisões do homem na motivação fundamental do amor. Melhor dizendo, o que tem que purificar é o amor. No texto, Jesus estabelece dois princípios fundamentais, a prioridade da palavra e a centralidade do coração, e convida a analisá-los a partir de casos concretos. Por meio destes dois princípios Jesus nos ensina a “fazer” que Deus espera de nós como homens novos. Assim a relação com Deus não se converte em um puro ato formalístico e mágico, mas existencial e estruturado no compromisso cotidiano. Que bela lição de moral bíblica!

1. O texto e sua estrutura

Podemos distinguir no texto três partes:

  • A exposição do problema (vv.1-5), que se formula explicitamente no v.5 e que vem de um grupo de fariseus e escribas escandalizados com o comportamento estranho dos discípulos de Jesus.
  • A 1ª parte da resposta de Jesus(vv.6-13), a qual enfoca a centralidade da “Palavra de Deus”. Jesus se dirige com palavras fortes aos fariseus e escribas que o interpelam. A frase central está no v.8.
  • A 2ª parte da resposta de Jesus (vv.14-23), que convida a pôr a atenção no “Coração” do homem como fonte de contaminação. O auditório está composto inicialmente pela multidão e logo, de maneira privada, dos discípulos. A frase central está no v.21a.

2. A exposição do problema (7,1-5)

Por que teus discípulos não vivem conforme à tradição dos antepassados, mas que comem com mãos impuras?” (v.5) O ponto de partida deste texto é a constatação que os fariseus e escribas, vindos com plena autoridade de Jerusalém na qualidade de “inspetores”(v.1), fazem do comportamento dos discípulos de Jesus, com relação às normas de pureza ritual, particularmente no âmbito  da mesa: “alguns de seus discípulos (de Jesus) comiam os pães com mãos impuras” (v.2). 

Os fariseus e escribas vêm a Jesus com a autoridade de intérpretes oficiais da Lei e, como tais, lançam a acusação. Os escribas são os encarregados de velar pela preservação da doutrina, por sua parte os fariseus são os que promovem o pôr em prática, porém não só da Lei de Moisés (Torá), mas de todo o conjunto de ensinos que eles mesmos criaram a fim de aplicá-la. A intenção dos escribas e fariseus, em principio, é boa. Seu propósito é promover um povo da Aliança, um povo fiel e consagrado a Deus. O problema era que ao lado da lei escrita (tal como se encontra na Bíblia) haviam colocado, e ao mesmo nível, a lei oral criada por eles mesmos, conhecida como a “tradição dos antigos” (v.3b). Esta última estava carregada de detalhes e exigências, e lhe deu tanta ênfase, de modo que a explicação resultou mais importante que o texto inicial. É como se a cinza fosse mais importante que o fogo.

Isto teve consequências gravíssimas, já que não era só a experiência religiosa do povo que se sentia carregado com tanta norma minuciosa que exagerava o que dizia a Palavra de Deus; mas por outro lado a interpretação da lei era incorreta, ou seja, não ia de acordo com o que Deus queria, mas com o que os mestres queriam, e tudo para poder exibir, orgulhosamente, uma religiosidade perfeita. Um grande perigo para uma verdadeira espiritualidade. O ponto de discussão entre as autoridades e Jesus sobre os discípulos está ligada as normas da lei oral (=tradição dos antigos), as normas criadas pelo judaísmo rabínico, que não tinham nenhum valor e, assim, tranquilamente as saltavam. Um fato notável era o comerem “sem lavar as mãos”.

Por que era um problema comer com as mãos “impuras”? O evangelista esclarece que se trata de mãos “não lavadas”, com o qual indica que se trata do rito cerimonial que se fazia antes de começar o culto. Não só era uma questão de higiene, mas uma preparação espiritual para realizar um ato sagrado.   Uma pessoa que não fizesse assim ficaria automaticamente excluída do culto (da comunhão com Deus) e, portanto, marginalizada na comunidade de fé. De fundo está nas normas do rito sacerdotal (Antigo Testamento) que vemos em Êx 40; Lv 15; Nm 19. Ai a “pureza” não era questão de simples higiene corporal, mas espiritual, pois sem pureza (santidade) não se pode entrar na presença do Senhor (Sl 24,3-4; Is 6,5-6). Portanto, o que está em jogo é a comunhão com Deus, o viver em sua presença (agora e na eternidade). O problema está em que se baseia para entrar na comunhão com Deus: o critério bíblico é a “pureza”. Porém, pureza de que?

Como ler isto hoje?

A questão da “pureza” ou “impureza” pode soar-nos como algo superado hoje. Nós não temos nada em comum com as prescrições judias sobre a pureza. Os bons modos, a higiene requerida na mesa e o tipo de alimentos que comamos, para nós não tem nenhuma relação com a espiritualidade, com a relação com Deus. Sem duvida, na passagem que estamos lendo há um aviso espiritual importante. O problema já não é o que nos faz puros ou impuros, mas com base em que critério devemos valorizar nosso comportamento com o próximo é o que tem peso determinante para nossa relação com Deus?

3. Resposta de Jesus aos fariseus e escribas: A prioridade da Palavra (vv.6-13)

“Deixando o preceito de Deus, vos aferrais à tradição dos homens” (v.8). Jesus começa a responder progressivamente. Dirige-se primeiro aos escribas e fariseus (vv.6-13), logo ao povo (vv.14-16) e enfim, na privacidade de casa, a seus discípulos (vv.15-23). Em sua resposta Jesus esclarece sobre o tema da relação com Deus, da que se deriva a relação com os demais, acentuando a prioridade da Palavra de Deus (vv.6-13) e a centralidade do coração (vv.14-23).

Na resposta aos fariseus e escribas, Jesus destaca a prioridade da Palavra de Deus de dois modos:

  • com uma citação profética e um breve comentário (vv.6-8);
  • com um exemplo concreto (vv.9-13).

(1) A citação profética e seu comentário (vv.6-8)

Palavra de Deus X a tradição dos homens. Jesus lê para seu respeitável auditório uma citação de Is (29,13), denunciando, assim, sua “hipocrisia”: “Este povo me honra com os lábios, porém seu coração está longe de mim….”. E logo a aplica a reclamação que estão fazendo: Deixando o preceito de Deus, vos aferrais à tradição dos homens (v.8). Jesus põe no centro o mandamento de Deus (v.8). Todo nosso agir deve estar determinado pelos mandamentos, tudo o que se opõe e limita seu cumprimento é palavra do homem. Consequencia: só por este critério se pode determinar se uma pessoa está “longe” ou “próxima” de Deus, como bem disse a citação de Isaias: “seu coração está longe de mim” e, portanto, só por este critério se determina a validade, ou não, da religiosidade, como disse também a citação: “em vão me rendem culto”. Desde já se expõe a questão do “dos lábios para dentro” ou “dos lábios para fora”.

 (2) com um exemplo concreto (vv.9-13)

Jesus explica a prioridade da Palavra de Deus, tomando como exemplo o 4º quarto mandamento: “Honra a teu padre e tua mãe” (vv.9-13). Uma vez que Jesus disse que em lugar de ajudar a viver a Palavra de Deus, o ensinamento fariseu rabínico o que tem feito é anulá-la (Palavra de Deus X Ensino dos homens), em torno a um mandamento concreto mostra o dano que hão feito estes mestres. Notemos a insistência: v.9: Mandamento de Deus X Vossa tradição; vv.10.11: Moisés disse X Vós dizeis; v.13: A Palavra de Deus X Vossa tradição.

Ao dizer, “e fazeis muitas coisas semelhantes a estas” (v.13), Jesus deixa claro que o caso do quarto mandamento é apenas um exemplo (isso se, bem significativo) do modo como se chega a anular a Palavra de Deus. Os ouvintes de Jesus devem logo analisar outras situações irregulares parecidas.

Por que Jesus exemplifica com o 4º mandamento? Este e todos os mandamentos devem ser cumpridos pontualmente. De nenhum modo se pode privar ao pai e à mãe do que lhes corresponde, nem sequer declarar oferenda sacrificial, quer dizer, que nenhuma ação aparentemente devota pode anular o mandamento de Deus. Por fazer coisas relacionadas a Deus não se pode desprezar a responsabilidade que Deus quer que tenhamos com os demais começando com os mais “próximos”, ou seja, os pais.

Pode parecer estranho o fato que Jesus fale da obrigatoriedade dos mandamentos referindo-se ao 4º mandamento. Também no diálogo com o homem rico (vv.17-22) Jesus volta a falar dos mandamentos de Deus e afirma que sua observância é necessária para alcançar a vida eterna. Nesta circunstancia Jesus enumera alguns dos dez mandamentos, porém não põe o mandamento de honrar aos progenitores no lugar que lhe corresponde normalmente, mas que o deixa para o final. E isto o faz, não para menosprezar, mas, precisamente, para destacá-lo. Já no Antigo Testamento o mandamento de honrar pai e mãe se distingue dos outros, porque é o único, junto com o do sábado, que aparece em forma positiva, enquanto que os outros estão de modo negativo, dizendo o que não se deve fazer. Nestes dois se afirma o que se deve fazer. Segundo a Bíblia, a relação de uma pessoa com seus pais tem importância fundamental, não só para sua existência (nos dão a vida e sustento), mas, também, para a configuração de sua personalidade moral. O 4º mandamento ainda se dirige a todas as etapas da vida do homem e cada um o pratica segundo o grau de maturidade. É claro que se dirige primeiro aos filhos adultos: ocupar-se dos pais quando estão na terceira idade. São eles agora os que dependem.

O sentido do 4º mandamento é que Deus quer que tratemos nossos progenitores com respeito quando já começam a dizer “coisas sem sentido”; com reconhecimento quando já não têm a grandeza física e mental que tanto admirávamos em outros tempos; com solicitude quando necessitam de nossos cuidados. O mandamento geral “Ama a teu próximo como a ti mesmo” se deve concretizar e demonstrar, em primeiro lugar, na prática do preceito “Honra a teu pai e a tua mãe”. Em alguns casos a prática deste mandamento pode ver-se obstaculizada por relações difíceis ou experiências negativas na vida familiar. Porém Jesus sublinha claramente que por vontade de Deus devemos comportar-nos com nossos pais, movidos ante de tudo pelo amor e por um vivo interesse para eles. E mais, ai é onde se vê o verdadeiro amor e aí, na relação positiva com eles, é onde se preparam também as relações positivas com as demais pessoas. Esse é o amor fundante, o primeiro e mais profundo na afetividade humana, que nos capacita e nos purifica para amar a todos os demais.

Como ler isto hoje?   

Jesus nos pede que examinemos com um profundo sentido crítico as normas que determinam nosso  comportamento. Todo nosso agir deve estar orientado totalmente para o mandamento de Deus.    Algumas prescrições devotas –e outras menos devotas- quiseram pô-las de lado. Trata-se neste caso de algumas disposições humanas que nós mesmos nos impomos: as que são produto de nosso egoísmo ou que nos  deixamos impor desde o externo (uma sociedade que tende a ver ao ser humano como meio de produção e que desde este egoísmo cria mecanismos de valorização). Frequentemente nos deixamos guiar por aquilo que é considerado desejável, necessário, moderno, atual, etc. Deixamos-nos guiar por nosso egoísmo em todas as formas em que se manifesta. Jesus nos disse que o único ponto de referencia válido é o mandamento de Deus, todo mais deve estar orientado para ele e não vice-versa. Para nós é importante estar na justa relação com Deus. Nisto consiste a verdadeira pureza. O único caminho para gozá-la consiste em comportar-se não segundo as normas humanas, mas segundo a vontade de Deus. A relação famíliar é o primeiro termômetro disto

4. O ensinamento de Jesus ao povo e aos discípulos em particular

para entrar em comunhão com Deus há que purificar a raiz, o coração (vv.14-23). “O que sai do homem, isso é o que contamina o homem…” 7,20b.21ª.23). Na primeira parte de sua resposta, Jesus estabeleceu o primado da Palavra de Deus. Porém, falta um passo importante no ensinamento, o ponto mais alto dela: a prática puramente exterior da lei não é  suficiente, é o coração do homem que deve orientar-se para a vontade de Deus. A sintonia com Deus deve ser total, de coração, só assim amaremos com um amor purificado e isto é o verdadeiro culto (de comunhão) que agrada a Deus e faz grande cada pessoa. Jesus procede assim: Anuncia um novo principio de maneia solene diante do povo (vv.14-16), e o aprofunda, a propósito com uma nova pergunta, com seus discípulos na intimidade da casa (vv.17-23) Ante o povo (vv.14-16), Jesus anuncia o principio: “Ouvi-me todos e entendei. Nada há fora do homem que, entrando nele, possa contaminar-lhe; mas o que sai do homem… Quem tem ouvidos para ouvir, ouça”.  

Disse, que as ações más provem do coração mal, não é só problema da sociedade, da estrutura, do sistema, mas do coração do homem de onde tudo procede. Por isso a primeira preocupação de uma pessoa deve ser a de ter um coração puro, porque desde ali é que se transforma o mundo inteiro.  Logo, ante os discípulos 7,17-23), a regra se confirma, até o ponto que o evangelista disse: “Assim declarava puros todos os alimentos”, frase ousada que declara que Jesus suprime definitivamente uma  antiga norma do Antigo Testamento que dizia:“Separai o puro do impuro” (Lv 10,10; 20,25).

 Jesus vai a fundo, ali de onde procede toda renovação pessoal autêntica, isto é ao “coração”. Seguindo a pista do v.6 (“Seu coração está longe de mim”), que traçava como é que se dá a verdadeira  comunhão  com  Deus, nos  vv.19-20  se  nota  a  seguinte contraposição: v.19: “pois não entra em seu coração” (a contaminação que nos separa de Deus) v.20: “do coração dos homens, saem as intenções más” (…que  efetivamente nos separa de Deus)

Que indica aqui o termo “coração”?

No mundo bíblico, o “coração” indica o lugar profundo onde a pessoa toma consciência de si mesma, reflete os acontecimentos, medita sobre o sentido da realidade e assume comportamentos responsáveis ante os fatos da vida e ante o mistério de Deus. Dai que o “coração” tenha uma importância decisiva com relação à salvação. A salvação que Jesus oferece só é realmente eficaz quando passa pelo coração de cada pessoa e o converte pela força do Espírito em um novo coração movido pelo amor Deus para amar aos demais como ele o faz (=homem novo).  Digamos de outro modo, o coração experimenta uma especial plenitude de vida quando sai de si mesmo e encontra a absoluta novidade do amor de Deus que nos dar, em Jesus, e, por decisão própria e como critério permanente de comportamento, partilha aos outros esse amor. Em geral, quando falamos de coração o relacionamos automaticamente com “amor”, e isto é certo, porém não é tudo, se trata do amor-decisão, da personalidade forjada na opção fundamental por amor de Deus, da interioridade (do “ser”) do que brota o “fazer” cristão. Isto é o que se está expressando nestas línhas do evangelho, tão importantes ontem como hoje.

Como se purifica o coração?

Aprofundando um pouco mais, vejamos o comentário que Jesus faz a este novo principio de vida estabelecido por Ele… Voltemos à pergunta que expomos desde o principio: Com base em que critério devemos valorizar nosso comportamento com o próximo? Que tem um peso determinante para nossa relação com Deus? Jesus disse: “Porque de dentro, do coração dos homens, saem as intenções más: fornicações, roubos, assassinatos, adultérios, maldades, fraude, libertinagem, inveja, injuria, insolência, insensatez. Todas estas perversidades saem de dentro e contaminam o homem” (7,21-23). Jesus estabeleceu que o coração, a consciência livre (“libertada”, “purificada” pelo amor de Jesus), é a fonte da vida moral. Ali é onde está o foco da contaminação, “as perversidades que contaminam o homem” ou a força do amor que transforma o mundo… Uma leitura bem atenta nos permitirá captar o jogo de contraposições “entrar”/ “sair”, “ou que não contamina”/ “ou que contamina”

Voltando a terminologia parece que “coração puro” não é unicamente o que está preparado para a comunhão com Deus, mas o que já está em plena sintonia com o querer, com os sentimentos, com o projeto de Deus  para o mundo. O “coração puro” na realidade é o coração “purificado” que põe todo seu interesse em Deus e no próximo, para fazer sempre o bem. É assim como podemos entender por que Jesus cita, de uma maneira particular, o decálogo. Já não é a “norma” em si, o coração novo do homem que tem de ser purificado no coração de Deus e do qual “brota” uma nova força de amor.

 Os vv.21-23 anunciam de maneira negativa, como uma maneira de mostrar-nos o que nos acontece quando cremos ser homens novos, porém na realidade não somos (não esqueçamos que estas  palavras estão dirigidas aos discípulos na intimidade da escola). Observemos a disposição das palavras de Jesus: “De dentro… saem…” intenções más, fornicações, roubos, assassinatos, adultérios, avarezas, maldades, fraude, libertinagem, inveja, injuria, insolência, insensatez”

No meio uma lista seletiva de 12 pecados, que abarcam os campos principais ou mais frequentes do comportamento, se desenha o perfil do homem velho, ou melhor, em positivo (que é o que de fato se quer acentuar), os aspectos da vida onde deveria brilhar com maior razão o homem novo segundo o Reino (Mc 1,15;2,21-22). As maldades enumeradas (fornicações, roubos, assassinatos) correspondem ao que está proibido em outras disposições dos mandamentos do decálogo. Trata-se de uma serie de reprovações, de atitudes a evitar porque nos separam de Deus, nos fazem incapazes de conhecer o mistério de Deus. Trata-se de uma pequena suma da catequese moral da Igreja primitiva: “De dentro do coração do homem procedem…” (7,21). Assim aparece uma lista de vícios e pecados. A frase da qual se deriva tudo é: “Do coração do homem saem as intenções más (dialogismoi kakoi)

Jesus começa com a “raiz” de todo pecado de uma decisão pessoal que provém do fundo do coração. O pecado não é uma casualidade, é deliberado. O termo grego “dialogismós” (pensamento, cálculo) descreve precisamente o processo interno de uma reflexão da qual se deriva, em consequencia, uma decisão. Toda decisão tem uma motivação. Quando a motivação é má (“kakós”), quer dizer, baseada em critérios que apontam prioritariamente a uma vantagem pessoal com prejuízo de outro, o que segue é uma má ação, como acontece com aquele que julga baseado em maus motivos (Tg 2,4). Antes de tornar-se ação concreta, o pecado tem sido elaborado previamente no coração. O pecado não acontece “porque si”, ele tem “razões” no coração de quem comete, portanto há responsabilidade pessoal. 

Do coração do homem saem:

  • “fornicações” (porneíai): desejos sexuais incontrolados que conduzem a relações sexuais imorais. Trata-se da pessoa para a qual qualquer tipo de relação dá no mesmo e esta se torna habitual, viciosa. O critério de comportamento é a própria satisfação, fazendo do par um objeto para a própria auto complacência, negando, pois, o valor do outro e sacrificando relações estáveis mais profundas baseadas no amor. O dano que se faz à pessoa amada é bem grande.
  • “roubos” (klopai): Trata-se daquele para quem a apropriação do alheio é um comportamento habitual. Tampouco em seu caso há uma escala de valores na qual o respeito e o amor pelos demais esteja em primeiro lugar. Coloca o que está em volta a serviço de seus próprios interesses. É um delinquente que atua ocultamente, enganando sempre aos demais.
  • “assassinatos”(fonoi): A negação do outro chega a seu ponto mais grave: não só o usa sexualmente, e se apropria de seus bens, mas lhe tira, inclusive, a vida, que é o valor mais precioso.
  • “adultérios” (moijeíai): A lista começou com o tema da imoralidade sexual e retoma agora o mesmo tema, com matiz de “infidelidade” à pessoa à qual se prometeu amor total até a morte.
  • “cobiças” (plenoxeíai):É outro mau manejo do “desejo”. O termo que Jesus utiliza significa literalmente ter (“ejo”) em abundancia (“plen”). Porém, que se trata de uma ação (má) derivada de uma motivação interna (má). Observa-se ai um comportamento que vai em dupla direção: 
  • De fora para dentro: acha prazer no encher-se de coisas, com três habituais manifestações: o desejo compulsivo de encher-se de coisas (de tudo o que vê no supermercado) gastando dinheiro no que não vale a pena (luxo desmedido); o entrar em competição motivado pela inveja (se fulano(a) tem isto, eu também quero, e oxalá melhor); o prazer de exibir o que se tem com o  fim de obter um novo ganho: a felicitação e a inveja dos outros. 
  • De dentro para fora: a mesquinhez ou avareza daquilo que lhe dói partilhar. Ou seja, a pessoa se torna “mesquinha” (contrário de “dom generoso”; 2Cor 9,5).Quando isto ocorre, as relações começam a basear-se nas “coisas” e se perde de vista o “outro” como valor fundamental, daí que seja no fundo uma negação de Deus, o “Outro” por excelência. Pior ainda, se consideramos que no “adquirir e adquirir”, no fundo há uma injustiça social que contradiz o projeto de fraternidade e solidariedade, pois quem acumula está se apropriando daquilo que por direito pertence a outros.
  • as “maldades” (poneríai): Não se trata só de atos maus em si, mas da pessoa que está ferida na estrutura de sua personalidade e encontra prazer em fazer dano a outros. Alegra em ver os demais submetidos, humilhados, divididos; alegra-se quando outra pessoa cai na desgraça. Sua motivação é a destruição e ama complicar a vida dos demais. Uma pessoa “perversa” assim, cuja motivação fundamental na vida é ver a desgraça dos outros, tende a agrupar em torno a si outras pessoas da mesma índole. Como bem observam os escrituristas o “Maligno” é o título de Satanás, que sendo mau em si mesmo, faz que outros sejam tão maus como ele.
  • a “fraude” (dolos): Trata-se daquela pessoa que age duplamente, com engano, com o fim de conquistar seus desejos ocultos. O termo tem uma origem interessante: o “dolo” é a isca que se coloca para fazer cair uma vítima na armadilha… Portanto é a inteligência, porém, para sair com a sua, para o mal. O contrário é ser “único”, “transparente”. Por exemplo, de Jesus se disse que “não cometeu pecado e em sua boca não se falou engano” (2 Pe 2,22).
  • a “libertinagem” (asélgeia): Literalmente significa “desenfreio”. A melhor imagem é a do cavalo desbocado que não aceita rédea. Trata-se do comportamento de quem não aceita regras, sentindo-se com direito a tudo. Seu critério de ação é o capricho pessoal e para passar por cima do que seja, empenha nele todas suas capacidades. Contrário de quem age por fraude (faz ocultamente), o que atua por libertinagem faz suas maldades publicamente sem temor de escandalizar, perdendo o respeito por si mesmo e pelos outros, se torna literalmente “sem vergonha”.
  • a “inveja” (oftalmós poneros; literalmente: “olho mau”): Como bem indica o termo (“mau olhado”), é o comportamento da pessoa que olha com raiva o êxito e felicidade do outro. Esta atitude de fato está na base das anteriores. É alguém que considera que não é bem amada e que vale pouco, por isso os demais são para ela uma ameaça, considera que o que os demais são ou têm é um direito que a ela lhe foi negado. No fundo trata-se de um problema espiritual sério. A mesma expressão, quando aparece em Mt 20,15, indica uma atitude de inveja e quase de crítica com relação os desígnios de Deus. É quase uma acusação a Deus. Esta atitude fecha a lista das anteriores e nos prepara para as últimas três faltas, que precisamente são as de uma pessoa que tem relações difíceis com Deus.
  •  

 a “injuria” (blasfemia): O termo literalmente significa “calúnia”, porém, neste contexto se refere a Deus e, portanto, trata-se do insulto a Deus. Ao Deus, a quem se lhe deve a adoração e o louvor, se diz tudo o contrário do que se deve. A pessoa considera que não tem nada que agradecer a Deus. O ressentimento é grande.

  •  a “insolência” (hyperefanía): É consequência do anterior. A pessoa pensa que não precisa de Deus, que pode fazer e desfazer por sua própria conta. Literalmente é o engrandecimento de si mesmo, o orgulho, a auto suficiência, a arrogância. Alguém assim se considera “a tal”, olha com desprezo aos demais vendo-os com menor capacidade e valor que ela. Seu critério de ação é o comparativo, partindo do pressuposto de que ele sempre é o melhor. Coloca a nível ou inclusive acima do próprio Deus. Há um Salmo que descreve a atitude do homem poderoso que se crê igual a Deus (73,6-9). A respeito profetiza Isaías (14,13). “Deus resiste aos soberbos” (Tg 4,6; Lc 1,51)
  •  a “insensatez” (afrosyné): O termo é enganoso, não se refere a uma carência  de inteligência,  mas à incapacidade de reconhecer a Deus em sua real grandeza e potencia. Literalmente significa “loucura”, perca do sentido das coisas que acaba em ações desatinadas, portanto sem critério de valorização (moral), pior ainda: fora do projeto de Deus. Trata-se de uma pessoa sem rumo na vida, sem projeto. Más que o “louco” em si, é o que “se faz louco” para passar bem, porém sua vida não transcenderá. Insensato é aquele que não quer levar Deus a serio e, portanto não está disposto no mínimo a pôr o mandato de Deus acima de todas as palavras humanas e a deixar-se guiar pela vontade de Deus. Uma pessoa assim, definitivamente anda perdida na vida.

Que fica de tudo isto?

Já vimos que, em última instancia, a instrução sobre pureza e impureza se converte em um comentário ao Decálogo. Desde Jesus a Lei se vive desde um novo principio espiritual: ele purifica nosso amor  para que desde o fundo do coração, com a personalidade bem formada do discípulo, sejamos realmente o povo que Deus quer e o bem vença o mal. Nosso coração deve ser libertado para poder estar cheio do sentido de Deus, para poder reconhecer com gratidão nossa dependência dele, para que nossa vida toda seja uma festa de louvor.

3. Para cultivar a semente da Palavra na vida

  1. Os fariseus repreendem os discípulos de Jesus porque tomam os alimentos com mãos impuras.   Quando é que nós nos apegamos as coisas terrenas, de maneira que não concedemos aos outros a liberdade que Deus nos tem concedido?
  2. Quais são as maneiras de “tirar o corpo” fora dos mandamentos de Deus?
  3. Que palavras ou slogans humanos nos ajudam a justifica-lo?
  4. Temos consciência do caráter de obrigatoriedade dos mandamento de Deus?
  5. Quando nos aproximamos para receber a Eucaristia o fazemos com mãos, coração e mente pura? 

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