25° Domingo do Tempo Comum (Estudo Bíblico ano C)

Lucas 16,1-13

“O que é fiel no mínimo, é também no muito;

e o que é injusto no mínimo, também o é no muito”

Autor: PE. FIDEL OÑORO, CJM

Introdução

Seguindo o fio do evangelho de Lucas na leitura dominical encontramos, depois do monumental capítulo 15 sobre a misericórdia, uma catequese sobre o uso inteligente dos bens terrenos. Percebe-se a conexão com a parábola do filho pródigo: este jovem antes de sua conversão era uma dessas pessoas que esbanjavam, torpemente, os seus bens (“dissipou sua herança”; 15,13). 

Também há uma conexão com a passagem que lemos faz quinze dias: visto que o discípulo tem renunciado a todos seus bens (ver 14,33), corre o risco de cair em espiritualismos ingênuos que o levam a pensar que não tem responsabilidades com o trabalho, a economia do lar ou da comunidade, e que todo lhe vai cair do céu. Estas perguntas podem nos ajudar a entrar no evangelho de hoje:

  • Só a piedade e a boa vontade são suficientes para oficiar a Igreja no mundo de hoje?
  • Havendo tanta gente hábil para o mal, somos também engenhosos e criativos para o Reino de Deus?
  • Pomos no serviço ao Reino toda nossa astucia e energia?
  • Podemos deixar de lado a reflexão crítica e de alto vôo e a competitividade em nossas ações no mundo? Podemos dispensar-nos de uma formação cristã seria?

Enfim, a cada um de nós nos corresponde descobrir como podemos ser “hábeis” e “competentes” para o Reino de Deus. Porque este é um tema importante, Jesus (e hoje a Igreja junto com ele) nos pede que paremos um pouco para escutar a evangélica lição. Nossa passagem de hoje é breve. O ponto de partida está na parábola do mau administrador que ao final resultou bom (16,1-8) e em sua aplicação (16,9).

Jesus tira lições da gestão empresarial, tal como funcionava naqueles tempos, para mostrar com que critérios um discípulo seu deve manejar o dinheiro e as propriedades, não importando quão pouco seja. Estes aparecem formulados nas palavras de Jesus que somos convidados a aprofundar (16,10-13).

  1. Ponhamo-nos em contexto (16,1-9)

A parábola do administrador infiel

Na Galileia dos tempos do Jesus terreno, os administradores eram numerosos. Eles gerenciavam latifúndios e importantes propriedades em beneficio de seus proprietários que, habitualmente, viviam em Jerusalém ou outras cidades. De vez em quando se supervisava a gestão destes administradores. Ocorria, às vezes, que, depois do controle de contas, algum ou outro era pilhado por desfalques ou abusos no livro de contabilidade.

Jesus se baseia nesta realidade para contar uma parábola, na qual um destes administradores, quando é denunciado, reage rapidamente e ganha amigos antes que seja tarde demais. A cada devedor lhe diminui o equivalente uma centena de jornadas de trabalho, o qual parece demasiado.

A parábola se fixa na sabedoria do administrador – que inicialmente parecia incompetente – esteve em ordenar sua gestão pensando em sua existência futura, a qual se viu ameaçada quando o tirassem do trabalho. Jesus então o felicita “porque havia agido astutamente” (16,8ª). Com isto quer dizer que se “os filhos deste mundo”, com seu modo de agir, entendem que para assegurar o amanhã devem agir no hoje com inteligência e prudência, com maior inteligência deve agir os “filhos da luz” para os assuntos da vida em plenitude, que é a vida eterna (16,8b).

Deduz então a moral: “Fazei-vos amigos com o Dinheiro (em lingua semita: mammón) injusto, para que, quando chegue a faltar, vos recebam nas eternas moradas” (16,9). A lição é que a sabedoria dos filhos de Deus se deve demonstrar, sobretudo no uso dos bens terrenos. Se uma pessoa converte os bens injustos em bens imperecedouros – como acontece em 12,33 ao falar da caridade – um dia o receberá nas “moradas eternas”. A um discípulo se requer esta destreza.

Lição para o discipulado (16,9)

Visto que o futuro do discipulado é apresentado no evangelho de Lucas como um compartilhar os bens e as responsabilidades de Jesus na glória (“Vós sois os que haveis perseverado comigo em minhas provas; eu, por minha parte, disponho um Reino para vós… e vos sentareis sobre tronos, para julgar as doze tribos de Israel”; 22,28-30), é condição indispensável, e quase como requisito de admissão, que se mostrem confiáveis e dignos com relação à riqueza mundana.

Ao discípulo se pede: (1) que seja “fiel”, no sentido de “responsável”, na administração do terreno e (2) que esta administração não desvie seu coração de sua opção radical por Deus, mas ao contrario, se consagre totalmente e com absoluta lealdade ao “serviço” de Deus e de seus interesses no mundo (=o bem e a salvação do homem). Os dois aspectos se complementam; e mais: se requerem um a outro. São como dois lados da moeda.

Corre-se sempre um risco, se não faz a complementação: por uma parte, se cai na mundanidade, sem transcendência, se os esforços da vida não ultrapassam ao labor de “sobrevivência” imediata e não se trabalha seriamente para o dom maior da vida que nos aguarda no Reino definitivo de Deus (as “moradas eternas”); e viceversa, se cai em um também perigoso espiritualismo, se nossa opção radical por Deus nos leva a descuidar de nossas responsabilidades presentes (o trabalho, a família, etc). Vejamos de perto o ensinamento de Jesus.

  • Primeiro lado da moeda: a fidelidade nas responsabilidades terrenas (16,10-12)

Jesus começa com uma afirmação tomada do mundo da sabedoria popular (16,10; nota-se que está em terceira pessoa: “o que”) e logo o aplica à vida dos discípulos (16,11-12: note-se que está em segunda pessoa: “vós”). 

  •  Uma afirmação de sabedoria: “O que é fiel no mínimo, é também no muito; e o que é injusto no mínimo, também…” (16,10)

A afirmação concentra as seguintes verdades:

  • É verdade que para assumir uma tarefa importante há que ser competente para ela;
  • É verdade que uma pessoa que é fiel em uma pequena responsabilidade ganha a confiança dos demais para tarefas de maior envergadura.
  • É verdade que uma pessoa fiel em uma grande responsabilidade não necessariamente o é para os assuntos pequenos.
  • É verdade que a competência para um trabalho tem que ser demonstrada.

Mas, o que é que se vê na hora de avaliar a “competitividade”? Jesus faz referência à “Fidelidade”. A “fidelidade” é uma qualidade decisiva para um administrador (ver 12,42;19,17;1Cor 4,2). Esta implica dedicação, constância, honestidade, transparência, zelo pelos interesses do proprietário. E poderíamos completar a lista de valores.

O contrário do administrador “fiel” é o “injusto”, qualificativo que aqui tem o significado de “desonesto”, indigno de confiança. Com isso se tipifica a desonestidade que é característica de gente mundana, onde primam os próprios interesses ao bem comum.

  • A aplicação: “Se, pois, não fostes fieis no Dinheiro injusto, quem vos confiará o verdadeiro? E se não fostes fieis com o alheio, quem vos dará o vosso?” (16,11-12).

A aplicação se faz em duas etapas (como escalando níveis de compreensão).

  • Admite-se a possibilidade de que os discípulos não possam agir fielmente com respeito ao “dinheiro injusto” 

“Se não fostes fieis no Dinheiro injusto” (16,11ª)

O termo “Dinheiro injusto”, que causa certa estranheza, poderia significar “riqueza mundana adquirida ou usada”, porém na realidade – visto que o contexto é da fiel administração – se está querendo dizer que a riqueza material é algo do qual não somos proprietários, senão administradores. Há algo que, sim, é nosso (ver o versículo seguinte).

“Quem vos confiará o verdadeiro?” (16,11b).

Por “verdadeiro” se entende a realidade característica dos novos tempos que Jesus inaugura com seu anúncio do Reino. O verdadeiro é o consistente, a realidade que permanecerá sempre. Quem o “confia” é o próprio Deus; é Ele que oferece os dons da salvação, o “tesouro inesgotável nos céus” (12,33).

  • Insiste-se em que a boa administração do “alheio” abra portas para aquisição do “próprio”

E se não fostes fieis com o alheio” (16,12ª)

Com base na idéia de que a riqueza terrena de fato não pertence aos discípulos, se anuncia onde está a verdadeira propriedade de valor incalculável, que não se desvaloriza nem é passageiro. O tesouro do céu será a inalienável posse dos discípulos. Porém o discípulo não pode tentar desentender-se disto que se tem dito que é “alheio”: não pode viver sem trabalhar, sem buscar a prosperidade de sua empresa.

Porém o que nunca deve esquecer é que nada disso é próprio: por isso parte da responsabilidade é cair no apego e estar sempre disposto a compartilhar (ver 12,13-21). E isto, sim, que é trabalhar para a vida e não viver para trabalhar.

  • Segundo lado da moeda: a lealdade absoluta a Deus (16,13)

Não podemos descuidar-nos de nossas responsabilidades terrenas, isto já ficou claro. Porém, agora, vem outro aspecto importante: que o trabalho cotidiano e a luta pelo que necessitamos para a vida não aparte nosso coração de Deus. Lidemos com o dinheiro, porém não façamos dele um ídolo!

Claramente diz Jesus: “Nenhum criado pode servir a dois amos, pois aborrecerá a um e amará o outro; ou bem se entregará a um e desprezará ao outro. Não podeis servir a Deus e ao dinheiro”(16,13). Isto implica uma avaliação continua por parte do discípulo para não deixar-se escravizar pela administração terrena e ter os melhores espaços para o serviço de Deus.

A palavra “servir” aqui é importante. No pensamento lucano, o criado geralmente é de uma casa e, frequentemente, em qualidade de escravo. Nas condições do antigo sistema escravista não era possível que uma pessoa pertencesse a dois patrões. Tampouco, como se é possível hoje, havia a possibilidade de trabalhar meio tempo em duas empresas diferentes (ainda que houvesse exceções). Pedia-se dedicação exclusiva. A lealdade exclusiva era inerente ao conceito de servidão. 

E isto porque se podia cair na tentação de amar mais a um que a outro (ver 14,26). Em nosso caso: se uma pessoa se põe ao serviço do dinheiro, da mesma forma que o faz com Deus, terminará fazendo da economia sua religião, falhando Deus na consagração total de seu ser.

E mais ainda, se porá ao serviço dos interesses próprios ou dos de novos patrões, deixando de lado o maior interesse de Deus, que é o bem estar de todos seus filhos, sem exceção (veremos próximo domingo na parábola do rico epulão).

A má opção pelo deus-dinheiro, certamente arrastaria a pessoa para a perdição de sua vida. Ai sim que para nada valeram todos seus trabalhos, mostrando-se ao final como um mal administrador do fundamental, “o verdadeiro”.

Com uma imagem podemos fazer a síntese do evangelho de hoje: o discípulo deve ter os pés na terra, porém, o coração no céu. 

4. Releiamos o Evangelho com um Padre da Igreja

“Vós, ricos, que tens vosso dinheiro encerrado sob chave, sois os carcereiros de vosso patrimônio,

em lugar de seus soberanos; sois seus escravos e não seus donos.

Disse Jesus:  ‘Onde está teu tesouro, ali  também estará  teu coração’.

Junto com o tesouro, também vosso coração está fechado com cadeado…

Esquecendo o ensinamento de Jesus, vos apegais a objetos de pouco

valor e perdeis  imensas riquezas: preferis os tesouros de dinheiro aos tesouros da graça…

Refleti antes nos devedores que a graça os pode assegurar: a graça os

da os irmãos como devedores…                                         

A graça os dá como devedor a Deus Pai, o reembolsa com altos interesses

o mínimo dom que façais para aliviar ao pobre.

A graça os da como devedor ao Filho de Deus, o qual dirá: ‘tive fome

e me destes de comer…

O que fizestes a um dos meus irmãos mais pequeninos, a mim fizestes’.

Também vós podeis pôr em prática o ensinamento da Escritura: faz um empréstimo a Deus, dando aos pobres.

Sim, quem dá ao pobre, empresta a Deus”.

(Santo Ambrosio de Milão, De Nabuthae história)

5. Cultivemos a semente da Palavra no profundo do coração

  1. Quais as idéias centrais do ensinamento de Jesus no evangelho de hoje? Como o resumiria?
  2. Minha opção por Jesus tem me levado a descuidar meus deveres com a economia da casa ou da comunidade?
  3. Por que Jesus fala de um “dinheiro injusto”? Que quer dizer? Que implica?
  4. Conheço casos concretos de pessoas que têm feito do dinheiro sua religião? Que as caracteriza? Por que esse não é o caminho da salvação?
  5. Em que consiste o “serviço” a Deus? Com que critérios devo viver meu “manejo do dinheiro” para que não se oponha a minha entrega absoluta ao amor de meu Deus e Pai? De que forma concreta vou viver meu “serviço” a Deus?

ANEXO

Temos uma morada eterna no céu

Ninguém poderá discutir que a vida do homem nesta terra é breve: “Os anos de nossa vida são uns setenta, ou oitenta, se há vigor… e passan rápido…” (Sl 90,10). Estamos nesta terra somente de passagem, a caminho para outra morada definitiva: “Sabemos que se esta tenda, que é nossa morada terrestre, se desfaz, temos un edifício que é de Deus, uma morada eterna… que está no céu” (2 Cor 5,1). Isto é o que professamos: “Creio na ressurreição da carne e na vida eterna”.

Para cada um chegará o dia em que todos os bens materiais que possua nesta terra passarão a outros. É evidente que estes bens os temos recebido somente para administrá-los durante o espaço desta vida terrestre. Pode-se dizer que a terra com tudo que contêm é patrimônio de toda a humanidade: dos homens de todos os tempos. São rotatórios. Em um momento determinado são possuídos pelos habitantes desse momento; porém, inevitavelmente passarão à geração seguinte. Para cada um chegará então o día – que não conhecemos- em que nos será dito: “Dá-me conta de tua administração, porque já não poderás seguir administrando”.

O mais precioso de todos os bens que possuímos nesta terra é a própria vida. Para cada um esta vale mais que todo o mundo, pois, “de que serve ao homem ganhar o mundo inteiro se perde sua vida?” (Mc 8,36). Porém é, precisamente, esta a que tem fim, e pronto! É, precisamente, ésta a que temos que administrar, pois “todos temos que apresentar-nos ante o tribunal de Cristo, para que cada um receba conforme o que fez durante sua vida mortal, e bem ou o mal” (2 Cor 5,10).

Uma só coisa pode ter o homem nesta vida mortal que é propriedade sua definitiva e que ninguém o tirará: Deus. Todos deveríamos aspirar a este Bem e dizer com alegria: “O Senhor é a parte de minha herança e de minha taça… minha herança é preciosa para mim” (Sl 16,5.6).

Portanto, todos os bens  desta terra e a própria vida terrena devem usar-se para adquirir esse Bem eterno, do qual nunca seremos despojados. Nesta chave deve entender-se a parábola chamada do “administrador infiel”. Jesus o põe como exemplo, porque ele, com os bens que seu senhor o deu em administração, fez para si amigos para o tempo em que fosse removido da administração.

O senhor elogia o administrador por sua astúcia. E, à luz desse exemplo, Jesus nos exorta: “Fazei-os amigos com o Dinheiro injusto, para que quando chegue a faltar (quando se nos peça conta), os recebam nas eternas moradas”. Como interpretação dessa parábola, Jesus propõe em seguida parábola do rico e do Lázaro, o pobre.O rico usava seus bens só para seu próprio bem estar: “vestia púrpura e linho ye celebrava todos os dias explêndidas festas” (Lc 16,19).

Não haveria custado nada ao rico com seus bens ganhar a amizade de Lázaro: bastava deixar-lhe comer o que sobrava de sua mesa. Porém, nem siquer isto fez. Por isso ã foi recebido nas moradas eternas e depois de sua morte foi atormentado por uma chama inextinguível. Comentando este ensinamento de Jesus, Santo Agostinho pergunta: “Por que, enquanto vivemos não, elegemos para nós o lugar onde sempre viveremos?”.

+ Felipe Bacarreza Rodríguez Obispo Auxiliar de Concepción

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