Deus me deu irmãos
VOCACIONAL 01-
CAPÍTULO 2
DEUS ME DEU IRMÃOS
O novo pregador não tinha a pretensão de fundar uma Ordem. Ele só pensava em mostrar aos homens, como pela penitência, se chegariam à paz. Ele mesmo experimentara quanto Cristo tinha razão no Evangelho. E Francisco não apareceu em Assis como um estranho. A sua transformação era evidente e já perdurava cinco anos diante dos olhos observadores de todos.
A quantos encontrava pelo caminho saudava como o Senhor lhe havia inspirado: “O Senhor te dê a paz, irmão!”. Em lugar de sermões falava com simplicidade, de penitência e do reino dos céus, assim como Jesus o havia feito. Tanta sinceridade, tanta pobreza, humildade e mortificação e a realidade de uma alma mergulhada em Deus, não deixou de impressionar os homens.
Além disso, esse mensageiro não atacava ninguém, nem o Podestá, nem o clero nem os magistrados. Não se apresentava com ares de reformador, mas como aquele que descobriu um tesouro e quer que todos participem.
Resultado: Almas generosas vinham oferecer-se a viver como ele e com ele.
ASSIM NASCEU A ORDEM PRIMEIRA:
O PRIMEIRO COMPANHEIRO: BERNARDO DE QUINTAVALLE
Bernardo era mercador como Francisco, mas de maior fortuna. Era ponderado e reflexivo, dificilmente se entusiasmava e mantinha controlados todos os seus impulsos.
Convencido de que nada vale a pena, porque tudo vai e vem e coisa alguma permanece, foi desprendendo o coração dos bens terrenos e começou a cultivar aquela sede de Deus.
Foi aí que Bernardo começou a observar Francisco e começou a pensar: “Francisco acertou. Tinha tudo e deixou tudo. Agora parece mais feliz do que todos nós. Vive sem Ter nada e como quem possui tudo. E sua conversão não foi uma febre passageira. Vou observá-lo de perto para verificar o grau de sua transformação”.
Convidou-o um dia para jantar em sua casa. Depois mandou preparar uma cama no mesmo quarto que ele, para observá-lo. Bernardo tinha na parede uma imagem do Senhor Crucificado.
Francisco deitou-se e fingiu um sono profundo. Bernardo fez o mesmo. Então Francisco levantou-se silenciosamente, ajoelhou-se diante da imagem, estendeu os braços em cruz e começou a dizer lentamente: “Meu Deus e meu tudo”, dizia com tanta intensidade e amor, que cada vez que repetia isso parecia ser a primeira vez, e assim passou a noite e não dizia mais nada. Bernardo estava profundamente emocionado.
Na manhã seguinte disse a Francisco: “Irmão Francisco, o Senhor me deu riquezas. Vi que as riquezas me separam do meu Senhor. Eu quero que o Senhor seja minha riqueza. Que devo fazer ?”
Francisco respondeu: “É verdade. Se as riquezas ocupam a alma, é difícil que o Senhor seja a sua riqueza. Trata-se de uma alternativa, ou Deus ou o dinheiro”.
A vida de Francisco causou a mais viva impressão no espírito do rico negociante. E ele decidiu, com coragem e firmeza que abriria mão de seus bens e deixaria o mundo para abraçar o ideal da perfeição cristã.
No dia seguinte saíram cedo de casa. Passaram pela casa episcopal, onde chamaram Pedro Catani, cônego de São Rufino, que também tinha manifestado o desejo de fazer o mesmo que Francisco, e participaram da Missa na igreja de São Nicolau. Após a missa passaram um tempo em oração.
Então Francisco aproximou-se do altar com reverência, como quem vai fazer algo muito importante. Francisco realizava as coisas maiores com simplicidade e sabia fazer as coisas menores com uma certa solenidade.
Pegou o missal, e com surpreendente ingenuidade e com aquela fé que transporta montanhas, submeteu a delicada questão ao juízo de Deus, suplicando ardentemente que o Senhor lhe mostrasse sua vontade, só de abrir o livro.
Abriu o missal pela primeira vez e deu com estas palavras:
“Se queres ser perfeito vai, vende o que tens e dá-lo aos pobres, e terás um tesouro no céu”. ( Mt 19,21 )
Em seguida abriu segunda vez, e eis que se depara com o seguinte:
“Se alguém quer vir após mim, negue-se a si mesmo, e tome a sua cruz cada dia e siga-me”. (Lc 9,23 )
Terceira vez abrem o livro e lêem:
“Não possuais ouro nem prata, nem tragais dinheiro nas vossas cintas”. ( Mt 10,9 )
A vida, bem como a regra de São Francisco encontram base sólida nessas verdades evangélicas.
Francisco depositou o missal no altar. Voltou-se para seus irmãos e lhes disse: “Amigos, o Senhor falou. Não temos nem o que comentar”.
Ao sair da Igreja foram os três à casa de Bernardo. Fizeram uma divisão: estas coisas e tanto dinheiro para o leprosário de “San Salvatore delle Pareti”. Esses tecidos e mais tanto dinheiro para outros hospitais pobres. O resto vai ser repartido entre os pobres na praça de São Jorge.
Era 16 de abril. Foi um espetáculo, viúvas, velhos, mendigos, todos os pobres, reuniram-se na praça para receber a sua parte.
Nessa ocasião, passava pelo local o padre Silvestre, este, mesmo sendo sacerdote, era homem seguro e, exigiu de Francisco um pagamento maior pela venda de pedras que antes lhe fizera, por ocasião da reconstrução da Igreja de São Damião. Francisco, admirado com aquele procedimento, colocou a mão na bolsa de Bernardo, onde havia dinheiro, tomou uma boa porção e bruscamente a entregou ao sacerdote, censurando-o pela sua avidez.
O padre Silvestre ouviu a palavra de censura e mágoa de Francisco, e retornando para casa, sentiu que o dinheiro lhe ardia nas mãos.
A partir daí o jovem padre começa a refletir na grandeza daqueles que davam tudo por amor a Deus. Reconheceu sua mesquinharia e arrependeu-se.
Algum tempo depois entregar-se-á a Francisco, como verdadeiro cristão e o acompanhará sempre.
Francisco terá por ele muito respeito. Aliás, Francisco votará, em todas as horas de sua edificante vida, profundo respeito pelos padres. Tinha-os como o prolongamento do sacerdócio de Jesus Cristo.
Francisco, Bernardo e Pedro de Catani deixaram Assis e foram para Santa Maria dos Anjos, a Porciúncula. Sem teto, sem dinheiro, sem nada. Eram, ao pé da letra, estrangeiros nesse mundo.
O “Pobrezinho de Assis” estava feliz. Nunca analisava os acontecimentos, nem projetava o futuro. Nem lhe passou pela cabeça se esse grupinho era, ou haveria de ser a primeira célula de um grande movimento. Era o homem do presente. Saltava de provisório em provisório. Sua única preocupação era ser fiel no momento presente.
Vivia sempre atento e disponível, à espera do inesperado. Recebia hoje uma inspiração divina, e já a punha em prática.
No dia seguinte levantaram três minúsculas choças com troncos, galhos secos, palha e um pouco de barro. Cada cabana não era mais alta que um homem normal, tinha o cumprimento de um corpo deitado e mais ou menos um metro e meio de largura. Construíram também uma cabana grande, onde se davam as reuniões que mais tarde serão chamadas de “Capítulo” entre os frades.
Alguns dias depois da partida de Francisco e de seus dois primeiros companheiros, um jovem, de nome Egídio, resolveu procurá-los. Ele ouvira, fascinado, as palavras de Francisco, na praça principal da cidade. E tinha ficado impressionado com a despedida do clérigo mais importante e do homem mais influente da cidade.
Chegou ao bosque da Porciúncula e encontrou Francisco, vendo-o ajoelhou-se dizendo: “Irmão Francisco, grande amigo de Deus. Eu também quero ser amigo do Senhor. Dá-me a mão e leva-me até o coração de Deus.”
O Francisco ficou emocionado com aquela simplicidade. Abraçou-o e lhe disse: “Meu irmão queridíssimo, sabes o que aconteceu nesta manhã na cidade? Chegou o Imperador e escolheu entre todos os cidadãos de Assis um cavaleiro para ser camareiro secreto da casa imperial. Esse cavaleiro és tu. Como te chamas?”
Egídio, respondeu ele.
“Como eu gostaria de Ter um bosque de Egídios! Acrescentou o Irmão.”
Francisco entrou no bosque para chamar Pedro e Bernardo que estavam em oração. A alegria era algo contagiante entre os quatros.
Egídio sentiu-se desde o primeiro momento como quem cai no seio de uma família acolhedora.
Os quatros irmãos começaram a viver. Não se preocuparam em fazer um horário, e muito menos um estatuto. A vida ia brotando espontaneamente com o passar dos dias e das semanas.
Dedicavam muitas horas ao Senhor, cada irmão em sua cabaninha ou no bosque. Freqüentemente Francisco passava a noite inteira em oração com o seu Mestre. De dia, alguns trabalhavam com os camponeses. Como recompensa do trabalho recebiam alimentos, mas nunca dinheiro, que para eles era considerado “esterco do diabo”. Outros iam ao leprosário para atender os doentes, outros iam à cidade exortar o povo à paz e ao amor. Os irmãos alternavam-se nessas atividades.
Era Francisco que, cada manhã, dizia o que cada um deveria fazer. Essa distribuição de tarefas era um momento único: não era um mandar, nem suplicar, mas, para motivar o trabalho, o Irmão falava a cada um sobre as atividades de Jesus, e o fazia com tanto amor, despedindo cada um com um abraço e uma benção tão efusiva, que aqueles irmãos seriam capazes de ir até o fim do mundo. Ser mandado eqüivalia a ser amado.
Todos os dias punham o espelho de Jesus diante dos próprios olhos, e confrontavam com ele sua existência diária. Falavam do Senhor entre si como de um amigo comum que ocupasse seus pensamentos: não podiam deixar de falar dele.
Foi assim que Francisco foi dando alma àquele grupinho, que por sinal logo deixou de ser um grupinho. A família aumentava.
Francisco nem chamava nem escolhia ninguém. Simplesmente recebia irmãos da mão do Senhor.
Mas o crescimento da Fraternidade começou a incomodar os cidadãos de Assis. Para eles, Francisco arrancava os cidadãos de suas famílias, e depois obrigava-os a dilapidar os seus bens, desse jeito a cidade ia à ruína. Então resolveram colocar o problema nas mãos de Dom Guido, bispo de Assis.
Dom Guido convocou Francisco e lhe disse: “Meu filho, não preciso falar-te nada. Você já pôde sentir o descontentamento do povo” .
De fato, um dia Francisco subiu à cidade e, em vez de pães, deram-lhe pedras.
O bispo ainda lhe falou: “Não estou de acordo com algumas queixas, mas em outras eles tem razão. Deixa-me dar-te alguns conselho. Acho que é prudência garantir os meios de subsistência. Eu mesmo posso ajudar-te a conseguir umas pequenas propriedades, um olival, e como Deus manda: vivei honrada e pobremente com o suor do próprio rosto”.
O bispo calou-se. Francisco ficou em silêncio. Ele não queria desobedecer nem o Evangelho e nem a Igreja.
Depois de algum tempo em silêncio, olhou para Dom Guido e respondeu:
“Meu senhor e Pai. Se tivermos um olival, vamos precisar construir um lagar. Quando tivermos o lagar, vamos precisar de carros e de bois para ir vender o azeite. Quando vendermos o azeite, teremos um pequeno lucro. Com o lucro, vamos comprar mais terras. Com mais terras, vamos empregar trabalhadores e aumentar nossas propriedades. Com muitas propriedades, vamos acabar precisando de soldados para sua vigilância e defesa. Os soldados vão precisar de armas. As armas nos levarão inevitavelmente a guerras, esse é o resumo da história” , concluiu Francisco.
Dom Guido escutava, enquanto via cair por terra todos os seus argumentos. Foi uma resposta implacável. Francisco nunca foi um pensador, era o homem da paz, e tocou fundo na ferida da sociedade: toda propriedade é potencialmente violenta.
Só a pobreza total leva à paz, à transparência e à fraternidade.
Dom Guido não insistiu mais. Francisco voltou para a Porciúncula. E o descontentamento popular passou depressa.
Mas numa coisa Francisco concordava com Dom Guido: o trabalho tem que ser o meio normal de sustento. Sobre isso escreveu em seu testamento o seguinte:
“Quero firmemente que todos os frades trabalhem num trabalho honesto. Aqueles que não sabem, devem aprender, não por causa do dinheiro, mas pelo exemplo e para afastar o ócio” .
Assim, nos primeiros anos, os irmãos trabalhavam, cada um de acordo com suas habilidades pessoais, mas sempre com uma condição: que o trabalho não extinguisse o espirito de oração e devoção, e que só recebessem como salário o pão diário. Francisco e seus companheiros viviam a pobreza na alegria, o desapego dos bens proporcionava-lhes paz e liberdade, quanto mais separados do mundo estavam, mais se sentiam unidos a Deus.
Francisco preocupava-se muito com a fidelidade a pobreza radical. Conta-se que um dia estava pregando num lugar onde encontrou um homem extremamente pobre. Era tão pobre que Francisco ficou muito impressionado, e disse ao companheiro:
— Muito nos confunde a miséria deste homem, e muito tem a dizer à nossa pobreza.
— Por quê, irmão ?, pergunta o companheiro.
— Sinto muita vergonha quando encontro alguém mais pobre do que eu, porque eu escolhi a santa pobreza para minha senhora… Não sabes que, por toda a parte, se diz que eu professo a pobreza diante de Deus e dos homens ? Este pobre, porém, está provando que isso não é verdade. Devo corar de vergonha quando encontro outro mais pobre do que eu !
Não era por vaidade humana nem orgulho de aparecer que ele sentia vergonha, era unicamente por um afeto de terna compaixão. E também por um certo medo de levar desvantagem, a pobreza, para Francisco, era a garantia de tomar posse, um dia da herança eterna.
Na formação dos irmãos, tratava-os como D. Pica o havia tratado. Nunca vigiava. Sempre cuidava. Ninguém se sentia ofendido por suas correções. Mais do que correções, eram orientações. Mais tarde, na Regra de 1221, escrevia aos irmãos dizendo: “Que cada um cuide de seus irmãos e os ame como uma mãe cuida e ama seus filhos”. E na Segunda regra diz: “Se uma mãe ama e cuida do filho de suas entranhas, com quanto maior razão devem amar-se e cuidar uns dos outros os que nasceram do espirito”.
Cuidar, verbo exclusivamente materno. Cuidar se aparenta com o verbo consagrar ou dedicar na Bíblia. Cuidar significa reservar tempo e pessoa, a outra pessoa, como fazem principalmente, as mães.
Formar é amar, pensava Francisco. O amor faz possível o impossível. Punha sempre, com muito amor, à prova as forças dos irmãos, mandando-os pregar ou trabalhar. Estimulava-os com exemplos evangélicos. Possuía a arte difícil de abrir as portas dos outros abrindo as próprias.
Freqüentemente passava noites inteiras em oração. A lembrança do crucificado queimava-o como fogo. Então começava a chorar e não se importava que os outros o vissem chorar.
Um certo dia em que os irmãos saíram para suas tarefas, Francisco ficou em casa. Nesse dia não comeu nem bebeu nada, nem um gole de água. Passou o dia acocorado no chão pensando e sentindo a Paixão do Senhor. Lá pelas três da tarde não agüentou e começou a chorar. Chorava desconsoladamente.
Começou a andar pelo bosque chorando e gemendo. Topou com um camponês e não se calou, continuou chorando. O camponês perguntou: “Que aconteceu irmão, porque choras?” E Francisco respondeu: “Meu irmão, o meu Senhor está na cruz e me perguntas porque choro? Quisera ser neste momento o maior oceano da terra, para ter tudo isso de lágrimas. Pois mesmo que juntássemos todos os rios e mares, não haverá lágrimas suficientes para chorar a dor e o amor de meu Senhor crucificado. Quisera Ter as asas invencíveis de uma águia para atravessar a cordilheiras e gritar sobre as cidades: ‘O AMOR NÃO É AMADO! O AMOR NÃO É AMADO!’. Como é que os homens podem amar uns aos outros se não amam o amor?”.
O camponês também não agüentou e começou a chorar.
A fraternidade não parava de crescer. Até que chegou o ponto em que Francisco decidiu que era necessário pedir a benção do Santo Padre, o representante de Jesus na terra.
Francisco pensava que seria conveniente redigir um pequeno documento, que sintetizasse o gênero de vida que tinham vivido até então. E assim fizeram. Francisco e Pedro Catani começaram o dia em oração profunda e depois começaram a escrever o documento. Francisco ditava e Pedro escrevia e lhe dava forma jurídica.
Em pouco tempo o documento ficou pronto. Chamou-se Regra Primitiva ou Proto-regula ( embrião das Regras Posteriores ).
Esse documento foi perdido e não foi possível reconstruí-lo. Mas sabemos que constava de vários textos evangélicos que faziam referências às normas dadas por Jesus aos enviados e a outras insistências do Mestre sobre a renúncia e a pobreza. O documento constava de uns quatro ou cinco pequenos capítulos.
A intenção de Francisco era que o próprio Evangelho fosse declarado como única inspiração e legislação da nova forma de vida. Só e todo o Evangelho, entendido ao pé da letra.
A SÍNTESE DO DOCUMENTO ERA MAIS OU MENOS O SEGUINTE:
” Francisco e seus sucessores prometem reverência e obediência ao Papa. Os irmãos devem plasmar sua vida no molde de todo o Evangelho e principalmente nos textos colecionados neste documento. Os candidatos renunciarão a seus bens e os distribuirão entre os pobres. Os irmãos vestir-se-ão com pobreza e não desprezarão os que se vestem ricamente. Os responsável da fraternidade será o último e servidor dos outros. Entre si mesmos observarão uma especial caridade: não critiquem, não se irem, respeitem-se e acolham-se. Acolherão benignamente os salteadores das estradas, tratarão dos doentes com as mesmas atenções de uma mãe para com seu filho. Se for possível, trabalharão no mesmo ofício que tinham antes de entrar na fraternidade. Como recompensa do trabalho podem receber alimento e roupa, mas nunca dinheiro. Em casa de necessidade pedirão esmolas. Quando andarem pelo mundo não levarão nada, e sentirão a alegria de conviver com os leprosos e os mendigos”.
LENDAS E CURIOSIDADES FRANCISCANAS
ESPONSAIS COM A DAMA POBREZA
“Francisco saiu pelas ruas e pelas praças perguntando aos passantes: Vocês não viram pelos montes ou pelos vales a Dama dos meus pensamentos? Não sabemos de quem você está falando, responderam. Então Francisco foi procurar os doutores e magnatas da cidade, perguntando: Vocês sabem onde anda minha Rainha, a Pobreza? Nós só sabemos isto, responderam, que a vida é curta: comamos e bebamos que amanhã vamos morrer.
Francisco pensou: De certo minha Rainha não mora na cidade. Saiu para o campo. Logo encontrou dois velhinhos, sentados numa pedra esquentando-se ao sol enquanto conversavam sobre a fugacidade da vida.
O irmão Francisco chegou e perguntou: Digam-me, por favor, veneráveis anciãos, onde mora, onde pastoreia, onde descansa a minha Rainha Pobreza? Nós a conhecemos, disseram eles. Passou muitas vezes por aqui. Na ida, sempre acompanhada; na volta, sozinha e sem enfeites. Nós a vimos chorar muitas vezes, dizendo: Todos me abandonaram. Nós a consolávamos dizendo: Não se aflita, grande dama, são muitos os que a amam.
Nós sabemos que ela tem sua morada no alto de uma montanha solitária. Mas é inútil perguntar o lugar exato para quem quer que seja, nem as águias o sabem. Mas nós sabemos um segredo para encontrar sua habitação: primeiro é preciso despojar-se de tudo, absolutamente tudo. Só assim, livres de peso, é que se pode chegar àquela altura. Como ela ama os que a amam e se deixa encontrar pelos que a buscam, bem depressa vai apresentar-se aos seus olhos. Então vocês vão sentir-se livres de toda inquietação. Não dá para imaginar riqueza maior.
O Irmão Francisco tomou consigo vários companheiros da primeira hora, e daí a pouco estavam ao pé da temível montanha. Quando viram que era a pino, alguns disseram assustados: É impossível, não somos capazes. Somos capazes, replicou Francisco. O que precisam é livrar-se do peso, jogando fora o lastro da vontade própria e a carga dos pecados. Não devem olhar nunca para trás, mas sempre para o Cristo que caminha descalço à nossa frente. É uma aventura maravilhosa. É a marcha da liberdade. Animados com essas palavras, os irmãos empreenderam a subida.
Enquanto subiam, a Dama Pobreza estendeu seu olhar lá das alturas pelo terrível precipício. Quando viu os intrépidos escalando com tanto brio, exclamou: Quem são esses que sobem como uma nuvem? E escutou uma voz do alto que dizia: São a estirpe real dos eleitos. E lhes fez esta pergunta: Que procuram, irmãos, nesta montanha de luz? Será que vêm por minha causa? Não vêem que eu não passo de uma cabana abandonada, açoitada pela tempestade?
Senhora e Rainha, disse Francisco, viemos por sua causa. Ouvimos falar da sua realeza e da sua formosura; agora estamos vendo com nossos próprios olhos. Ajoelhamo-nos diante de você, Senhora de nossos pensamentos, e lhe dizemos: Vá na nossa frente. Conduza-nos pela mão até lá dentro das muralhas do Reino. Salve-nos do medo. Livre-nos da agonia da alma. Entre a angústia debaixo de sete metros. Espalhe o vento da tristeza como cinza fúnebre. Levante a bandeira da liberdade, comece a marcha e guie-nos até os umbrais da Salvação. Olhe-nos com bondade e marque-nos com o sinal da sua predileção. Venha, fique para sempre conosco.
Uma grande comoção apoderou-se da Senhora Pobreza quando ouviu estas palavras. Abraçou efusivamente cada um deles, e lhes disse: Com vocês, eu fico para sempre. Hoje nós selamos uma aliança eterna.
O Irmão Francisco, radiante de alegria, entoou um hino de gratidão. Desceram todos da montanha e foram diretamente para a cabana em que os irmãos moravam. Era meio-dia.
Está na hora de comer, disseram. Digne-se sentar-se em nossa mesa, ó Grande Dama. Ela respondeu: Antes eu gostaria de dar uma olhada na sala do capítulo, no oratório e nos claustros. Não temos mosteiro, é só esta choça. Sim, disse a Dama, vejo que vocês não têm nada, mas estão radiantes e cheios de consolação. Que paradoxo!
Senhora e Rainha, disseram-lhe. Depois de tão longa caminhada, deve estar cansada. Precisa reconfortar-se. Se não se opuser, vamos sentar à mesa. Claro, respondeu ela. Mas tragam antes água para eu lavar as mãos e uma toalha para enxugá-las.
Em um caco de vasilha – não havia nenhuma inteira – trouxeram a água. Enquanto a derramavam sobre suas mãos, todos andavam de um lado para o outro, procurando uma toalha. Naturalmente, não havia. Um dos irmãos ofereceu-lhe a ponta da túnica para enxugar as mãos. A Dama agradeceu o gesto.
Depois levaram-na para onde estava preparada a mesa, ou que chamavam de mesa. Na realidade não havia mesa nenhuma, mas a grama verde na terra firme. Sentaram-se todos no chão e a Dama observou bem, mas não viu mais do que três ou quatro restos de pão sobre a relva. Exclamou, admirada: Por gerações, nunca se viu um espetáculo como este. Bendito sejais, Senhor!
Amigos, disse a rainha. Eu gostaria de comer alguma coisa cozida. Trouxeram uma tigela cheia de água fresca para que todos pudessem molhar o pão.
Gostaria de comer algumas verduras temperadas, disse a Rainha. Senhora, responderam, não temos horta nem hortelão. Mas os irmãos não ficaram parados. Foram depressa ao bosque, colheram um maço de ervas silvestres e as apresentaram à Dama.
Ela insistiu: Passem-me um pouco de sal para pôr nestas ervas, que parecem amargas. Tenha um pouco de paciência, senhora, que voamos à cidade buscar um pouco de sal.
Enquanto isso, insistiu a Dama, emprestem-me uma faca para cortar este pão, que parece pedra. Perdão, Senhora e Rainha, não temos ferreiro nem objetos cortantes; vai ter que usar os dentes. Mais uma vez, desculpe, Senhora.
Está bem, disse ela. Mas será que não têm um pouco de vinho? Nobre Senhora, para nós o essencial é pão e água. Além disso, o vinho não combina com a esposa de Cristo. Perdoe-nos, Senhora!
Todos ficaram saciados e sentiram-se felizes. A Rainha estava cansada. Deitou-se no chão para descansar. Pediu um travesseiro. Trouxeram uma pedra.
Depois de ter descansado um pouco, perguntou: Amigos, onde estão os claustros e fazendas? Com grande cortesia, Francisco tomou a Rainha pela mão e a levou para o alto do Subásio, indicando com um gesto amplo os cumes dos Apeninos, coroados de neve: Senhora nossa, são esses os nossos claustros e propriedades.”
ASSIM NASCEU A ORDEM SEGUNDA:
“Clara de nome e mais clara por sua vida”
( Frei Tomás de Celano)
A Ordem Primeira havia surgido e estava crescendo cada vez mais. Mas Francisco fundou ainda outras duas ordens. Agora falaremos da Ordem Segunda, das Damas Pobres ou Clarissas.
Dessa Ordem foi figura Central Clara de Assis.
É bom esclarecer que não se pode conhecer Francisco, nem falar sobre ele, sem falar de Clara. Ela parece um grande reflexo do grande Irmão.
Clara nasceu em Assis a 11 de julho de 1194. Seus pais chamavam-se Favorone e Ortolana Schife. Era uma família de altos brasões, muito nobre e influente, mas esses atributos não lhe satisfaziam, queria algo mais que só Deus era capaz de lhe dar .
Desde a conversão de Francisco, Clara o observava e assim foi surgindo o desejo de também viver o ideal da perfeição evangélica. Assim, ela procurou Francisco e manifestou o desejo de seu coração.
Então no Domingo de ramos de 1212, Clara vestiu o seu melhor traje, como se fosse uma noite real e foi com a mãe para a catedral. Em seu coração essa era sua despedida. Ninguém, a não ser sua prima Buona e talvez Dom Guido, sabiam do seu plano de fuga.
Quando a noite chegou, Clara esperou que todos dormissem, e à meia noite saiu do quarto e dirigiu-se à uma pequena passagem secreta do palácio, que tinha descoberto dias antes. Era uma pequena passagem por onde passavam os caixões de defuntos, e estava bem trancada por grossos ferrolhos, mas era o único meio de sair sem ser vista.
Ao sair encontrou com sua prima Buona Guelfuci, que estava esperando em uma esquina. Depois saíram por um buraco aberto nas muralhas da cidade e seguiram até ao bosque.
Francisco e os outros frades, as aguardavam em uma parte do caminho à luz de tochas. Ao encontrarem-se seguiram para a Igreja de Santa Maria dos Anjos, lá chegando Clara dirigiu-se para o altar e diante de todos, Francisco disse: “É uma noite de casamento, irmã Clara, noite clara como o teu nome. Tudo está preparado. Cristo vai ser o Esposo. Nossa Senhora vai ser o celebrante e os anjos serão as testemunhas”.
Realmente tudo estava preparado. Sua prima tinha feito seu hábito de grosseiro pano cor-de-terra. Depois de vestir seu hábito, Clara ajoelhou-se diante do altar, Francisco aproximou-se da desposada e com uma tesoura, começou a cortar ( esse corte se chama ‘tonsura’ ) mecha por mecha de seu cabelos loiros e a colocar em cima do altar, como sinal de consagração à Deus. Depois com muita reverência, colocou-lhe um véu branco na cabeça, que significa a pureza e um preto por cima, para mostrar o inteiro abandono ao mundo.
E com essa cerimônia da primeira profissão, ficou lançada a pedra inicial do edifício da Segunda Ordem.
Depois disso, Clara foi levada para o convento das Irmãs Beneditinas de São Paulo, pois todos previam, que uma grande tempestade por parte dos familiares, estava prestes a acontecer, e assim aconteceu.
Logo que a família descobriu onde estava Clara, trataram de tentar resgatá-la. Quando chegaram ao mosteiro tentaram comovê-la, ameaçaram-na, e quando viram que tudo era em vão, tentaram pega-la à força. Foi então que Clara repetiu as palavras de São Paulo: “Quem, neste mundo, vai ser capaz de me separar dos braços de meu Senhor Jesus Cristo?” (Rm 8,35), e agarrando-se ao altar, retirou o véu e mostrou os cabelos cortados.
Naquela época, aqueles que se agarravam ao altar adquiriam o direito do asilo, e ter os cabelos cortados, era um sinal de consagração a Deus.
Os familiares entenderam e pararam. Se dessem mais um passo, ficariam excomungados e entrariam em questão com a Igreja. Clara tinha ganho mais uma vitória.
Depois de algum tempo, também sua irmã Inês, fugiu de casa e juntou-se à ela. E mais tarde outra irmã, Beatriz e sua mãe, se tornariam clarissas.
São Damião, a primeira ermida restaurada por Francisco, tornou-se também o primeiro mosteiro das clarissas, e por requerimento da Santa Sé, as Damas Pobres se monacalizaram, pois naquela época não se admitia outra forma de vida religiosa feminina. Os tempos não estavam maduros para a existência de irmãs de vida ativa.
E assim realizou-se também o sonho de Francisco: Viver uma vida contemplativa.
Adorar! Esse foi o único sonho de Francisco. O resto era acessório. Dizia sempre aos irmãos: “trabalhem, mas não deixem que o trabalho matem o espirito de oração e devoção.”
Adorar! Essa era a tarefa primordial: proclamar a primazia de Deus.
A adoração suprema é o holocausto. Nos velhos tempos, havia sacrifícios e holocaustos. No sacrifício, a rez era imolada e oferecida a Deus. Mas sua carne era aproveitada pelos levitas e os servidores do templo.
Nos holocaustos, em vez, depois que os bezerros eram imolados, eram imediatamente queimados por completo, incinerados. Assim a saborosa carne não era comida por ninguém. Essa “inutilidade” era a mais alta expressão de adoração, porque demonstrava a supremacia de Deus, isto é, que Deus, só por ser Deus, merece que lhe dediquemos qualquer bem, sem nenhuma outra utilidade.
Esse era o significado de Clara em São Damião. Não fazia catequese, não servia os leprosos, não pregava a Palavra. É uma vida “inútil”, que não serve para nada, justamente por isso, sua vida contemplativa era a mais alta adoração, porque demonstrava que Deus é tão grande que vale a pena dedicar-lhe a vida, sem nenhuma utilidade prática.
Sua vida foi tão “inútil” como o incenso que se queima no altar.
Resumindo: Clara realizou o sonho dourado da alma de Francisco: ADORAR!
LENDAS E CURIOSIDADES FRANCISCANAS
Francisco e Clara caminhavam juntos pelos campos brancos de neve. Chegando a uma encruzilhada, perto de São Damião, o Francisco foi o primeiro a dizer: “É melhor que nos separemos…”
Sempre partia dele a palavra da renúncia, que é força. Clara ajoelhou-se sobre a neve e prontamente com toda humildade, esperou que a abençoasse.
Mas depois, levantando-se novamente, com o coração tremendo como o de um passarinho, naquela branca desolação do inverno, ela deixou que o desejo humano lhe levasse aos lábios uma pergunta de menina:
“Pai, quando nos reveremos?”
Comovido, Francisco respondeu brevemente: “Quando as rosas florescerem”. Mas nem bem Francisco recomeçara a andar, a voz cristalina da Clara chamou-o novamente:
“Meu Pai!”
Ele se voltou. A moita que havia diante de Clara transformara-se em uma roseira cheia de corolas vermelhas. Para onde quer que os dois santos dirigissem o olhar, viam rosas e mais rosas abrindo-se sobre a neve, como uma prodigiosa primavera.
ASSIM NASCE A ORDEM TERCEIRA: ( 1221 )
Certo dia, Francisco chamou Frei Masseu e lhe disse: “Irmão Masseu, faz dias que estou num poço e não posso sair. Que devo fazer? Fechar as asas, abaixar-me aos pés de Deus e viver sempre assim, ou abri-las e voar pelo mundo anunciando a Palavra?”
Irmão Francisco, respondeu Frei Masseu. Sempre ouvi dizer que Deus manifesta sua vontade para as almas que rezam bastante. Porque não pedir o conselho de algumas destas almas?
Frei Masseu, amanhã de manhã irás a São Damião falar com a irmã Clara. Dirás que Francisco quer saber se deve dedicar-se só a contemplação ou também à evangelização. Mas diz-lhe que, antes de dar a resposta, escolha a irmãzinha mais simples, inocente e ignorante do mosteiro e a consulte sobre esse grave problema.
Depois, querido Masseu, subirás até o Subásio, onde nosso irmão Rufino vive escondido em Deus, e lhe farás a mesma pergunta. No dia seguinte, Frei Masseu foi cumprir o desejo de Francisco.
Francisco, por sua vez, passou a manhã em oração, implorando que o Senhor manifestasse a sua vontade.
Frei Masseu voltou ao meio-dia. Francisco se alegrou muito, mas não perguntou o resultado de sua missão. Primeiro deu-lhe um grande abraço. Depois o levou para uma das cabaninhas onde tinha preparado água morna. Lavou-lhe os pés com reverência e carinho. Enxugou-os, beijou-os devagarinho. Depois levou-o para a cabana grande e, sentados à mesa, deu-lhe azeitonas, figos secos, pão e água fresca.
Depois o levou para o bosque. Lá Francisco ajoelhou-se diante dele, estendeu os braços em cruz e perguntou em voz alta: “O que manda o meu Senhor Jesus Cristo?”
Tanto a irmã Clara como Frei Rufino, respondeu Masseu, disseram-lhe que lhes foi revelado que deves ir pelo mundo pregando o Amor de Deus.
O Pobre de Assis foi tomado por uma profunda emoção. Levantou-se , levantou os braços e disse: “Em nome de Deus, em marcha!” E junto com Ângelo e Masseu, seguiram na direção de Espoleto, até que chegaram a um pequeno povoado chamado Cannara.
Encontrou um grupo de pessoas e começou a falar sobre o Amor Eterno, sobre a Paz e a Pobreza. Mas um bando de inumeráveis andorinhas e outros passarinhos, chilreando e fazendo acrobacias, não permitiam que escutassem Francisco com tranqüilidade.
Então Francisco, virando-se para elas com o olhar cheio de paciência , disse-lhes com doçura: “Irmãs andorinhas, parece-me que agora cabe a mim falar: já cantastes e falastes bastante! Escutai, pois, a palavra de Deus e ficai firmes e silenciosas enquanto eu prego”. E logo aquelas aves pararam e fizeram silêncio por todo tempo em que Francisco pregou.
O povo ficou arrebatado e queria abandonar tudo para seguir Francisco, mas o Irmão reteve-os dizendo: “Não tenhais pressa. Tratarei de vos ordenar o que devereis fazer para a salvação de vossas almas”.
Desde esse momento, Francisco pensou na fundação de uma terceira ordem. Pois Deus lhe mostrou que estas pessoas estavam presas no mundo por vocação e vontade divina, como os casados que deviam procriar e educar filhos de Deus, e os sacerdotes seculares, que trabalham pelas almas, no apostolado da Igreja. Por isso podiam fazer desta mesma vida um estado de consagração ao Serviço de Deus.
Então nesse mesmo ano de 1221, Francisco fundou o Ordem Terceira que, constituída de homens e mulheres de todas as classes, teve como lema aquelas insubstituíveis palavras da Ordem Primeira: PAX ET BONUM ( PAZ E BEM ). No principio era chamada de Ordem Terceira dos Irmãos e Irmãs da Penitência, e hoje é chamada de Ordem Franciscana Secular.
Para ser admitido, a primeira condição era fazer as pazes com os próprios inimigos e restituir qualquer coisa injustamente adquirida.
O primeiro casal que entrou na Ordem Terceira foram Luquéscio e Bona Dona, e estes se desfizeram de toda a sua grande fortuna ganha à custa de negociatas e se dedicaram à uma vida inteiramente voltada para a perfeição Evangélica, no estado de vida à que foram chamados.
As três fundações ficaram, portanto, divididas da seguinte forma:
ORDEM PRIMEIRA DOS FRADES MENORES: eram incumbidos do Apostolado da Palavra e do exemplo na Igreja.
ORDEM SEGUNDA DAS DAMAS POBRES OU CLARISSAS: viviam o sacrifício e a imolação no claustro.
ORDEM TERCEIRA DOS IRMÃOS E IRMÃS DA PENITÊNCIA ou ORDEM FRANCISCANA SECULAR: viviam a missão de reavivar nas consciências a honestidade dos costumes e os sentimentos dos primeiros cristãos, vivendo na Paz e no Bem.