ENQUANTO FAÇO O CAFÉ: A vida consagrada é uma luz para o mundo
Podcast: Play in new window | Download
Subscribe: Google Podcasts | RSS
Lucas 2,22-40
A APRESENTAÇÃO DE JESUS: UMA IMAGEM ELOQUENTE DA VIDA CONSAGRADA
“Luz para iluminar as nações e gloria de teu povo Israel”
Há quarenta dias celebramos o Natal. Segundo Lucas, 40 dias depois Jesus foi levado a Jerusalém, ao Templo. Ali duas figuras proféticas, Simeão e Ana, reconhecem a este menino de apenas um mês e dez dias de nascido como o Messias e o autor da Salvação. A cerimônia das velas com a qual hoje abre a liturgia nos põe frente à mensagem fundamental que está recolhida na oração de Simeão: “Meus olhos viram tua salvação… luz para iluminar aos gentis e glória de teu povo Israel” (Lc 2,30.32).
- O ofertório no Templo (2,22-24)
Esta é a primeira vez que Jesus entra no Templo. Assim havia profetizado: “E em seguida virá a seu Templo o Senhor a quem vós buscais” (Ml 3,1b). O Evangelho começa dizendo que na apresentação do Menino Jesus, Maria e José procedem “segundo a Lei de Moisés” (2,22.23.25). Ali vão para:
- Fazer a “consagração ao Senhor” de Jesus (2,23). Sendo Jesus o Filho primogênito (ver 2,7), pertence a Deus. Assim o estabelece Êxodo 13,2.12-15; e,
- Oferecer o sacrifício pela “purificação” da Mãe: “quando se cumpriram os dias da purificação” (2,22a). Assim o determina Levítico 12,1-8.
Uma consagração especial: Por que o filho primogênito é consagrado a Deus? Porque tudo e todos pertencem ao Deus criador, de quem provém à vida. O filho é um dom de Deus. Nos rituais do Antigo Testamento, o “sacrifício” de animais tem como finalidade simbolizar a restituição a Deus do que previamente se tem recebido dele. Com muita precisão a Lei prescreve que os primogênitos dos animais devem ser oferecidos em sacrifício, ao contrário os meninos primogênitos se resgatam com dinheiro (ver Nm 18,15-17). Chama a atenção em nosso texto que não se diz que Jesus tenha sido resgatado, mas “apresentado”, quer dizer, “consagrado” ao Senhor.
Isto se explica pelo fato de que Jesus deve a origem de sua própria existência ao poder criador de Deus. Por isso Jesus pertence a Deus de uma maneira singular. De fato, o Anjo havia dito a Maria: “O que há de nascer será santo e será chamado Filho de Deus” (1,35).
Pelas mãos de sua mãe: Jesus é introduzido solenemente no lugar que lhe é próprio: o Templo, sinal da presença de Deus no meio de seu povo. Jesus está na casa de seu Pai (ver 2,49). Ali Jesus se dá a seu Pai, mas pelas mãos oferentes de sua mãe. É interessante que Lucas junte a oferenda do filho com a purificação de Maria.
A norma pede que se ofereça um sacrifício por sua purificação, concretamente um cordeiro e um par de pombos (Lv 12,8). Mas de Maria se diz que oferece um par de pombas, o qual era uma concessão especial que se fazia aos mais pobres que não tinham como adquirir o cordeiro (Lv 5,7: “Quando os recursos não alcancem”). Portanto, a Mãe oferente é uma mulher pobre que sabe dar. Ao oferecer o sacrifício correspondente, se nos recorda que Maria é verdadeiramente mãe que vive em condições de pobreza e que seu coração está profundamente aderido à vontade de Deus manifestada na Lei.
- Uma galeria de personagens em torno à consagração
A entrada de Jesus no Templo não passa despercebida. Por meio dele ocorre também a entrada do fogo da esperança que provém do Espírito em quem o rodeia. É significativo que, ao mesmo tempo, que o menino Jesus vem ao Templo, também Simeão “movido pelo Espírito, veio ao Templo” (2,27). Tanto Simeão como Ana, ambos laicos, têm uma visão especial de Jesus naquele momento, que enche de alegria suas vidas que já estão quase no ocaso. Ambos lhe dão voz ao acontecimento captando seu grande alcance. A presença do recém-nascido é sinal de esperança para o ancião, que normalmente olha muito para trás e pouco para diante. Que acontece a cada um deles?
Simeão: acolhe entre seus braços o grande dom de Deus (2,25-32)
De Simeão conhecemos sua personalidade espiritual: (1) Justo e piedoso; (2) esperava a consolação de Israel; e (3) estava nele o Espírito Santo (ver 2,25).
O que chama a atenção é que, em contraste com os sacerdotes do Templo, Simeão aparece como um homem sensível à novidade da presença de Deus no pequeno menino, justo no lugar que lhe é próprio.Lucas nos mostra que, porque reúne todas as características enumeradas é que Simeão pode viver a grandeza do momento: ele sabe ver em profundidade e captar o instante preciso da vinda da salvação. O perfil que se nos dá de Simeão não é algo secundário: é uma pessoa orante que escuta a Palavra de Deus e é fiel a ela, perseverante na espera da consolação e sensível às revelações e moções do Espírito Santo.
Ele sabe calar e aguardar, escutar e acolher, viver os silêncios, porém também falar.A entrada do menino no Templo não o toma desprevenido: “Quando os pais introduziram o menino Jesus… lhe tomou nos braços e glorificou a Deus” (2,27-28). Quantos recém-nascidos deviam ter? Simeão apenas o vê exulta de alegria abraçando a luz de seu povo e todo o mundo. Em seguida o ancião faz a série de proclamações que vêm sendo feitas sobre Jesus desde o início do Evangelho:
- O Anjo o apresentou na anunciação como o Filho do Altíssimo e como o que reinaria para sempre sobre a casa de Jacó (ver 1,32-33);
- Os pastores, representantes dos pobres do povo, na noite do natal receberam o anúncio de que Ele era o Salvador, o Messias e Senhor (ver 2,11);
- Agora Simeão vê que a missão de Jesus vai muito mais além da casa de Jacó e o proclama abertamente: (a) O reconhece como o portador da “salvação” para ele (2,30) e para todos os povos (2,31); e (b) O anuncia como “luz” dos pagãos e “glória” de Israel (2,32).
Como Simeão, a consagrada testemunha a abertura ao mistério de Deus, cala e capta com fina sensibilidade espiritual a presença do Senhor, sabe acolher o dom de Deus e celebrar em alta voz. Simeão, que sabe viver a longa noite escura da fé na espera da plenitude da consolação, nos ensina todas estas atitudes chaves para a experiência de Deus na novidade de Cristo. É assim que se adquire as melhores disposições para “ver” em primeira pessoa “a salvação” e levar sua força iluminadora e renovadora aos rincões mais escuros e da ampla geografia humana.
Ana: testemunho da esperança (2,36-38)
Outra pessoa que sabe de esperança. Junto ao varão aparece agora uma mulher: Ana, em hebraico “dotada de graça”, é a filha de Fanuel, que significa “rosto de Deus”. Dela se diz expressamente que era uma “profetisa” (2,36a). Ela, depois de ficar viúva, se consagrou completamente ao Senhor: “Não se apartava do Templo, servindo a Deus noite e dia em jejuns e orações” (2,37).
Ela está ali, quer contemplar o rosto de Deus e é imagem de Israel e de toda a humanidade que espera a vinda do Redentor. Também como Simeão, ela se destaca por sua perseverança, que é a teimosia do amor, está com Deus, porém ainda assim continua buscando, esperando com jejuns e vigílias, com dor e desejo, a realização da promessa.
Igualmente, Ana está ali na hora precisa, “como se apresentasse naquela mesma hora” (2,38a), e percebe a realização da esperança. Pelo que significa para ela mesma, “glorificava a Deus” (2,38b); por que o seu é um povo que aguarda a vinda do Messias, ela “falava do menino a todos os que esperavam a redenção de Jerusalém” (2,38c).
Assim como Ana, o consagrado é uma pessoa que sabe viver contemplativamente o mistério da espera. Ele olha adiante: a plenitude da manifestação da glória que ainda não se revelou. Porque é testemunho do definitivo (“escatológico”), a vida do consagrado é um protesto silencioso contra um mundo no qual há gente que a curto espaço de tempo parece que esgotam a vontade de viver e perde os horizontes.
O consagrado está aí com sua presença, sua oração e ação, para dizer que este mundo não é justo, que não é ainda o que Deus queria e, portanto deve vir um mundo diferente parecido ao que o Criador e Rei sonhou um jardim da vida. Na espera do definitivo este é o compromisso.
- Maria: a oferenda mais alta em comunhão com a Cruz do Filho (2,33-35)
Dos anciãos passemos de novo à jovem mãe. Esta festa do Senhor também é uma festa de Maria. À luz do mistério de seu Filho, Maria, em estreita comunhão com Ele, aparece uma vez mais como a discípula fiel que o segue até as últimas consequências. Este discipulado de Maria não está separado de uma nova expressão de sua maternidade: será plenamente “mãe” oferecendo-o e oferecendo-se com Ele na hora dolorosa.
- As palavras proféticas de Simeão a Maria: como se fossa uma nova anunciação
Após Simeão exaltar a grandeza do que veio ao mundo nas circunstâncias mais baixas e ter em seus braços, como um fraco menino, do anúncio de “glória” passa ao da “cruz”. José e Maria, que estavam “admirados” (2,33), agora escutam: “Este está posto para queda e elevação de muitos…” (2,34).
Se até agora tudo fora felicitações e esplêndidas afirmações, neste momento a profecia de Simeão estende um manto obscuro sobre o destino de Jesus. Sua vinda ao mundo gerará efeitos contraditórios entre as pessoas: condenação a uns e salvação a outros. Jesus não é propriamente um Messias exaltado por todos, mas alguém que encontra em seu caminho fortes resistências e rejeições. A hostilidade o levará à morte.
Maria, que esteve estreitamente unida às origens, concepção, parto e proteção do pequeno ameaçado, também estará ligada ao destino de Jesus, como diz a misteriosa palavra de Simeão: “E a ti uma espada te atravessará a alma!” (2,35a). Palavras fortes escuta Maria, da parte de Deus quando lhe anuncia abertamente o mistério da Cruz. Duas palavras com amplo alcance simbólico merecem destaque. Simeão diz que ela também estará ali, na hora cruel da morte de Jesus, com sua “alma”, ou seja, com sua vida total (a iconografia cristã a tem representado com um coração).
A vida de Jesus é também sua vida. Ali, no fundo, ela será ferida. A “espada”, instrumento para ferir e matar, é por natureza hostil à vida. A hostilidade que experimentará Jesus também traspassará a Maria e lhe doerá até o mais profundo. A ferida de Jesus é também sua ferida. Um arco se estabelece entre as primeiras palavras do Anjo Gabriel e as últimas de Simeão: a Mãe não só experimenta uma grande alegria, “Alegra-te” (1,28), mas também uma grande dor “Uma espada te atravessará a alma” (1,35ª).
Maria então é perfeita discípula e mãe que acompanha a Jesus não só nos gozos do Reino, mas nas dores de seu parto. A comunhão entre Jesus e Maria é total. Como exclamava santa Catarina de Sena: “Ó dulcíssimo Amor, aquela espada que recebeste no coração e na alma foi à mesma espada que atravessou o coração e a alma de tua Mãe!”.
(b) Uma oferenda “Eucarística”: Maria modelo de todo consagrado
- Uma relação “cordial” com Jesus
A imagem forte da “alma traspassada” pela dor do Filho nos diz qual deve ser a autêntica relação com Jesus. Um discípulo não tem uma relação fria e distante com Jesus, mas ao invés, visto que vive tocado profundamente por Ele, é uma relação intensa animada pela escuta, pela oração, pela opção de vida segundo seus valores, pela missão.
Assim, discípulo é o que abre sua vida inteira a todos os aspectos do destino de Jesus, nada de Jesus, nenhum estado, nem mistério do Mestre, lhe é indiferente.
Neste sentido Maria é claramente modelo de todo “consagrado” que é chamado não só para ser um servidor eficiente. Mas, antes de tudo, um amigo fiel de Jesus, quer dizer, uma pessoa que se joga, toda, pelo Mestre, participando de suas obscuridades, sofrimentos, humilhações e rejeições no meio de todas as contradições internas e externas que lhe acarreta a opção radical por Ele.
Em outras palavras, aqueles que redescobrem o mistério de sua identidade pessoal no “dom” – o ser “vida oferecida” a Deus para dar vida aos irmãos – estão chamados a ser perfeitos enamorados de Jesus, gozando o ser como Ele, assumindo na dor o custo do amor.
- Em “comunhão eucarística” com Jesus
Mas é, sobretudo, de cara à Cruz eucarística do Mestre, que esta maravilhosa página da “Apresentação” de Jesus nos dá sua melhor lição. Maria entra na “lei da Cruz”, que não é outra que a dinâmica do dar para receber, a do perder para encontrar, a do morrer para viver, a da pobreza total para possuir tudo.
O que acontece na Cruz está significado e atualizado em cada Eucaristia. A imagem da “alma” atravessada pela “espada” de dor da Cruz, da entrega absoluta nos dá também uma lição Eucarística. Maria vive, assim, a mais perfeita simbiose com Jesus: aquela que fez bater o coração do filho quando lhe deu vida em seu ventre, agora, com impulsos de amor e de dor, deixa que seu coração palpite ao ritmo do coração de seu Filho Crucificado.
Maria, não só oferece agradecida, eucaristicamente, o seu Filho no Templo, ela também se oferece como dom total para Deus. Maria, não só consagra a seu Filho àquele que está na origem de sua vida e de sua missão, ela também se consagra junto com Ele em uma comunhão perfeita de vida e de missão. E esta é a dinâmica interna da Eucaristia: os dons que levamos ao altar não são coisas externas, mas sinal de uma vida inteira que se está dando porque o coração está “atravessado” pelo amor total, puro e intenso da Cruz de Jesus.
Nenhuma oblação tem sentido pleno nem alcance salvífico fora da de Jesus na Eucaristia, porque ninguém pode “entregar” sua vida a Deus se não é dentro da entrega mais perfeita de Jesus na Cruz. Que belo celebrar a festa da Apresentação do Senhor! A vida consagrada, provocação profética para que o mundo inteiro se faça discípulo de Jesus, encontra sua identidade mais profunda na Eucaristia.
Para cultivar a semente da Palavra no profundo do coração:
- Que relação vemos entre esta festa da Apresentação de Jesus e a vida consagrada? Em nosso redor existe alguma forma de vida consagrada? Que relação temos com ela? Como poderíamos nos relacionar melhor?
- “Só uma pessoa orante que escuta a Palavra de Deus e é fiel a ela, pode captar a presença de Deus na vida”. A mim é fácil reconhecer Deus nos acontecimentos? Como grupo, família ou comunidade, como vamos progredindo na escuta e fidelidade à Palavra?
- Que relação tem em minha vida a cruz e a Eucaristia? Que efeitos concretos tem a participação na Eucaristia em relação com minha vida de cada dia?