CORPUS CHRISTI (Estudo Bíblico)

Marcos 14,12-16.22-26

Introdução

Depois da magna solenidade da Santíssima Trindade, em que a confissão de fé no único Deus que se dá a conhecer em trindade de pessoas que se amam e nos amam, que nos levou a um sublime louvor, celebramos hoje a solenidade do Corpo e Sangue de Cristo.

Também hoje a confissão de fé na presença real de Jesus na Eucaristia é o ponto de partida de um imenso louvor a Deus que se doa como dom. A gratidão mais perfeita será nossa comunhão com a gratidão de Jesus em sua oferenda ao Pai.

O Evangelho de Marcos ilumina nesta ocasião a compreensão, contemplação e vivência do Mistério. Vemos Jesus enviar seus discípulos para preparar o banquete pascal. Logo, na última ceia, Jesus evoca o rito da Aliança do Sinai e sela uma Nova Aliança em seu Sangue.

Nos dons do pão e do vinho Ele oferece livremente sua vida ao Pai e convida a seus discípulos a unir-se a Ele. Esta Nova Aliança é para todos, se oferece para todos os seres humanos. No altar da Eucaristia este dom chega até nós.

As lições sobre o discipulado e a missão que temos vindo perfilando nos últimos domingos, têm na lectio que fazemos hoje um momento cume:

  • Antes que aconteça a Paixão três vezes anunciada durante a subida a Jerusalém (ver Mc 8,27-10,52), Jesus mostra, por meio da última ceia, e nela, de maneira ainda mais densa, que é o que Ele dá a seus discípulos e a toda a humanidade.
  • A obra e o sofrimento de Jesus nos alcançam o perdão dos pecados, tal como o anunciou a seus discípulos: “Pois o Filho do Homem não veio para ser servido, mas para servir e dar a sua vida em resgate por muitos” (Mc 10,45). Com o dom de sua vida na Eucaristia, Jesus nos liberta do pecado e da morte, por uma parte, e nos dá a plenitude de sua vida, por outra.
  • Jesus não só educa com palavras, mas com ações, com gestos significativos. Duas vezes Jesus se dá a si mesmo a seus discípulos no pão e o vinho para que eles o comam e o bebam, para estabelecer com eles a relação mais profunda, a Aliança mais sólida, a comunhão mais estreita que possamos imaginar, com Ele e com os irmãos, recebendo assim o dom da vida.

Entremos no texto de São Marcos e deixemos que suas luzes incrementem nosso amor pela Eucaristia. Tratemos de compreender o que implica a Eucaristia para um discipulado que não pode entender-se fora do caminho da Cruz.

1. O texto em seu contexto

1.1. A seção de Marcos 14,12-31 e o texto

Em Mc 14,12-31 o evangelista agrupa uma serie de cenas em torno ao cenário da última ceia de Jesus e seus discípulos. A narração tem dois momentos. O segundo se subdivide de uma forma interessante.

Vejamos:

(1) Os discípulos são enviados a preparar a Páscoa (vv.12-16).

(2) Chega o momento solene, e teologicamente rico, do banquete (vv.17-31).

      No centro temos o relato da instituição da Eucaristia (22-26).

      Este está ladeado por duas cenas onde o coração vacilante dos discípulos é, ainda,

      o tema central de Marcos:

  • Jesus prediz a traição de Judas (vv.17-21); e
  • Jesus prediz as negações de Pedro e a fuga dos outros dez (vv.27-31)

O relato da instituição da Eucaristia, pondo o acento sobre a comunhão profunda que existe entre Jesus e seus seguidores, e logo sobre o triunfo definitivo de Jesus sobre a morte, aparece em contraponto enérgico com cenas que refletem sobre a debilidade e a falta de perseverança dos discípulos.

A liturgia de hoje nos propõe deter-nos no momento preparatório do banquete pascal (vv.12-16) e logo no relato mesmo da instituição da Eucaristia (vv.22-25). Lemos 14,26 como conclusão necessária à narração.

1.2. O texto: Marcos 14,12-16.22-26

  • A preparação da Páscoa (vv.12-16)
    • O marco cronológico

“O primeiro dia dos Ázimos, quando se sacrificava o cordeiro pascal(14,12ª).

Do momento em que se iniciou o relato da Paixão (Mc 14,1) transcorreu um dia inteiro. É quinta-feira, o primeiro dia da páscoa. À tarde, no Templo, eram sacrificados os cordeiros pascais. A noite começava a festa, e o banquete pascal se comia em Jerusalém.

O relato de Marcos está bem informado de tudo: o dia está assinalado como “o primeiro dia dos Azimos, quando se imolava a Páscoa” (v.12). É claro que Marcos se refere à quinta-feira, 14 de Nisán, ainda se, estreitamente falando, o primeiro dia dos Ázimos iniciava à noite, ao inicio do 15 de Nisán.

O relato da preparação repete insistentemente quatro vezes o termo “páscoa” (2 vezes em 14,12; e uma vez em 14,14 e 14,16). Vemos como Marcos indica, com clareza, que a ceia que vem é uma ceia pascal, ainda que, curiosamente, a descrição em si não a identifica, necessariamente, com todos os rituais estritos do “séder” da páscoa hebréia.

No resto do relato (diferente de João), Marcos não parece tirar proveito do símbolo da Páscoa; o faz apenas nestas cenas, ainda preliminares, onde nos põe a todos ante o riquíssimo símbolo teológico da libertação e da esperança de Israel.

  • As instruções de Jesus

As instruções detalhadas e um pouco insólitas dadas aos discípulos e a execução literal delas (14,16), nos recordam uma cena que já ficou atrás no relato do evangelho: a entrada em Jerusalém (11,1-7) onde foram a uma aldeia próxima e ali pegaram um jumento para a entrada de Jesus em Jerusalém.

  • “Ide à cidade”: Agora, de novo, dois discípulos são enviados (não disse quem). Subentende-se que vão de Betânia, onde permanece Jesus e os outros (14,3). Mas desta vez não são enviados a uma aldeia, mas à cidade mesma de Jerusalém.
  • “Um homem levando uma bilha d’água virá ao vosso encontro. Segui-o”: Disse-lhes que encontrariam um homem levando uma bilha d’água. O espetáculo é insólito, pois este é um trabalho reservado às mulheres. Os discípulos devem segui-lo até o lugar onde se celebrará a Páscoa. O dono da casa, que provavelmente é o patrão do servo que levava o cântaro, lhes mostrará a sala onde deverá ser preparada a festa. Os dois discípulos executam com muita exatidão as instruções do Mestre e encontram tudo o que Jesus lhes havia predito.
    • Reconstruamos a atmosfera da ceia

A atmosfera desta passagem demonstra como Jesus não atua às pressas, seu caminho para a Cruz revela que Ele atua deliberadamente, com segurança. Vamos mais além, esta é a atmosfera de toda a sequência que segue na ceia pascal. Na ceia se proclama com todo rigor o triunfo de Jesus sobre a traição, sobre a dispersão dos discípulos e sobre a morte. No Getsemani o relato da paixão dará um giro importante: encontraremo-nos com um ambiente mais sombrio e doloroso.

Durante a tarde de quinta-feira, Jesus entra na cidade, com os doze, para celebrar a Páscoa (14,12). A paixão do Senhor inicia docemente, sem nenhum drama especial. Esta entrada tranquila, quase seca, sem ruído, contrasta com o cortejo triunfal que o havia acompanhado a primeira vez desde Betânia a Jerusalém (11,1-10).

Desta vez Jesus está desprotegido, não está rodeado da multidão, da qual tanto medo têm as autoridades. Agora a ameaça do complô contra Jesus dá ao momento uma tranquilidade estranha, é uma “calma sem paz”, como a calma antes da tempestade. 

  • A instituição da Eucaristia (14,22-25)

Esta cena constitui uma dos mais vibrantes “desenvolvimentos” teológicos de todo o Evangelho de São Marcos. Aqui Jesus dá uma interpretação do significado último de sua morte. Este é um dos textos mais estudados de todo o Novo Testamento junto com outros relatos da instituição da sagrada Eucaristia: Mt 26, 26-29; Lc 22, 14-20; Jn 6, 51; 1 Cor 11, 23-26.

Qual é a intenção de Marcos ao narrar a instituição da Eucaristia?

Em contraste com Paulo (1 Corintios), Marcos não mostra de modo explícito a tradição da cena como um ensinamento sobre a celebração da Eucaristia pela comunidade.

Sem duvida, a cena suscitou e seguirá suscitando em nós, leitores de hoje, reflexões sobre a origem e o significado fundamental do culto eucarístico, mas a finalidade imediata de Marcos, no contexto do relato da Paixão, é fazer uma interpretação de toda a missão de Jesus e do papel que os discípulos têm nela. Vamos confirmar isto aos poucos, na medida que lemos, bem devagar, esta passagem.

Uma primeira visão do texto

A narração se desenvolve apenas com os termos precisos, com muita clareza e nitidez. Durante a ceia, Jesus realiza o gesto simbólico de abençoar o pão e o vinho e compartilhar com seus discípulos.

Cada gesto está acompanhado de uma palavra explicativa. Sobre o pão e sobre o cálice Jesus pronuncia uma oração. Sobre o pão se diz “bendito”, e o cálice se diz “deu graças”, mas não conhecemos o conteúdo da oração.

Com o pão nas mãos Jesus disse “tomai” e, se não o disse expressamente, se entende que o mesmo disse para o vinho. Do cálice se disse que beberam todos, e se tampouco disse expressamente, se entende que todos comeram também do pão.

O importante é que Marços nos faz ver que os discípulos têm participação direta nas ações de Jesus. Ao fim, a ceia acaba com o solene hino do Hallel Pascal.

Convidou-os agora a aprofundar. O sentido da ceia está nas palavras explicativas que Jesus pronuncia após cada um dos gestos com o pão e o vinho, respectivamente, e na conclusão de toda a ceia. Vamos por partes:

  • Os gestos e palavras de Jesus sobre o pão (14,22)

Quando Jesus bendiz e parte o pão e diz: “Isto é meu corpo” (14,22). Ao agir assim, Jesus está usando o pão como um símbolo particularmente profundo do que é Ele mesmo e do que é sua missão, sua tarefa pastoral, sua obra no mundo.

Se olharmos o termo “pão” (ou “pães”) tal como aparece no evangelho, em rápida revisão, veremos que o evangelista Marcos já o apresentou como um símbolo eficaz da tarefa messiânica de Jesus.

  • O pão para as multidões

Repassemos os dois relatos da multiplicação dos pães e seu sentido.

A primeira multiplicação dos pães: Mc 6,34-44

Marcos narra o primeiro dos dois episódios onde Jesus sacia a fome das multidões. Ele, acompanhado de seus discípulos que acabam de regressar de sua missão (6,30-32), toma uma barca para ir descansar com eles, mas quando chega à outra orla está o povo a sua espera. Marcos faz notar de um modo significativo a compaixão que Jesus sente pela multidão (6,34). Respondendo a suas necessidades, Jesus começa a ensinar-lhes (6,34) e, finalmente, a matar sua fome, e tudo isto apesar dos protestos dos discípulos que não entendem o que está ocorrendo. Jesus abençõa e distribui, pelas mãos dos discípulos, os cinco pães e os dois peixes, para uma multidão de más de 5.000 pessoas.

Observando bem este texto, mesmo que ainda se fale de pães e peixes, são os pães que ocupam o centro do interesse (6,37.41.44). Mais significativo é o fato de que os gestos de Jesus são praticamente os mesmos que realiza sobre o pão na última ceia: “tomar o pão”, “bendizer”, “partire “dar”.

No relato os discípulos ocupam um lugar importante. Tomam os pães abençoados (e os peixes) das mãos de Jesus para dar ao povo, e são eles mesmos que recolhem as sobras em doze cestas (6,43).

Esta multiplicação milagrosa é uma manifestação evidente da atividade messiânica de Jesus. A multidão cheia de miséria e desorientada é nutrida abundantemente, e tudo graças à misericórdia de Jesus.

Os discípulos recolhem doze cestas, o qual é figura das doze tribos de Israel que serão reunidas no dia da salvação.

  • Esta ação de Jesus nos remete à ação semelhante do profeta Elias, que de maneira milagrosa deu alimento à viúva e a seu filho com apenas uma pequena quantidade de azeite e farina (1 Re 17,8-16; e o mesmo acontece na vida de Eliseu (2 Re 4,1-7.42-44).
  • Remete-nos, também, a um episódio similar em Êxodo, pois a multidão em jejum se acha num lugar deserto (Mc 6,35) e é alimentada como Deus o fez com Israel com o maná abundante. Ler Ex 16,32: “Disse Moisés: Isto manda Yahveh: enchei um gomor de Maná, e conservai-o, para vossos descendentes, para que vejam o pão com que os alimentei no deserto, quando os retirei do país do Egito”.

A segunda multiplicação dos pães: Mc 8,1-10

A segunda multiplicação dos pães, encontramos os mesmos elementos da primeira. Jesus se comove ante a fome do povo (8,2-3), enquanto que seus discípulos não entendem o que acontece (8,4). O ambiente é o deserto (8,4). Porém neste caso a cena está dominada completamente pelos pães (dos peixes apenas se faz uma referencia em um inciso no v.7). A multidão, desta vez, é de 4.000 pessoas e os cestos de sobras somam sete (8,8).

Uma vez mais vemos a conexão explícita com a ceia pascal de Jesus. Os verbos são os mesmos: “tomar o pão”, “dar graças”, “partir” e “dar”. Como no capítulo 6, o papel dos discípulos é bem significativo: a eles é dado o pão bento para que o distribua à multidão (8,6), e eles mesmos são os que recolhem as sobras (8,8).

Que nos fica desta breve análise comparativa?

Tenhamos em conta que o fato de que as multiplicações dos pães sejam duas não é uma causalidade, Marcos capta algumas matizes com que constrói o significado:

  • O relato do capítulo 6 está ambientado em território hebreu;
  • Logo, se seguimos lendo o relato, notamos que a partir do v.34 do cap.7, como reação ao conflito com os escribas e fariseus (7,1-12), Jesus inicia uma viagem por território pagão. Vai a Tiro e a Sidón primeiro e logo à Decápolis (7,24-31);
  • O prodígio da multiplicação dos pães (8,9) encerra a missão entre os gentios; em 8,10 Jesus volta a Dalmanutá, lado ocidental do lago da Galiléia e ali de novo encontra com seus adversários hebreus (8,11-13).

Por isso, os milagres das multiplicações dos pães, segundo Marcos, ocorrem nas duas orlas do lago, uma hebréia e outra pagã. Jesus nutre a hebreus e gentios, indicando, assim, a universalidade de sua missão.         O número dos cestos sublinha outra distinção: ao fim do milagre junto à multidão hebréia, se recolhem doze cestas, representando a reconstituição de Israel (6,43). Depois que sacia a fome dos gentios, se recolhem sete cestos (8,8), um número que pode expressar universalidade, perfeição, plenitude.

  • A dificuldade dos discípulos para compreender os episódios dos pães

Agora neste significado dos pães, entendido como símbolo da missão universal de Jesus, é claramente importante para Marcos. Isto está indicado pelo fato de que os discípulos não compreendem precisamente o sinal dos pães. Sua incapacidade de reconhecer a Jesus no episodio do mar (6,45-52) se explica com esta frase do 6,52: “Pois não tinham entendido nada a respeito dos pães, mas seu coração estava endurecido”.

Marcos põe no mesmo nível a incapacidade dos discípulos para entender o significado dos pães e a Jesus mesmo. Faz-se a mesma consideração, mas com maior força em 8,14-21, justo no fim do ministério de Jesus, na Galiléia. Uma vez mais estamos numa barca em meio do mar, símbolo da escola de Jesus. Os discípulos interpretam mal suas palavras sobre o “fermento dos fariseus e de Herodes” (8,15). Equivocadamente, crêem que Jesus os está reprovando por trazerem um só pão para a viagem na barca (8,14-16), e começam a murmurar, olhando uns aos outros: “não temos pão” (8,16). Na realidade, o fato de que centrem seu interesse no pão, alguém o notaria inoportuno e pouco espontâneo, se não fosse, porque Marcos está tentando dar-lhe um significado simbólico. Jesus acusa com vigor aos discípulos de incompreensão (Ler Mc 8,17-21).

  • Jesus, o pão e a Eucaristia em Marcos

Recolhamos agorao que vimos até aqui em nossa análise do sentido do pão em Marcos. Os relatos das multiplicações dos pães retomam o sentido da missão de Jesus com Israel e todas as nações. Não captar bem isto é não entender a Jesus. Assim o evangelho toma a cegueira e a surdez dos discípulos e nos apresenta como uma metáfora para referir-se à falta de fé, do mesmo modo como fez no discurso das parábolas 4,11-12 (Is 6,9-10).

Portanto a palavra “pães” ou “pão” (em grego “artos”) tem claramente no Evangelho de Marcos a função de símbolo da missão de Jesus que se propõe reunir e alimentar ao povo disperso de Israel, rompendo inclusive os limites étnicos para alimentar a todos os povos do mundo. Isto podemos confirmar em outra cena do evangelho. Uma mulher sirofenícia havia suplicado a Jesus que lhe desse um pouquinho daquele “pão” e graças a sua fé tenaz, o consiguiu para sua filha (Mc 7,24-30).

Mas em Mc 8,14-21 os discípulos não entendem que o pão particularmente oferecido por Jesus é suficiente para saciar a fome de toda a multidão, tanto hebreia como gentia. O ambiente do deserto e a abundância clara de pães amplia o simbolismo: se evoca o Deus que nutre Israel durante o êxodo, bem como o tão desejado banquete messiânico sobre o monte Sião (bem recolhido por Isaías).

Este simbolismo messiânico já havia surgido quando Jesus chamou Levi, o publicano, para segui-lo e logo após este sentou a mesa junto a Ele e outros excluídos (2,15-17). Não podemos entender a última ceia sem todo este contexto do Evangelho de Marcos. A última ceia (vv.22-25), é pois, o terceiro dos “convites” messiânicos do Evangelho. Os gestos de Jesus sobre a comida – a benção, fração, distribuição – é a mesma em cada uma delas. Em cada ceia os discípulos tem um papel importante. Todos estes convites estão conectados com o êxodo libertador: os primeiros por sua ambientação no deserto e a última ceia por sua conexão com a páscoa.

Porém a última ceia lhe dá uma profundidade maior ao significado dos pães. Neste momento o pão não só é sinal da missão universal de Jesus; agora o pão é “Seu corpo”, é Ele mesmo (v.22). Jesus se encontra frente à morte que se aproxima, já nada a pode parar; seu “corpo” está a ponto de ser entregue, torturado, desprezado, assassinado.

Tendo chegado a este ponto, vemos como o fato de por o pão nas mãos dos discípulos, um pão que agora é declarado seu próprio corpo, se converte em um símbolo bem preciso da morte de Jesus pelos demais. A palavra “pão” se une às pregações da paixão que vinha fazendo na viagem a Jerusalém, onde dizia sempre que o Filho do homem vai ser “entregue”. Entendemos agora de modo mais claro que o oferecimento de seu corpo/pão é a realização do que disse em 10,45: “O Filho do homem não veio para ser servido, mas para servir e dar sua própria vida como resgate por muitos”.

  • As palavras e gestos de Jesus sobre o cálice (14,24):

Também o cálice tem um significado simbólico no Evangelho, ainda não tão amplo como o do pão. Neste caso, também as palavras explicativas do v.24 são bastante claras: “Este é o meu sangue, o sangue da Aliança, que é derramado em favor de muitos”.

  • O cálice que Jesus e os discípulos devem beber.

Em 10,38-40 encontramos uma primeira menção do “cáliçe” da parte de Jesus para referir-se a sua morte:“Jesus respondeu: ‘Não sabeis o que pedis, Podeis beber o cálice que eu beberei e ser batizados com o batismo com que serei batizado?’ Eles  disseram-lhe: ‘Podemos’. Jesus replicou-lhes: Do cálice que que eu beber, vós beberéis, e com o batismo com que eu for batizado, sereis batizados. Todavia, o assentar-se à minha direita ou à minha esquerda não cabe a mim concedê-lo, mas é para aqueles aos quais isso foi destinado’ ”. 

Beber do cálice que Deus tem preparado” era uma expressão hebréia que indicava o martírio que um profeta devia suportar e, pelo contexto desta passagem, é claro que Marcos está pensando neste sentido.

A ambição empurra os dois filhos de Zebedeu a buscar postos privilegiados ao lado de Jesus. Mas Jesus os detém, lhes recorda que significa compartilhar com ele seu mesmo poder, isto é, beber o mesmo cálice, que significa compartilhar do caminho da cruz. No Getsemani fica bem claro que o “cálice” é um símbolo de sua morte: “Pai, afasta de mim este cálice” (14,36).

  • Jesus, o cálice e a Eucaristia em Marcos

Quando se liga este texto dos filhos de Zebedeu ao da última ceia, vê-se que o cálice não é o único ponto comum, mas, em ambos, os discípulos são chamados a partilhar da morte sacrificial de Jesus.

Durante a última ceia, referindo-se à ordem de Jesus, Marcos escreve: “E beberam todos” (do cálice). As palavras dizem claramente o que as ações de Jesus já haviam dito: “Esta é meu sangue da Aliança, que é derramada por muitos” (14,24):

  • Por muitos: Sua morte é “por muitos”. A precisão “por muitos”, é semítica, implica uma inclusão universal e –como já vimos na frase de 10,45- parece descrever a morte de Jesus como a do Servo de Yahweh, uma morte para expiação de nossos pecados.
  • Da Aliança: As palavras “da Aliança” abrem a porta outra cadena de metáforas bíblicas neste rico mosaico teológico do relato da instituição da Eucaristia.

Estas palavras nos remitem ao Êxodo (24,8), quando Moisés ratificou a aliança tomando o sangue de novilhos destinados ao sacrifício, derramando a metade sobre o altar e fazendo uma aspersão sobre o povo com a outra metade, enquanto lhes dizia: “Este é o sangue da Aliança que Yahweh fez convosco, com base em todas estas palavras”.

Marcos não diz claramente que se trata de uma “Nova Aliança” (como diz Lucas e Paulo), mas, mesmo assim, nota-se que a idéia de uma aliança nova, escatológica, proclamada por Jeremias, harmoniza muito bem com o pensamento de Marcos (Jr 31,31-34). A morte redentora de Jesus realiza a renovação da nova e definitiva aliança esperada por Israel. Trata-se dum tempo de perdão, experiência real graças à missão de misericórdia que o Filho do homem veio realizar com todos os oprimidos pelo pecado (2,1-12.15-17).

  • A Morte e Vitoria de Jesus traça uma ponte entre as duas mesas (14,25)

Toda a cena da ceia pascal de Jesus com seus discípulos recebe ênfase especial pela solene conclusão que faz Jesus. Suas palavras retomam o significado simbólico da comida contido nas palavras pronunciadas sobre o pão e o vinho, e funde tudo numa profecia final da paixão e da ressurreição.

Jesus disse que esta é sua última comida: “não beberei do fruto da videira” (do vinho). A amargura e o caráter definitivo desta vigília pascal se sintetizam num novo sinal: Jesus não voltará a consumir o alimento da esperança e da alegria – que é o sentido do vinho – com seus discípulos. Mais ainda, une este sinal à profecia da separação e da morte, nota-se como se tem uma ponte que se apóia na morte de Jesus e se projeta até uma nova ceia que será na nova comunhão com os discípulos no Reino definitivo, na ressurreição.

Apesar da morte, Jesus participará do banquete sobre Sião que Israel, ardentemente, desejava. O banquete onde o vinho do Reino se servirá de novo em abundância e onde Deus arrancará o véu da morte e enxugará todas as lágrimas: “Iahweh dos Exércitos prepara para todos os povos, sobre esta montanha, um banquete de carnes gordas, um banquete de vinhos finos, de carnes suculentas, de vinhos depurados. Ele destruiu sobre esta montanha, o véu que envolvia todos os povos e a cortina que se estendia sobre todas as nações; ele fez desaparecer a morte para sempre. O Senhor Yahweh enxuga as lágrimas de todos os rostos; ele removerá de todas as terras o opróbrio do seu povo, porque Yahweh o disse” (Is 25,6-8).

As palavras de Jesus (14,25) são uma surpreendente pregação de esperança e vitória que se insere em meio dos acontecimentos que o precipitam à morte.

Ao narrar-nos a última ceia de Jesus, Marcos nos coloca ante uma interpretação teológica bem rigorosa da morte de Jesus. A morte de Jesus é o ato definitivo de toda a sua missão:

Primeiro, é um dar a vida que leva consigo a carga dos pecados do mundo e renova a Aliança entre Deus e a humanidade;

Segundo, é a obra final do Cristo de Deus, reunir o povo de Deus disperso e desesperançado –Israel e todas as nações- para nutri-lo com o pão que vivifica; e

Terceiro, é um gesto de esperança que declara que o cálice de morte será transformado em vinho bebido triunfalmente no Reino definitivo.

Todos estes pontos que nos ensina o relato de Marcos tem um grande nexo com o espírito da festa pascal, que recorda a libertação de Egito, a Aliança bem estreita no deserto, a reunião de Israel em um só povo e a esperança constante na vinda do Reino de Deus.

  • Releiamos o Evangelho com um Padre da Iglesia

Tais são os gloriosos mistérios da santa Igreja, e tal é a ordem que são celebrados pelos sacerdotes.Feliz aquele que tem o coração puro no momento em que são consagrados os mistérios tremendos do Corpo de nosso Senhor! Os Anjos do Céu consideram muito afortunados os filhos da Igreja que são tidos como dignos de receber o Corpo e o Sangue de Jesus nosso Senhor. Glória ao teu nome por teu dom inefável! E quem pode dar glória adequadamente a tua divindade? Vem, portanto, tu que fostes admitido ao sacramento dos filhos da Igreja, a aprender segundo aquela prescrição que te pode acercar aos sacerdotes, para que te acerques segundo o modo que o apóstolo Paulo decidiu.Acerca-te com coração puro ao corpo e ao sangue de nosso Senhor, que purificarão das manchas dos pecados que tens cometido. Os sacerdotes não afastem ao pecador que vem a arrepender-se, nem ao impuro que se lamenta e que se aflige de ser impuro.Mas que recebam aos impuros e pecadores com a condição de que façam o propósito de nunca mais regressar ao mal. Ora, então, com amor, junto com o sacerdote, para que aquele que dá a vida e perdoa os pecados te receba! Está atento a não sair da nave para andar por fora no momento em que são consagrados os sagrados mistérios! Quem é o que, voluntariamente, recusaria esta comida à qual são convidados os anjos e os homens? Quem é o que, desde o momento em que foi inserido na Igreja, preferiria o posto dos estranhos que a Igreja tem afastado? Este é o momento que se tem que estar como um anjo, neste momento em que o Espírito Santo o habita. Este instante da vida a quem está presente e partilha os dons com aquele que o acolhe. Feliz aquele que crê e recebe estes dons, posto que se ele está morto, reviverá, e se está vivo não morrerá por haver pecado!” (Narsai el Leproso, Expositio Myster).

  • Para cultivar a semente da Palavra na vida
  • Que oferece o marco cronológico da última ceia e as instruções de Jesus aos discípulos sobre a preparação à compreensão da Eucaristia?
  • Como se relaciona a simbologia do pão no evangelho com o gesto de Jesus na última ceia?

Que compreensão tenho agora do pão eucarístico?

  • E para o simbolismo do cálice?
  • Procure pôr-se de cara com o texto: Que revelação sobre Jesus me dá a Eucaristia?
  • Ponha-se ante si mesmo: Segundo este relato, que características devem definir o discipulado, particularmente à luz da Cruz-Doação de Cristo?

Pe. Fidel Oñoro, cjm

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