A noite escura do espírito
A NOITE ESCURA DO ESPÍRITO
Antes de completar os dez primeiros anos de vida, a Fraternidade tinha crescido tanto, que já contava com vários milhares de irmãos. No começo, eram poucos e heróicos. Quase todos eles vinham de Assis, ou pelo menos, da comarca da Úmbria. Eram amigos ou, pelo menos, conhecidos, e estavam unidos pelo mesmo molde: A alma de Francisco de Assis.
Bem poucos anos depois já havia, Alemães, Húngaros, Ingleses Espanhóis; burgueses ricos ao lado de humildes artesões, doutores formados nas universidades junto de camponeses ignorantes, e não havia uma escola de formação que unificasse todas essas diferenças de vida.
Até ali os irmãos tinham tomado só e totalmente o Evangelho como lei; o Evangelho entendido ao pé da letra. Como programa espiritual era formidável, mas como lei, em nível humano, era muito pouco.
As normas de vida primitiva não serviam para solucionar a complexidade de um povo tão numeroso. Os primeiros irmãos de Rivotorto e da Porciúncula, que Francisco tinha recebido, preparado e formado, estavam agora espalhados no meio de um povo imenso, e dos milhares de irmãos atuais, a maioria não tinha recebido formação direta de Francisco. Muitos nem o conheciam de vista.
Os condutores da fraternidade vinham, em sua maioria, do clero distinto e influente, e foram eles quem travaram a batalha que deixou, por muitos anos, Francisco numa noite escura.
De um modo geral, tinham boa intenção, amavam e admiravam seu fundador. Achavam que Francisco tinha sido enviado por Deus para suscitar um grande movimento de reforma na Igreja. Mas, uma vez gerado o movimento, Francisco era incapaz de organizar toda aquela multidão. Era ignorante e partidário da ignorância.
Em resumo, Francisco era um perigo para o franciscanismo. Se não houvesse ordem e disciplina, pensava eles, aquele movimento ia desaparecer na mais completa frustração.
Havia, realmente, a necessidade de uma reorganização na fraternidade, pois ela crescia rápido demais e não estava preparada para receber tantos irmãos. Mas havia também o perigo de ferir as raízes. E esse foi o doloroso campo de luta entre os intelectuais da Ordem e Francisco.
Frei Leão, em um dos seus escritos, qualifica a crise de Francisco como “gravíssima tentação espiritual”, pois foi muito mais do que um conflito de organização, foi uma agonia. E durante mais de quatro anos, Francisco deixou de ser aquele irmão que conhecemos e afundou na pior das tentações: a tristeza.
Muitos anos haviam se passado, depois daquela sessão atribulada diante do Papa Inocêncio III, agora parecia reviver tudo e desta vez com mais intensidade.
O representante do Papa e os ministros da fraternidade, queriam a pobreza e a humildade; porém, com estrutura suficiente para controlar essa massa enorme de irmãos.
Francisco não era organizador, nem lutador. Tinha sido tão feliz com seu Deus e os seus leprosos. Depois, o Senhor o meteu no meio de uma multidão sem conta de irmãos. Agora, sua vida parecia um redemoinho. E nesse momento, em que tanto precisava ouvir a voz de Deus, Deus estava calado. Batia à porta do céu, e o céu não respondia. Perdeu a calma. Ficou mal humorado, começou a excomungar. Estava triste.
Começou a pensar assim: “O senhor me revelou que devia viver segundo a forma do santo Evangelho. E se não foi o senhor ? E se foi minha própria voz ? Será que, pelo fato de ser um fracassado nos campos de batalha e na sociedade, eu não me agarrei numa fantasia para me projetar ? Será que eu não sou realmente o louco que todos diziam?”
Na verdade o Senhor, estava submetendo Francisco a uma prova extremamente purificadora
Então, como já disse, a Fraternidade crescia rapidamente, e Francisco estava perdendo o contato direto com seus irmãos, devido ao elevado número. Por isso decidiu celebrar todos os anos, uma assembléia geral ou “Capítulo” de toda a fraternidade. Essa reunião acontecia sempre no dia de Pentecostes. Os irmãos vinham de todas as partes para a Porciúncula.
Não havia uma regra propriamente dita. Cada ano iam acrescentando novas normas para serem experimentadas, até o próximo “Capítulo”.
No “Capítulo de 1217”, Francisco envia os irmãos, dois a dois, para uma missão em outros países, e mesmo com tantos problemas com os ministros, resolve acompanhar os irmãos na missão.
Fez o envio com as mesmas palavras de Jesus ( Mt 10, 7-31 ), depois tomou como companheiro Masseu e seguiu para a França. Lá chegando encontrou-se com Hugolino, o cardeal protetor da Ordem, o representante do Papa para os irmãos.
O Cardeal Hugolino era grande amigo de Francisco, o admirava muito, apesar de não concordar com alguns aspectos do seu ideal. Hugolino era também o cardeal, que mais tarde se tornaria o Papa Gregório IX e que haveria de canonizar Francisco.
Hugolino convocou Francisco para uma conversa. O cardeal disse a Francisco:
“Meu filho, na Cúria Romana ainda há um grupo poderoso de cardeais que não vêem com bons olhos nem você, nem a sua fraternidade. Chamam-no de sonhador perigoso”.
Francisco baixou os olhos. Sentiu a pancada.
O cardeal continuou: “Tenho que ser franco, meu filho. De toda a Itália chegam à Cúria Romana, notícias sobre seus irmãos. E nem todas são boas. Você sabe: recebemos trinta notícias positivas e três negativas, mas para quem é negativo a realidade resume-se a essas três notícias negativas. Eu e mais alguns cardeais defendemos você, mas é preciso que você nos ajude. Não saia de perto da fraternidade agora. Seu rebanho está correndo perigo. Se você se afastar agora, os cardeais vão dizer que é um irresponsável. E não deixarão de ter razão.”
Francisco respondeu: “ Senhor cardeal, meus irmãos saíram como cordeiros no meio de lobos. Eu sei por experiência o que os espera, não é fácil. E não seria justo jogar os outros na tempestade e ficar aqui tranqüilo”.
Então o cardeal falou: “Você não deveria ter mandado seus irmãos indefesos à regiões remotas, expostos à todo tipo de contradição”.
“Desculpe-me falar, senhor cardeal, pois sou ignorante, respondeu Francisco. Meu senhor Jesus não pediu doze legiões para defender-se. Não usou sua onipotência nos momentos de impotência. Renunciou às vantagens de ser Deus e se submeteu às desvantagens de ser homem. Não apresentou cartas de recomendação…”
“Está bem! Cortou o cardeal. Que é o homem para comparar-se com Deus ? Isso seria atrevimento, e no fundo estupidez. Francisco, nós somos filhos do Barro, e isso é coisa de que não temos que nos envergonhar, apenas reconhecer”.
Uma tristeza profunda apoderou-se de Francisco. Baixou a cabeça e mil pensamentos começaram a passar na sua cabeça.
“ O cardeal tinha razão. Era tão evidente e ele nunca tinha pensado: Comparar-se a Cristo é um atrevimento .”
Hugolino percebeu a tristeza de Francisco e ficou com pena. Mas era o único jeito de derrubar aquela santa teimosia. Os ministros e intelectuais da Ordem não se atreviam a enfrentar diretamente a Francisco, por isso suplicaram ao cardeal que usassem sua autoridade, para derrubar, um pouco, a fortaleza de Francisco.
O cardeal tomou a palavra e disse: Francisco, temo que a fraternidade desapareça, como muitos movimentos que conheci…
Meu filho, três mil homens vagando pelo mundo, sem casa nem convento, não pode ser! Por que não criar algumas estruturas pequenas e humildes ? Uma preparação intelectual, apta para o serviço da Igreja?…
Nesse instante Francisco teve vontade de empunhar a espada. Mas o desânimo tinha lhe deixado cansado, não tinha força para lutar.
O cardeal insistiu que ele respondesse algo. Então Francisco começou a falar, no início um pouco desanimado, mas depois recuperou a força…
“Todas as coisas tem verso e reverso, senhor cardeal. Conheço a linguagem dos intelectuais da Ordem: um exército compacto bem preparado a serviço da Igreja, é o que eles dizem. Falam da modernização da vida e que o programa de Rivotorto não serve para a realidade atual. Falam de organização poderosa, disciplina férrea… Senhor cardeal, é a linguagem dos quartéis: Poder! Conquista! As minhas palavras são outras: Manjedoura! Presépio! Calvário!”
O cardeal ficou mudo, sem saber o que dizer. Então Francisco continuou: “Os ministros tem um modo de falar cativante, mas é só a casca. A realidade é outra: ninguém quer ser peregrino; ninguém quer parecer fraco, nem nos tronos , nem na Igreja. Somos capazes de derramar lágrimas diante do presépio ou da cruz, ou até ficarmos orgulhosos levantado a cruz nos campos de batalha, nas cruzadas. Mas a verdade é que todos somos inimigos da cruz e do presépio, temos vergonha deles, e isso começa pelos homens da Igreja. Não chamarei ninguém de farsante, mas isso é uma farsa. Perdoa-me meu Deus!”
Assustado o cardeal replicou: “ Você foi longe demais, meu filho!”
“Desculpe-me, senhor! Respondeu Francisco. Em toda terra não existe ninguém mais pecador do que eu; Não estou julgando, estou só analisando os fatos. Nós dizemos que é preciso levantar grandes conventos para pôr a multidão dispersa em ordem e disciplina, mas no fundo, o que acontece é que ninguém quer viver nas choças.
Dizem que é preciso cultivar a ciência para prestar um serviço eficaz. A verdade é que tem vergonha de parecer ignorantes. Nós dizemos que Deus tem que estar por cima, tem que predominar. Mas somos nós que queremos estar por cima e predominar, e para isso subimos no trampolim do nome de Deus. Deus nunca está por cima, está sempre abaixado para lavar os pés de seus filhos e servi-los.
Senhor cardeal, a Igreja tem preparadores demais que falam sobre a teologia da cruz. O Senhor não nos chamou para pregar brilhantemente o mistério da cruz, e sim para vivê-lo humildemente.”
Hugolino permanecia calado, vencido, mas não convencido. Achava que tudo isso era verdade. Contudo, se começasse a aceitar tudo, muitas coisas teriam que mudar, na Igreja, pela raiz… Era demais. Parecia-lhe magnífico o carisma de Francisco, mas achava que a Igreja tinha que ter de tudo.
Francisco voltou para Assis e Frei Pacífico comandou a expedição pela França. Em todos os países os irmãos foram considerados hereges e loucos, e foram terrivelmente perseguidos. Foi um fracasso, e isso nas mãos dos intelectuais era uma arma formidável: A vida ia dando razão à eles, Francisco não servia para governar. Isso não podia mais continuar assim.
O sentimento de fracasso entristeceu a maioria dos irmãos, e muitos começaram a sentir vergonha da simplicidade de seu Fundador.
TELHAS QUE VOAM
Em Pentecostes de 1219, celebrou-se na Porciúncula o “ Capítulo” . A oposição tinha se fortalecido e perdido o respeito por Francisco.
Quando Francisco chegou à Porciúncula, quase não acreditava no que via. A oposição tinha construído, quase que da noite para o dia, um sólido edifício junto da ermida de Santa Maria dos Anjos. Era como se alguém gritasse; Guerra!
Francisco não sabia o que dizer, e uma tristeza profunda invadiu sua alma. Depois a tristeza se transformou em santa fúria. Chamou os primeiros irmãos e disse-lhes: “ Vamos subir ao telhado. Acabou o tempo das palavras e chegou a hora da ação”.
Lá no telhado, Francisco e os outros começaram a destruir o prédio. As telhas voavam uma por uma.
Os ministros, que já haviam pensado na possibilidade disso acontecer, chamaram alguns cidadãos de Assis, com quem já haviam combinado tudo antes, para dizer que aquele prédio era do município e os ministros não tinham nada haver com aquilo.
Francisco ficou perplexo. Sabia que estavam lhe enganando, mas sentia-se perdido nesse jogo de sutilezas jurídicas. Não tinha armas para contra-atacar.
MAIS UM LOUCO NESTE MUNDO
No segundo dia do Capítulo, os intelectuais, que já sabiam que Francisco pensava em escrever uma Regra, chamaram o cardeal Hugolino e disseram que não estavam dispostos a aceitar o estilo de vida, que provavelmente Francisco iria colocar na Regra, por isso queriam que ele tentasse convencer a Francisco de aceitar um deles como assistente na redação, e assim poderiam se basear nas regras de outros movimentos mais estruturados, como a dos beneditinos e agostinianos.
Então o Cardeal Hugolino chamou o Pobre de Assis, e expôs, com muito jeito a proposta. Francisco ficou calado, e de repente tomou o cardeal pela mão e o levou para a assembléia. Estava furioso, e como uma pantera a quem querem roubar os filhotes, ficou com um aspecto selvagem, e começou a gritar para a multidão dos irmãos, na frente do cardeal.
“ Meus irmãos, o caminho em que me meti é o da humildade e da simplicidade. Se meu programa vos parece novo, sabei que o próprio Deus foi quem me indicou, e que de maneira nenhuma vou seguir outro.
Não venhais falar em outras Regras, nem de São Bento, nem de Santo Agostinho, ou de qualquer outra forma de vida. O senhor me disse que queria que eu fosse mais um louco neste mundo.
Quanto a vós, que Deus vos confunda com vossa sabedoria e com vossa ciência. Espero que o senhor, por meio de seus carrascos, vos dê o castigo merecido.”
Nunca o tinham visto falar daquele jeito. O cardeal não sabia para onde olhar, estava esmagado, e os ministros da mesma forma. Resolveram não insistir, por enquanto.
O Capítulo continuou e tratou de outros assuntos. Tomaram várias decisões e a mais importante foi a do envio de missionários para as terras dos infiéis, e a maior surpresa foi a decisão de Francisco de ir pessoalmente para a terra dos muçulmanos.
Escolheu dois vigários de sua confiança para substituí-lo: Mateus de Narni e Gregório de Nápoles.
Então numa manhã de junho, Francisco partiu com doze companheiros, em um navio, na direção do Oriente.
O DESEJO DE MARTÍRIO E A GRANDE DECEPÇÃO
Francisco esteve, dezoito meses, no Oriente. Pregou para o sultão Melek – El – Kamel. Desejava ardentemente o martírio, mas ao invés disso, recebeu várias homenagens do sultão, que ficou impressionado com sua pessoa.
Mas muitos foram os martirizados naquela região. Como por exemplo, os que foram enviados para o Marrocos.
Também nesse tempo, Santo Antônio, que pertencia a Ordem dos Agostinianos, admirado com os franciscanos e desejoso também do martírio, deixou sua Ordem e juntou-se aos irmãos, mas como Francisco, também não realizou o desejo do martírio.
Terminou a vida como um grande Franciscano admirador do pai de sua Ordem.
Enquanto Francisco estava viajando, os ministros estavam aproveitando: Estimularam os estudos. Reforçaram a medidas disciplinares. Construíram diversos edifícios. Fundaram um “Studium” em Bolonha. Para não serem atacados nas missões, conseguiram cartas de recomendação da Santa Sé. A fraternidade tinha perdido sua fisionomia primitiva.
Os primeiros companheiros de Francisco protestaram, e foram castigados. Alguns foram presos, outros açoitados, outros expulsos como indesejáveis.
Nesse tempo, correu o boato que Francisco tinha morrido, então os primeiros irmãos encarregaram Frei Estevão de ir certificar-se disso.
Frei Estevão viajou, escondido dos ministros, e depois de muitos meses encontrou Francisco e colocou-lhe a par de tudo o que estava acontecendo. Francisco voltou urgentemente para a Itália.
Passando por Bolonha pode ver com os próprios olhos a profundidade da revolução operada na fraternidade. Frei João de Staccia, tinha eregido uma imensa casa de estudos, era o “Studium”. Ele tinha sido construído por causa de uma rivalidade entre os franciscanos e os dominicanos, pois os “Irmãos pregadores”, como eram conhecidos os dominicanos, tinham construído um “Collegium” e eram muito admirados, diante disso os ministros acharam que os “Irmãos Menores” ficavam parecendo pouca coisa, por isso construíram o “Studium”.
Francisco estava indignado e machucado interiormente. Mandou, por obediência, que todos os irmãos abandonassem aquele estabelecimento, mesmo os doentes. E ainda invocou a maldição do céu sobre Frei João de Estaccia, e quando vieram pedir que retirassem aquela maldição respondeu que já era tarde, pois Cristo a tinha confirmado .
Voltando para Assis, Francisco não quis ir para Porciúncula, não queria ver os ministros…
Encontrou-se com seus primeiros companheiros e soube que o Papa Honório III estava em uma cidade próxima dali, resolveu pedir ao Papa um representante oficial para lhe ajudar, pois não estava mais agüentando aquela situação, e ele próprio pediu pra que esse representante fosse o Cardeal Hugolino.
Foi assim que Hugolino ficou sendo o representante oficial da fraternidade, e ajudou muito a Francisco. Com suma paciência, fez o impossível para cobrir os abismos que separavam Francisco dos ministros. Hugolino conseguiu dar forma prática e possível a muitas idéias de Francisco.
A RENÚNCIA DO CARGO
Francisco estava tranqüilo. No Oriente tinha contraído uma misteriosa doença nos olhos , não suportava o brilho do sol, precisava caminhar conduzido pela mão.
A paz ainda não tinha voltado. Decidiu renunciar o cargo de ministro geral, para substitui-lo escolheu Pedro Catani, um dos primeiros companheiros.
A transmissão ao cargo foi feita no capítulo de 29 de setembro de 1220. Depois disso sentiu-se livre e leve. Mergulhou em Deus e sentiu paz. Mas a noite escura não tinha terminado.
Durante o outono e inverno de 1220, Francisco dedicou-se a redação da regra. No dia 10 de março de 1221, recebeu um novo golpe: morreu Pedro Catani, e o sucedeu, no governo, Frei Elias Bombarone, homem pouco franciscano.
Frei Elias, depois da morte de Francisco, quase acabou com o ideal Franciscano e por várias arbitrariedades e inimizade com o Papa, foi destituído do cargo e excomungado. Depois arrependeu-se e morreu reconciliado com a Igreja.
Francisco não era mais ministro geral, mas não deixou de ser pai e legislador da fraternidade. Continuou a redação da regra, auxiliado por Leão e Frei Cesário de Spira . Livre das obrigações do governo, tinha tempo para pôr por escrito suas idéias.
Os intelectuais achavam que depois de tantos sofrimentos, Francisco tinha aprendido a lição e esperavam uma regra como eles queriam. Enganaram-se.
Na extensa regra de 1221, o Irmão derramou sua alma inteira. A regra tinha 23 longos capítulos e mais de 100 textos bíblicos. Nela Francisco lançou todos os ideais alimentados desde a noite de Espoleto até ali.
Então no capítulo de 1221, o objetivo era aprovar a Regra, antes de ser apresentada a Santa Sé.
Foram distribuídas várias cópias entre os presentes. Nela continha todo o espírito de Rivotorto e no final ainda acrescentava o seguinte:
“Se um ministro mandar alguma coisa contrária ao nosso ideal, os súditos não estão obrigados a obedecer. Se os ministros andarem fora de nosso espírito, os irmãos devem corrigi-lo e se, não se emendarem, devem ser denunciados.”
Os ministros deixaram correr o tempo, enquanto aquela regra não era aprovada pela Santa Sé. E com a ajuda do Cardeal começaram uma negociação, nos bastidores, com Francisco. Até que conseguiram convencê-lo a rescrever a regra, dando forma mais prática e jurídica.
Novamente Francisco tomou consigo Frei Leão e Frei Benício, e foi para o vale de Rieti, para uma montanha de nome “Fonte Colombo.” Lá escreveu a Regra definitiva.
O trabalho ficou pronto em dois meses. Voltou para a Porciúncula e entregou o manuscrito para os ministros para que o revisassem e aprovassem, e retirou-se para o eremitério dos cárceres para não pressionar, com sua presença, a revisão da nova regra.
Depois de alguns dias voltou e se apresentou na Porciúncula. Os ministros o evitavam e ninguém falava nada sobre a Regra. Encontrou-se com Frei Elias que lhe disse: “Irmão Francisco, lamento ter que dizer que o manuscrito se extraviou, e não sabemos por culpa de quem.”
Francisco pediu que o deixassem sozinho e começou a pensar assim:
“Que fizeram do manuscrito? Sem dúvida não era do agrado deles e algum deles, certamente Frei Elias, jogou-o no fogo. Que pretendiam com isso? Esgotar minha paciência? Dar tempo ao tempo, até que em morra?”
Francisco estava em trevas, não sabia mais o que fazer.
DEUS É, E BASTA!
Fazia muito tempo que Francisco não visitava as damas pobres. Mas Clara, estava sabendo de tudo o que estava acontecendo. Francisco também não queria que Clara visse sua tristeza.
Um dia Clara mandou um recado por Frei Leão. Dizia assim:
“Pai Francisco, acendestes as nossas chamas e agora deixas que se apaguem?
Plantastes essas plantinhas e agora as deixas sem regar?
Esquecestes que somos tuas Damas Pobres? Precisamos de ti. Quem sabe se tu também não necessitas de nós? Esperamo-te para o almoço.”
Francisco recebeu o recado e resolveu ir visitá-las.
Quando o irmão chegou , Clara o recebeu com muito carinho e alegria e perguntou se tinha esquecido de sus filhas.
Francisco respondeu: “Esquecer-vos? Impossível. A presença vale alguma coisa?
Ademais os olhos são janelas perigosas. Através deles dá para ver o interior, e às vezes lá dentro só há sombras.”
Enfim ele chegou onde ela queria. Então tomou a iniciativa e começou a falar assim:
“Pai Francisco, eu sou tua plantinha. Se tenho ou sei alguma coisa, recebi tudo de ti.
Estás metido num bosque e não podes ter uma boa visão. Eu estou longe e por isso me encontro numa posição melhor para medir as proporções. Temo que o que esteja acontecendo contigo seja um pequeno problema de apreciação.
Alguns dias atrás, eu fiquei sabendo que um mosteiro antigo dividiu-se por causa de um gatinho. Uma irmã se afeiçoou a um gatinho. As outras olhavam feio para a dona do gatinho e esta respondia a mesma altura, até que o mosteiro se dividiu entre as irmãs que gostavam do gatinho e as que não gostavam. Este já era o único “deus” do mosteiro. Não sei se essa história é verdadeira…
Um pequeno problema de apreciação pai Francisco. A “coisa” que amamos prende-nos.
Quando aparece alguma ameaça para a “coisa” que amamos, nos agarramos a ela com muita força. “E assim vemos, que no fim, no mosteiro o principal é o gatinho, a que demos importância desproporcionada.”
Francisco sentia que aquelas palavras eram como chuva fresca na terra seca.
Clara continuou: “Pai Francisco, o ideal, a Ordem, a pobreza são certamente uma “coisa” importante. Mas, levanta um pouco os olhos, olha ao teu redor e verás uma realidade sem fim, altíssima: Deus. Se olhares para Deus, o que tanto te preocupa vai parecer insignificante. É um pequeno problema de apreciação. “Que valem nossos pequenos ideais diante da eternidade de Deus?”
Clara aproximou-se e continuou devagarinho: “ Querido Francisco. Deus! Deus!”
Francisco se sentia infinitamente feliz . quando Clara percebeu isso continuou;
“Pai Francisco, foste um devastador implacável. Queimaste casa, dinheiro, posição social. Venceste o ridículo, o medo do desprestígio. De tudo te despojaste para que Deus fosse teu tudo.
Mas, se agora reina alguma sombra em teu interior, é sinal que estás preso a alguma coisa, que Deus ainda não é o teu tudo. Daí a tua tristeza. Em resumo, é sinal que catalogaste como obra de Deus o que , na verdade , é obra tua.
Para a perfeita felicidade só te falta uma coisa: “desapegar-te da obra de Deus , e ficar só com o próprio Deus” , completamente despojado.
Ainda não és completamente pobre e por isso não és completamente livre e feliz.
Solta-te de ti mesmo e dá o salto mortal: Deus é, e basta! Solta-te do ideal e assume, com gosto e felicidade essa realidade que supera toda realidade: Deus é, e basta!
Clara calou-se. Francisco sem perceber deixava cair lágrimas tranqüilas, sentia-se imensamente feliz.
“Deus é , e basta!” repetia soluçando.
Levantou-se devagarinho e repleto de felicidade disse pela última vez:
Deus é, e basta! “Essa é perfeita felicidade.”
Virou-se e foi embora chorando, sem se despedir de Clara. O mesmo fez Clara.
A regra de 1223 tinha desaparecido, era preciso reescrevê-la , agora, não mais em agonia , mas abandonado nas mãos do Pai.
Tomou novamente Frei Leão e Frei Benício, e subiram mais uma vez no “Fonte Colombo” e lá rescreveram a regra definitiva dos irmãos menores. Francisco levou em conta as observações do cardeal Hugolino com relação a forma jurídica, mas no ideal geral Francisco não cedeu.
A pobreza absoluta continua de pé. Não possuirão casa ou coisa alguma, e cuidarão uns dos outros, como uma mãe faz com seu filhinho.
Em maio de 1223, aconteceu o “Capítulo” geral e novamente foi apresentada a regra. Os biógrafos não transmitem se houve alguma coisa.
O que se sabe, é que após alguns meses, Francisco foi a Roma e entregou o documento nas mãos da Santa Sé, depois de algum tempo, a regra foi solenemente aprovada por Honório III , no dia 29 de novembro de 1223. Desde então essa regra breve constitui a legislação oficial dos Irmãos Menores.
A peregrinação dolorosa de Francisco tinha terminado. Deus tinha levantado a mão. A noite escura estava acabando e o dia já raiava.
Conta-nos Frei Leão, que depois da aprovação da regra, Francisco foi para uma gruta ouvir a voz de Deus. Depois de tanto tempo sem ouvir a voz de Deus, estava ansioso para ouvi-la. Frei Leão como bom companheiro, estava sempre por perto, para cuidar do irmão, e é ele quem nos relata o: “Nunca Bastante”.
O NUNCA BASTANTE
“Enquanto eu refletia, Francisco de Assis apareceu na entrada da gruta. Resplandecia como uma brasa ardente. A oração tinha devastado ainda mais o seu corpo, mas o que restava dele brilhava como uma chama. Uma estranha felicidade irradiava de seu rosto”. Estendeu-me a mão e disse-me:
Bem irmão Leão, estás disposto a executar o que vou te dizer ?
Seus olhos brilhavam como se tivessem febre, e neles podia eu distinguir anjos e visões que enchiam seu olhar. Senti medo. Teria perdido a razão?
Adivinhando meu temor, Francisco se aproximou para dizer-me:
Até agora foram usados muitos nomes para definir Deus. Esta noite, descobri outros. Deus é abismo insondável, insaciável, implacável, infatigável, insatisfeito…
Aquele que nunca disse para a alma: “Agora Basta”.
Aproximou-se mais ainda, e como se estivesse transportado a outros mundos, acrescentou com voz emocionada:
Nunca Bastante! Gritou.
Não é demais, irmão Leão, isso que Deus me gritou durante estes três dias, lá no interior da gruta: Nunca Bastante! O pobre homem de barro reage, protesta: não posso mais! E Deus responde: ainda podes! O homem geme: Vou estourar! – Estoura! Responde Deus.
A voz de Francisco enrouqueceu. Senti pena dele. Temi que cometesse qualquer disparate. Irritado, eu lhe disse:
O que quer Deus, agora de ti? Não beijaste o leproso, que tanta repugnância te causava?
Francisco respondeu: Não é suficiente.
Frei Leão insiste: Não abandonaste tua mãe, Madona Pica, a mulher mais bondosa do mundo?
Não é suficiente. Respondeu Francisco.
Não te expuseste ao ridículo, entregando tuas roupas ao teu pai e ficando nu diante do povo?
Francisco novamente respondeu: Não é suficiente.
Mas não é o homem mais pobre do mundo?
Francisco então concluiu: Não é suficiente ! Não te esqueças, irmão Leão: Deus é o NUNCA BASTANTE!”