19º DOMINGO DO TEMPO COMUM ANO B (Estudo Bíblico)
João 6,41-51
Començemos com esta oração da Igreja católica:
Vamos todos louvar juntos o mistério do amor,
pois o preço deste mundo foi o sangue redentor,
recebido de Maria, que nos deu o Salvador.
Veio ao mundo por Maria, foi por nós que ele nasceu.
Ensinou sua doutrina, com os homens conviveu.
No final de sua vida, um presente ele nos deu.
Observando a Lei mosaica, se reuniu com os irmãos.
Era noite. Despedida. Numa ceia: refeição.
Deu-se aos doze em alimento, pelas suas próprias mãos.
A Palavra do Deus vivo transformou o vinho e o pão
no seu sangue e no seu corpo para a nossa salvação.
O milagre nós não vemos, basta a fé no coração.
Tão sublime sacramento adoremos neste altar,
pois o Antigo Testamento deu ao Novo seu lugar.
Venha a fé por suplemento os sentidos completar.
Ao Eterno Pai cantemos e a Jesus, o Salvador.
Ao Espírito exaltemos, na Trindade, eterno amor.
Ao Deus Uno e Trino demos a alegria do louvor.
(De la Liturgia de la Horas)
Introdução
Neste domingo o Evangelho de São João nos coloca frente a frente com Jesus em sua realidade humana, enquanto “Verbo feito Carne”, e em sua realidade divina, enquanto “descido do céu”.
Em meio a estes dois pólos, o da divindade e o da humanidade, se coloca uma vez mais o termo “Pão”, que adquire, agora, um sentido mais profundo.
A Palavra (=Verbo) se faz carne e a carne se oferece como o pão, e é assim como Deus atua desde o céu para vivificar o mundo.
Na Eucaristia se encontra o duplo movimento:
- O da oblação sacrificial de Jesus que vai caminho para o Pai e nessa entrega põe o homem na direção da comunhão da vida (eterna) com Deus; e,
- O dom do Pai que, por seu filho, oferece o que lhe é mais querido para salvar o mundo.
Mas, frente a esta “revelação” conta muito a atitude por parte do homem. Na passagem que lemos este domingo notamos um giro importante: a multidão busca sedenta de conhecimento de Deus (Jesus pedagogicamente a levou a esta consciência), se comporta, agora, como os judeus incrédulos de outro tempo no deserto quando colocavam em dúvida a capacidade de Deus para salvá-los.
Jesus acabava de se apresentar como o “Pão da Vida” (6,35) e também havia dito claramente que sua tarefa de “dar vida”, vinha do Pai (=“desci do céu não para fazer minha vontade, mas a vontade do que me enviou”, 6,38), logo era o “Pão descido do Céu” (anunciado em 6,33 e explanado em 6,41.51ª).
O evangelista faz notar que os ouvintes da catequese não compreendem que o termo “pão” é sinônimo de “Palavra” identificada com Jesus, da qual a “escuta” se converte em convite à ceia, em assimilação, em nutrição, em vida e ressurreição.
Portanto, em Jo 6,41-51, a belíssima expressão “Pão de Vida”, significa ante tudo “Palavra que há que acolher (=crer) e encarnar (=comer)”, seu verdadeiro sentido é “Pão da vida = Palavra feita carne”.
Os termos da passagem que nos oferece a liturgia deste domingo nos mostra que a Eucaristia -“Pão vivo descido do céu”- acolhida no hoje de nossa fé, nos coloca de maneira permanente frente à grande riqueza da pessoa de Jesus e da totalidade de sua obra no mundo. Sendo assim, a Eucaristia é uma síntese do Evangelho.
Que neste domingo, deixando-nos atrair desde o fundo do coração por Deus Pai, todos nossos desejos se vejam transbordar pela presença do Verbo de Deus entre nós, mistério de amor pelo qual o “Deus conosco” vem ao nosso encontro na Eucaristia, nos redime de tudo o que faz absurdo (no futuro) nosso existir, e nos impulsiona pelo caminho da “vida”.
Jesus vivente (pão vivo) em nossa carne mortal é o rosto do homem que sabe viver.
1. O texto e seu contexto: Leiamos muito devagar o texto de João 6,41-51
2. Que lugar ocupa esta parte da catequese dentro do desenvolvimento de Jo 6?
Quando alguém tenta determinar o fio condutor do discurso de Jesus neste capítulo se encontra com sérias dificuldades, já que há muitas repetições e temas que se sobrepõem.
Porém tão pouco é um caos (veja-se a proposta de ordenamento do discurso no anexo que oferecemos na lectio da multiplicação dos pães). O certo é que se necessita uma leitura amorosa e paciente para que venha a tona seu sentido mais profundo.
A catequese sobre o “Pão da Vida” nos coloca ante uma cascata de sentimentos, imagens, e afirmações cristológicas que há que: (1) saborear uma por uma, para logo; e (2) fazer a síntese no coração.
João 6 está construído de tal maneira que nos envolve na conversa que o atravessa do começo ao fim, provocando também em nós um colóquio sério e profundo com Jesus. Esta é uma passagem na qual à meditação e à oração é quase imediata.
Na lectio deste capítulo não só conta a captação mental dos temas, mas também o movimento do coração. Nisto tem um papel importante às perguntas, habilmente dispostas ao longo dele.
As partes do capítulo estão unidas por sete perguntas e duas afirmações que articulam uma confissão de fé:
Primeira pergunta:
“Rabi, quando chegastes aqui?” (6,25):
Uma pergunta, quase banal e circunstancial: o povo estranha encontrar Jesus em Cafarnaum, enquanto acreditavam que estava do outro lado do lago (não sabem que Ele havia caminhado sobre as águas).
Vemos que esta pergunta é que conecta à multiplicação dos pães com o começo da catequese na sinagoga de Cafarnaum.
Segunda pergunta:
“Que fazer para realizar as obras de Deus?” (6,28):
Notemos como vai subindo o tom da conversa e se inicia uma busca. Indaga-se pelo como viver em sintonia com a vontade de Deus.
Terceira pergunta:
“Que sinal fazes para que creiamos em ti? Que obra realizas?” (6,30).
De repente, da conversa pacífica passa-se conversa polêmica: um desafio é posto ao Mestre que o leva a fazer sua proposta claramente.
Chegando a este ponto, se faz uma pausa para expressar a abertura da fé: “Senhor, dá-nos sempre desse pão” (6,34). Uma petição que se parece à da samaritana quando pediu água viva (ver 4,15). O auditório já foi posto na rota correta para compreender a Jesus, porém a revelação mais importante não foi dada.
Quarta pergunta:
“Não é este Jesus, o filho de José, cujo pai e mãe conhecemos? Como pode dizer agora ‘desci do céu’!” (6,42).
Diante da revelação sobre a origem de sua vida e de sua obra, começa, então, uma série de perguntas contestadoras e qualificadas pelo evangelista como “murmurações” (termo técnico da Bíblia para expressar as resistências para crer).
Quinta pergunta
“Como pode dar-nos a comer sua carne?” (6,52):
Jesus é mal interpretado, o que dá pé à sua máxima revelação. Chega assim ao coração do mistério.
Sexta pergunta:
“É dura esta linguagem: Quem pode escutar?” (6,60):
O discurso chega ao fim. Agora, no relato, os discípulos enfrentam seu rosto.
Eles expressam sua resistência para seguir sendo discípulos e viver a fundo a proposta do Mestre. Vem à tona a dificuldade do seguimento.
Sétima pergunta:
“Senhor, aonde iremos?” (6,68ª):
O verdadeiro discípulo é o que “crer” e o que segue Jesus pelo caminho revelado por Ele. Ao final, um grupo de discípulos presidido por Pedro dá o salto da fé.
Faz-se eco ao ponto de partida deste capítulo, a pergunta que saiu de Jesus: de onde sai o pão que alimenta à humanidade (ver 6,5).
E, assim, chegamos ao ponto final, que é a confissão de fé própria daquele que se faz discípulo: “Tu tens palavra de vida eterna, e nós cremos e sabemos que tu és o Santo de Deus” (6,68b-69).
3. Qual é o giro que se dá na quarta pergunta? (a que nos confronta hoje)
Como já vimos, o diálogo com Jesus vai se desenrolando de uma forma “crescente”, que vai desde o procedimento ingênuo até o procedimento mais polêmico e provocador, ao ritmo das perguntas.
A passagem evangélica de João 6,41-51 corresponde ao expor e à resposta da quarta pergunta. Com efeito, partir do v.41 começa a polêmica que o evangelista recolhe em três murmurações, a última das quais é explicitamente dos discípulos (v. 60).
Observemos algumas mudanças:
- As três primeiras perguntas são atribuídas à “multidão”. Contudo, percebe-se que, de repente, o evangelista escreve “os judeus”. No caso, não há uma troca de auditório, é que a multidão está se comportando como os judeus incrédulos. Esta é uma cena já conhecida na Bíblia: as murmurações do deserto.
- Estas três primeiras perguntas são perguntas abertas e diretas à multidão que quer ir mais fundo no diálogo com Jesus.
Então, da quarta à sexta pergunta notamos uma mudança na forma e no conteúdo:
(a) trata-se de cochichos;
(b) expõem-se resistências para crer.
O auditório ávido de saber, agora está a rejeitar. Porém, é neste momento de crise, que Jesus vai dar novas indicações para que se possa compreender a natureza de sua pessoa e de sua missão, o que o faz distinto e capaz de cumprir a promessa de vida e de salvação que tem feito.
Com fortes argumentos bíblicos, Jesus não deixa seus ouvintes mais que duas alternativas: aceitar ou rejeitar.
4. A idéia central
O evangelista faz notar que os ouvintes da catequese não compreendem que o termo “pão” é sinônimo de “Palavra” identificada com Jesus, da qual a “escuta” se converte em convite à ceia, em assimilação, em nutrição, em vida e ressurreição.
Portanto, no texto de hoje – João 6,41-51 – a belíssima expressão “Pão da Vida”, significa, antes de tudo, “Palavra que é preciso acolher (=crer) e encarnar (=comer)”, seu verdadeiro sentido é “Pão da vida = Palavra feita carne”.
Os termos desta passagem nos mostram que a Eucaristia – “Pão vivo descido do céu” – acolhida no hoje de nossa fé, nos coloca de maneira permanente frente à grande riqueza da pessoa de Jesus e da totalidade de sua obra no mundo. E sendo assim, a Eucaristia é uma síntese do Evangelho.
O texto de João 6,41-51 está composto por:
- Uma objeção a Jesus, na qual se nota uma rejeição ao mistério da encarnação (ver vv.41-42);
- Uma revelação acerca de Jesus, que contém duas partes:
- Jesus é o dom do Pão-Palavra que desce do céu (6,43-47)
- Jesus é o dom do Pão-Carne que se nos dá em alimento (6,48-51)
Por trás da objeção que expõem a Jesus está o tema da murmuração do povo de Israel no caminho do deserto durante o Êxodo (Ex 15,24; 16,2.7.12; 17,3; Nm 11,1). Tampouco agora reconhecem Jesus como o enviado do Pai. Escandalizam-se por sua origem humilde.
Jesus responde assim: a fé é, afinal, um dom de Deus, em forma de ensinamento. Quem acolhe este ensinamento, se abre a Deus. Jesus cita Is 54,13 (ver também Jr 31,31-34). As murmurações são, no resultado da resistência (como ocorreu no Êxodo), para deixar-se conduzir por Deus.
O verbo “comer” ajuda a estruturar esta parte do discurso. Passamos do acento existencial ao acento sacramental-eucarístico.
Aqui, a diferença entre Moisés e Jesus é radical: Jesus, Ele mesmo, dá a vida; o maná era simplesmente um alimento material. É o verdadeiro maná que alimenta para a vida eterna.
Na frase “Minha carne para a vida do mundo”:
- É preciso: entender “carne” como o corpo de Jesus entregue na Cruz.
- O “para”, termo que também aparece nos relatos da instituição da Eucaristia, nos outros evangelhos, assinala o sentido da morte sacrificial de Jesus.
5. Releiamos o Evangelho com um Padre da Igreja
Quando escutas: “Ninguém vem a mim se não é atraído pelo Pai”,
não penses que é atraído contra sua vontade.
Também o amor é uma força que atrai a alma.
Não temos que temer a censura de quantos estão, apesar das palavras, porém são incapazes de entender as coisas de Deus.
Eles poderiam dizer-nos a propósito desta afirmação do Evangelho: Como é que eu posso crer com livre vontade se sou atraído?
Eu lhes respondo: Não somente é atraído por meio da vontade,
mas também pelo prazer.
Que significa ser atraído pelo prazer? “Põe no Senhor tua alegria,
e Ele te dará o que pede teu coração” (Sl 36,4).
Há um certo prazer do coração para o qual é doce aquele pão celestial.
Se o poeta pode dizer: “cada um é atraído por seu prazer” (Virgilio) – disse prazer, não necessidade; alegria e não obrigação -, com maior razão podemos dizer que é atraído por Cristo o homem que encontra seu deleite na verdade, na felicidade, na justiça, na vida eterna,
em tudo aquilo, enfim, que é o próprio Cristo?
Se os sentidos do corpo tem seus prazeres, por que razão a alma
não haveria de ter os seus?”.
(Santo Agostinho)
6. Para cultivar a semente da Palavra na vida
- Como se situa esta parte do discurso dentro da totalidade?
- Qual o novo acento na passagem de hoje com respeito ao que lemos domingo passado?
- Em que se parecem as “murmurações” (criticas) do povo de Deus no êxodo às quais temos escutado a algumas pessoas com relação a Deus?
- Que relação há entre Eucaristia e Encarnação?
- Que diz a frase “Minha carne para a vida do mundo” à minha própria vida?
Pe. Fidel Oñoro, cjm
ANEXO 1
O discurso do “pão da vida” é a revelação fundamental sobre o mistério da Eucaristia que “é o centro e o cume da vida da Igreja” (Ecclesia de Eucharistia, 31).
O Evangelho de João não nos relata a instituição da Eucaristia, como fazem os Evangelhos de Mateus, Marcos e Lucas; porém esse Evangelho nos revela o sentido desse mistério de maneira decisiva. Que foi o que originou esse discurso, pronunciado por Jesus na sinagoga de Cafarnaum?
No dia anterior Jesus havia feito o milagre admirável da multiplicação dos pães. Este fato devia entender-se como um “sinal” de que em Jesus estava presente à ação salvadora de Deus. Porém os judeus não entenderam assim e ficaram só no fato superficial, como os reprova Jesus: “Vós me buscais, não porque vistes sinais, mas porque comestes dos pães e vos saciastes” (Jo 6,26).
Esse pão era certamente um pão milagroso, porém perecível; e alimentava a vida perecível que tem o homem neste mundo e que deve sustentar com o suor de seu rosto.
Jesus então convida a buscar “o alimento que permanece para a vida eterna”, e esclarece que:
- este alimento não se obtém pelo esforço do homem, mas que este “o dará o Filho do homem” (Jo 6,27).
- há um pão que comunica ao homem vida eterna e este pão, que o dará Jesus, é já uma revelação admirável.
Para aceitar isto os judeus pedem a Jesus um sinal. Não bastou a multiplicação dos pães e sugerem a Jesus fazer um sinal como o que foi dado a Moisés: “Nossos pais comeram o maná no deserto, segundo está escrito: ‘Pão do céu os deu a comer’” (Jo 6,31).
E aqui inicia o discurso de Jesus do qual sublinharemos algumas expressões fundamentais.
Jesus declara: “O pão de Deus é o que desce do céu e dá a vida ao mundo”. E ante o pedido dos judeus: “Senhor, dá-nos sempre desse pão”, Jesus declara solenemente: “Eu sou o pão da vida”.
O que quer revelar é que Ele, sendo o Filho de Deus e um com o Pai na divindade, desceu do céu e se encarnou e, encarnado, se dá a nós em forma de pão.
Assim ficou revelado o mistério da Eucaristia. Mediante este mistério se comunica a nós a vida divina. Isto é o que viveram todas as gerações de cristãos e seguiremos vivendo até o fim do mundo.
O resto do discurso consiste em reafirmar este mesmo ensinamento. “Eu sou o pão da vida… Eu sou o pão vivo, descido do céu. Se alguém come deste pão, viverá para sempre; e o pão que eu o vou a dar, é minha carne oferecida pela vida do mundo”.
As afirmações de Jesus são claras e não admitem acomodação. Alguém pode aceitar ou recusar esta doutrina.
Mas, se a aceita, então se cumpre o que escreveu João Paulo II na carta apostólica “Mane nobiscum, Domine”: “Mediante o sacramento da Eucaristia Jesus encontrou o modo de ficar ‘em’ nós. Receber a Eucaristia é entrar em profunda comunhão com Jesus. ‘Permanecei em mim, e eu em vós’ (Jo 15,4). Esta relação de íntima e recíproca ‘permanência’ nos permite antecipar em certo modo o céu na terra… Se nos dá a comunhão eucarística para ‘saciar-nos’ de Deus nesta terra, à espera da plena satisfação dele no céu” (N.19).
+ Felipe Bacarreza Rodríguez, Obispo de Santa María de Los Ángeles