12º Domingo do Tempo Comum (Estudo Bíblico)
Lucas 9,18-24
“Porque o que quer salvar sua vida a perderá e o que perder sua vida por mim a salvará”
Introdução
É famoso o episódio no qual Jesus dirige a seus discípulos uma pergunta a dois níveis: “Quem diz o povo que eu sou?; e “Que dizeis vós que eu sou?”.
Todo o Evangelho não é senão a revelação da identidade de Jesus. O Evangelho terá atingindo seu objetivo se os homens souberem responder a pergunta: “quem é Jesus?”, mais precisamente, se cada um de nós sabe responder bem essa pergunta.
No Evangelho de hoje Jesus submete seus contemporâneos a um exame para ver até que ponto têm adquirido o conhecimento desse mistério: “Quem diz o povo que eu sou”? Jesus se havia feito notar, entre os seus, por seus ensinamentos e por seus milagres, de modo que todos tinham um parecer quanto a sua identidade: “Uns dizem que és João Batista; outros, que és Elias; outros, que és um profeta antigo que ressuscitou”.
Mas, é evidente que o leitor do Evangelho sabe que essas respostas são superficiais e erradas. Quando os apóstolos pensavam haver já satisfeito essa sondagem de opinião, Jesus acrescenta esta outra pergunta. “E vós, quem dizeis que eu sou?”.
A resposta a esta pergunta é mais difícil, porque é mais comprometedora. Os Apóstolos tiveram mais intimidade com Jesus e uma resposta como as anteriores não seria suficiente. Enquanto vacilavam, antes que ninguém tivesse tempo para expressar a sua opinião, Pedro se adianta e responde: “Tu és o Cristo de Deus”.
Para compreender o que quer dizer Pedro com esta afirmação, é necessário ter familiaridade com a mentalidade judaica da época, formada no Antigo Testamento. Neste caso “Cristo” não é um nome próprio, como nós costumamos usar, mas vem de um verbo grego “ungir” (“chrio”). A resposta de Pedro, portanto, se traduz assim: “Tu és o Ungido de Deus”.
Para quem não conhece o antigo Testamento e a expectativa religiosa do povo de Israel, esta afirmação é incompreensível. Teríamos que conhecer o episódio em que o profeta Samuel, por mandato de Deus, elegeu Davi e o constituiu rei de Israel, por meio da unção. Por este ato profético, Davi havia recebido o Espírito de Yahveh e isso explicava porque era ele o chefe carismático que a historia recordada. Mas Deus havia prometido a Davi que “alguém saído de suas entranhas” iria herdar seu trono e “Seu Reino não teria fim”. Esse “filho de Davi” era o novo “Ungido de Deus” que se esperava.
Para entender a afirmação de Pedro vejamos se alguém, antes dele, no mesmo Evangelho de Lucas, havia afirmado isso de Jesus. Maria conhecia a identidade de seu filho, pois o Anjo a havia anunciado: “o Senhor Deus o dará o trono de Davi, seu pai e Ele irá reinar sobre a casa de Jacó (=povo de Israel), pelos séculos e seu Reino não terá fim” (Lc 1,32-33).
Isto para um judeu era claro. A expressão “Cristo” não é usada aqui, mas a Virgem sabia que daria a luz ao Ungido de Deus, ao Cristo. Depois do nascimento de Jesus, o anjo que anuncia seu nascimento aos pastores, disse-lhes: “Hoje vos nasceu, na cidade de Davi, um Salvador, que é o Cristo de Deus” (Lc 2,11).
É a primeira vez que a expressão “Cristo” aparece, e diz respeito ao lugar de origem de Davi: Belém. Em seguida, falando do velho Simeão, o Evangelho diz: “foi-me revelado pelo Espirito que eu não veria a morte antes de ver o Cristo do Senhor” (Lc 2,26).
Por revelação do Espírito Santo, Simeão reconheceu no menino Jesus o filho Jesus, quando era apresentado no Templo, “a salvação… a luz dos gentios e a glória de Israel”. A próxima vez em que é usado o termo “Cristo” é para indicar-nos a expectativa das pessoas: “Como as pessoas estavam esperando, andavam todos perguntando em seus corações sobre João, se não seria ele o Cristo” (Lc 3,15).
Obviamente que João nega firmemente. Finalmente, são os demônios que conhecem a identidade de Jesus. Quando Jesus os expulsava de algum possuído, eles saiam gritando: “Tu és o filho de Deus“. Mas Jesus “não os permitia falar porque sabiam que Ele era o Cristo” (Lc 4,41).
Os anjos, os demônios e alguns homens que receberam uma revelação direta, sabem que Jesus é o Cristo. O primeiro homem que confessa abertamente a Jesus como o Ungido de Deus, é Pedro. Mas não havia alcançado, ainda, completo entendimento do seu mistério. É por isso que Jesus “os recomendou que não dissessem isso a ninguém”.
Pedro passou bem no exame porque Jesus não nega a definição dada por ele; mas, para conhecer sua identidade completa era necessário entender que não se tratava de uma simples linhagem do rei Davi, mas de alguém muito superior “ terceiro dia”.
E isso era ainda muito elevado para o entendimento. Era necessário entender que “o Filho do Homem deve ser muito… ser morto e ressuscitar dos Apóstolos. Eles compreenderiam mais tarde e então saberão quem é o “Cristo” e serão suas testemunhas.
+ Felipe Bacarreza Rodríguez Obispo Auxiliar de Concepción
- O texto
Olhando bem, o relato tem cinco partes:
- O contexto adequado onde se faz a pergunta pela identidade de Jesus: a oração (9,18a);
- O interrogatório de Jesus aos discípulos (9,18b-20);
- Uma instrução, severa e difícil, por parte de Jesus acerca de sua identidade (9,21);
- O primeiro anuncio da paixão (9,22);
- Um caminho para ressuscitar nossas cruzes (9,23-24).
- AprofundandoO contexto adequado onde se faz a pergunta pela identidade de Jesus:
A oração (9,18a)
Descobrir a identidade de Jesus não é, de nenhum modo, algo secundário, é fundamental para o processo que vem conduzindo o evangelho e que culminará no relato dos peregrinos de Emaús, quando os discípulos captaram, a fundo, o sentido das palavras, as obras e a morte do Senhor (ver 24,26-27).
O capítulo 9 de Lucas gira, praticamente, em torno da questão da identidade de Jesus.
De fato, os relatos da reação de Herodes frente à identidade de Jesus e da multiplicação dos pães nos abrem as portas para um momento grandioso no evangelho: a confissão de fé de Pedro e o primeiro anuncio da paixão por parte de Jesus.
- O interrogatório de Jesus aos discípulos (9,18b-20);
Lucas não diz onde se realizou, mas se preocupa em dizer que o ambiente em que se deu foi o da oração.
Já vimos antes, que Lucas nos mostra Jesus em oração precisamente nos momentos mais importantes de seu ministério e que isto significa que os acontecimentos estão inseridos dentro do querer do Pai, que é o que, em última instancia, conduz a historia.
Tenhamos presente este fato na hora de ler o interrogatório de Jesus. Ele retoma o caminho percorrido para ver o que entenderam acerca dele
Jesus o faz, não em meio do barulho de pessoas, mas longe, retirado, no silencio. Um espaço assim nos convida a pensar e a fazer síntese do que estamos vivendo.
O interrogatório tem duas perguntas:
(a) que diz o povo (9,18b-19); e
(b) que dizem os discípulos acerca da identidade de Jesus (9,20).
Os discípulos têm estado junto ao povo na maior parte dos acontecimentos narrados no evangelho: as curas, os exorcismos, os ensinos. Portanto, podem eles fazer uma idéia do Mestre, da forma como pensam as pessoas.
A opinião popular, segundo a qual Jesus poderia ser João Batista ou um dos profetas ressuscitados, já se havia apresentado (ver relato de ontem). O próprio Herodes havia descartado a primeira possibilidade. Só ficava a segunda, a do “profeta” escatológico; porém, havia que especificá-la.
A pergunta dirigida aos discípulos, os que estiveram com o Mestre desde o principio do ministério e que não fantaram a nenhum ato importante da revelação de Jesus, convida a dar o passo que o povo não deu: reconhecer a absoluta singularidade de sua pessoa.
Pedro diz que Jesus é “o Cristo de Deus” (9,20). Capta a novidade de Jesus, uma novidade que está em sintonia com a longa espera do povo de Israel: o Cristo (o Messias). Esta confissão está em sintonia com o anúncio celestial que se escutou na noite do santo natal: “Nasceu-vos hoje, na cidade de Davi, um salvador, que é o Cristo Senhor” (1,11). O “Cristo” chegou e não há que esperar mais, nele está tudo. Deus está agindo no meio de nós.
- Uma instrução, severa e difícil, da parte de Jesus sobre sua identidade (9,21);
Porém, a Pedro ainda falta compreender outra novidade:
que o destino de glória do Messias passa pela via do sofrimento, que é por meio da obscuridade da Cruz que se vislumbrará a extraordinária grandeza, a glória e o poderio de seu Mestre (ver 9,21-22).
- O primeiro anuncio da paixão (9,22);
O caminho do discípulo no Evangelho se desenvolve ao ritmo da Cruz. Por isso o evangelho, nos apresenta três anúncios da Paixão:
- O 1º anúncio Aparece imediatamente após a profissão de fé de Pedro (Lc 9,22);
- O 2º anúncio Após a transfiguração, quando crescia a admiração e o entusiasmo dos discípulos pelas obras que realizava, mas, talvez, falsas expectativas sobre ele (9,44-45);
- O 3º anuncio Depois que Jesus promete a recompensa pelo desprendimento que lhes exige o seguimento (18,31-34). Neste Jesus explicita melhor detalhes de sua paixão.
Jesus, formando os discípulos em seu seguimento, os introduz primeiro no mistério de sua morte e revela sua verdadeira identidade. Esta é a chave do caminho. Jesus se reconhece como o “Filho do homem” que deve percorrer o caminho do Servo de Yahweh; seu messianismo passa pela via da cruz. Isto quer dizer que sua divindade se afirma, não salvando a si mesmo, mas entregando sua vida até a morte. Este é o núcleo de nossa fé e que os discípulos conseguirão entender e aceitar somente depois da ressurreição.
Este Filho do homem “deve sofrer muito”.
Notemos que disse “deve”, quer dizer, que é necessário que sofra, que seja reprovado e condenado a morte para ressuscitar. Este “deve” não significa imposição cruel, mas “lógica salvífica divina”. Com isto nos diz que, para Jesus, seu sofrimento e sua morte eram cumprimento da vontade do Pai. Jesus morre na cruz, por nós, porque nos ama e ama ao Pai que quer nos salvar. Jesus, por amor, perde a si mesmo para salvar-nos.
O caminho de discipulado exige, a partir do contato com as nossas próprias cruzes, compreender o mistério da Cruz. Muitas vezes frente à Cruz se sente resistência ou repugnância. Porém, este é o caminho da Glória. Recordemos a reclamação de Jesus aos discípulos de Emaus: “Que lentos e tardos de coração para entender… que era necessário que o Cristo padecesse para entrar na glória” (24,26). Porém, este caminho é pascal, isto é, de morte para vida, de sofrimento para glória.
- Um caminho para ressuscitar nossas cruzes (9,23-24)
Jesus se dirige não só a seus discípulos, mas a todos, até os confins da terra. Dirige-se a nós, hoje. Depois de nos ter revelado sua identidade de Messias crucificado, revela, agora, nossa identidade de discípulos. É desde a identidade de discípulos (quando é bem assumida) que aprendemos a fazer pascal a cruz cotidiana. Vejamos:
- “Negue-se a si mesmo” (9,23c)
Negar-se a si mesmo não é mortificar nossas energias vitais ou negar os dons que temos recebido, mas deixar de considerar a nós mesmos como o centro e o valor supremo. Negar-se a si mesmo é deixar tudo aquilo que fazemos e buscamos, para afirmar a nós mesmos.
Portanto, é deixar de pensar em si mesmo e morrer a tudo o que não deixa crescer a verdadeira vida, em mim e em torno de nós. Negar-se a si mesmo é sair, continuamente, de si, para doar a vida e viver em função dos demais. Na lógica de Jesus, o único que salva é: sair de si para amar e servir aos demais.
Realizamos nossa vida doando-a, gastando-nos e desgastando-nos pelos outros. É neste continuo descentrar-nos que Jesus atualiza em nós sua vitória sobre o mal. E nós vamos sendo configurados, progressivamente, a Ele. E nosso batismo recobra todo seu vigor.
(b) “Tome sua cruz cada dia” (9,23d)
Para o discípulo “tomar a cruz” é uma necessidade vital“porque para entrar no Reino é preciso passar por muitas tribulações” (At 14,22). Carregar a cruz é aceitar os próprios males; porque Jesus os assumiu primeiro e lhes deu um sentido novo, um valor redentor. Para chegar à plenitude da ressurreição, que também nos espera, é necessário que carreguemos a cruz de cada dia com Ele; desta maneira podemos, em seus sofrimentos, dar vida ao mundo.
- “E sigam-me” (9,23e)
Jesus nos convida a segui-lo carregados com a cruz. Não como quem vai atrás dele, mas sentindo sua presença, por que ele ficou, está em nós, para continuar em nossa vida sua entrega de amor; nosso seguimento se torna configuração d’Ele “Porque o que quer salvar sua vida a perderá e o que perdê-la…” (9,24).
“Perder” para Jesus é doar-se, ou seja, não reservar nada para si. Se, como Ele e por Ele, expomos nossa vida pelos outros, a salvamos. Este é o norte de nosso projeto de vida cristão: realizarmo-nos dando-nos. A plenitude e a felicidade estão ai.
Aprendamos a carregar, na paz e na esperança, nossas cruzes cotidianas, sem perder de vista nosso Senhor e Mestre, dando sentido aos nossos sofrimentos a partir da comunhão com sua Cruz. Não caminhamos em um deserto árido, onde o peso é absurdo, mas em uma rota pascal na qual, dando-lhe a dor, nos fazemos capazes de ressuscitar gerando vida.
Cultivemos a semente da Palavra no coração.
- Que faço para compreender mais a fundo a riqueza do mistério de Jesus? Em que me baseio? Que opinião de Jesus tem minha família e em meu círculo de amigos? Em que se diferencia minha opinião da deles?
- Para mim que significa Jesus é um “Cristo”? Que implica esta confissão de fé?
- Que quer dizer: “tomar a cruz e seguir a Jesus? Quando sei que tenho tomado a cruz, porém não tenho seguido a Jesus?
- Recordo algum momento onde a cruz há pesado muito. Pergunto-me: Não será que era uma cruz sem Jesus?
- Em minha família, comunidade ou grupo ao qual pertenço, de que forma ajudo a que os demais sejam pessoas capazes de dar a vida por outros sem economizar-se?
ANEXO:
Papa Bento XVI, Exortação Apostólica Sacramentum caritatis, 77
“Quem sou eu para vós?” É preciso reconhecer que um dos efeitos mais graves da secularização há pouco mencionada é ter relegado a fé cristã à margem da existência, como se fosse inútil para a realização concreta
da vida dos homens; a falência desta maneira de viver «como se Deus não existisse» está agora patente a todos. Hoje torna-se necessário redescobrir que Jesus não é uma simples convicção privada ou uma doutrina abstrata, mas uma pessoa real cuja inserção na história é capaz de renovar a vida de todos. Por isso, a Eucaristia, enquanto fonte e ápice da vida e missão da Igreja, deve traduzir-se em espiritualidade, em vida «segundo o Espírito» (Rm 8,4s; cf. Gl 5, 16.25). É significativo que São Paulo, na passagem da Carta aos Romanos onde convida a viver o novo culto espiritual, apele ao mesmo tempo para a necessidade de mudar a própria forma
de viver e pensar: «Não vos conformeis com este mundo, mas transformai-vos pela renovação da vossa mente, para saberdes discernir, segundo a vontade de Deus, o que é bom, o que Lhe é agradável, o que é perfeito»
(12,2). Deste modo, o Apóstolo das Gentes põe em evidência a ligação entre o verdadeiro culto espiritual e anecessidade duma nova maneira de compreender a existência e orientar a vida. Constitui parte integrante da forma eucarística da vida cristã a renovação da mentalidade, pois «assim já não seremos crianças inconstantes, levadas ao sabor de todo o vento de doutrina» (Ef 4, 14).