5º DOMINGO DA PÁSCOA ANO B (Estudo Bíblico)

João 15,1-8

Introdução

Depois ler o Evangelho do “Bom Pastor”, o que “dá sua vida pelas ovelhas”, neste domingo aprofundemos na realidade dessa videira que nos foi dada: é sua própria vida ressuscitada como força da nossa, “seiva” que dá vigor, desenvolvimento e plenitude à nossa existência.

As perguntas que a Igreja nos convida a fazer-nos nesta nova etapa de nosso caminhar pascal são: Como cresce em nós o mistério pascal? Ou, como nos vivifica o Pai do Ressuscitado?  E já que a vida é um processo dinâmico, tão forte quanto frágil, que fazer para que a vida de Jesus em nós se desenvolva verdadeiramente? Que frutos se esperam de nós que vivemos a experiência pascal? Finalmente, que rosto de Deus se revela no mistério pascal?

Para isso nos propõe hoje a belíssima comparação (que chamamos “alegoria”, não parábola, porque cada detalhe se conta para a explicação) da “Videira, os Sarmentos e os frutos”, em termos mais simples “o tronco, as ramas e os frutos” (note-se a dinâmica da comparação). Para nós que não somos da cultura vinícola mas dos sucos das diversas frutas, pode nos soar estranhos alguns termos ou ações descritas na parábola, sem dúvida podermos aprender muito desta comparação que nos fala de nossa profunda relação com Jesus e o que deve resultar dela.

A ênfase de toda a comparação está no “dar frutos” (notemos a repetição nos vv. 2,4,5,8.16, de Jo 15; ao menos quatro vezes lemos a expressão no Evangelho de hoje). Isto quer dizer que se por uma parte, como o vimos na Quaresma, Jesus é o grão de trigo que, morrendo, dá muito fruto (Jo 12,24), agora por outra parte, no tempo pascal, Jesus é também a videira cujos ramos devem dar ricos frutos: abundantes e de boa qualidade. Pouco a pouco a parábola vai conduzindo-nos para esta reflexão: Se a cepa é de tão boa qualidade, então por que os frutos que damos no mundo não são?

Nossa vida tem um sólido fundamento, somos por natureza “de boa cepa”, o problema é que não nos acautelamos desta realidade e, portanto, não somos conscientes dos elementos que entram em jogo na configuração da formosa e vigorosa vida à que fomos chamados e pela qual Deus se entregou para fazê-la possível em nós. Portanto, a parábola da “Videira e os ramos” – com suas alusões diretas e simples à realidade da videira em crescimento – nos leva a uma análise profunda para que descubramos de que depende a fecundidade que provém da transformação pascal e de onde vem à fecundidade apostólica de todos aqueles que experimentaram o “encontro” e a “inserção” viva no Senhor Jesus. 

Este é o domingo radiante da vida pascal que vence todas as esterilidades, tristezas e obscuridades em nossa vida. Nós somos chamados a viver radiantes, criativos, produtivos, felizes de nossas realizações, deixando que se expresse a força vital escondida na raiz.

1. O texto em seu contexto

1.1. Leiamos cuidadosamente o texto: Jo 15,1-8

1.2. A “Videira” no imaginário de Israel

No Antigo Testamento, Israel foi a “Vinha” que Deus plantou

Jesus se inspira na vida diária de um camponês judeu para expressar realidades espirituais profundas e aqui temos um novo exemplo disso. Sem dúvida, não podemos esquecer que a simbologia da “Videira” pertence ao imaginário coletivo de Israel como um dos ícones que expressa sua identidade como “Povo de Deus”, como povo da “Aliança”. Em várias ocasiões vemos como no Antigo Testamento Israel se apresenta como a Vinha de Deus”:

  • O Sl 80,9 dá a entender que a vinha é o símbolo de Israel: “Uma vinha do Egito arrancaste, expulsaste nações para plantá-la”.
  • No capítulo 5 de Isaias encontramos também a imagem da “vinha do Senhor dos Exércitos” (5,7) e ali se descreve como Deus cuidou com amor, mas quando veio buscar seus frutos não encontrou nada senão uvas verdes

A imagem sugere grandeza, uma grandeza pela qual se fez uma grande inversão: “Videira frondosa era Israel (Oseas 10,1).

Quando Moisés enviou exploradores para pedir informações sobre a terra que estavam a ponto de habitar era o tempo das uvas e estes voltaram com “um cacho de uva que transportaram numa vara carregada pelos dois” (Nm 13,23). As uvas eram tão grandes (como mamãos, digo eu) que duas pessoas tiveram que carregar o cacho. Isto era a imagem da riqueza da terra “que mana leite e mel” (Ex 3,8-9) e símbolo da grandeza à que estava chamado o povo. Dai a que estava chamado o povo. Daí que se convertera em emblema da nação inteira. No tempo dos Macabeus, por exemplo, num momento de renascimento nacional, vemos que este emblema foi cunhado nas moedas que circulavam no momento. Além do mais, uma das glórias do Templo era a grande videira de ouro que havia na fachada do “Sancta Sanctorum”. Era considerado uma grande honra fazer uma doação ao Templo para por uma nova uva de ouro a essa videira.

Mas o jardim do qual se esperava uma grande fecundidade, este se tornou árido e infecundo (Os 10,1-2).

Grande decepção: a vinha de “pura cepa” não deu os frutos esperados.

Na voz forte dos profetas escutamos a lamentação de Deus pela beleza perdida de seu jardim: “Eu te plantei de pura cepa”. Vejamos a passagem completa de Jeremias: “Eu te havia plantado da cepa selecionada, toda inteira de semente legítima. Pois, como mudaste em sarmento de videira bastarda?” (2,21)

A “Videira” a qual se esperava muito, fracassou, uma decepção para o vinhateiro. A cepa era boa, então, por que não deu nada? A dor é profunda! Neste sentido o profeta Ezequiel compara Israel a uma videira de cuja cepa se esperava que saísse cetros reais, mas ao fim a única coisa para que serviu foi de lenha para as cozinhas israelitas:“Tua mãe se parecia a uma videira plantada à margem das águas. Era fecunda, exuberante, pela abundância de água. Tinha ramos fortes para ser cetros reais; seu tamanho se elevou até dentro das nuvens. Era imponente por sua altura, por sua abundância de folhagem. Porém foi arrancada com furor, atirada por terra; o vento do oeste secou seu fruto; foi quebrada, seu ramo forte secou, o devorou o fogo… Saiu fogo de seu tronco, devorou seus ramos e seu fruto. Não voltará a ter sua rama forte, seu cetro real” (Ez 19,10-14; ver c.15).

1.3. O diálogo de Jesus com seus discípulos na última ceia

Jesus conta a parábola da videira no contexto de seu discurso de despedida, onde ele instruiu seus discípulos sobre o futuro do discipulado após sua morte, quer dizer, sobre como continuaria a relação entre Ele e sua comunidade no tempo pascal: “vou e voltarei a vós” (Jo 14,28). Jesus afirmou que no tempo pascal “Compreendereis que eu estou em meu Pai e vós em mim e eu em vós” (14,20). Porém Jesus não disse o “como”.

Ao final do capítulo, em Jo 14,31, Jesus faz uma pausa e diz aos discípulos que acabam de partilhar com Ele a última ceia: “levantai-vos, vamos daqui”. Então saem do cenáculo e se dirigem lentamente para o Getsemani. Eles vão rodeando lentamente a muralha de Jerusalém pelo lado sul e descem até o vale de Cedrón. Ao mesmo tempo vão vendo os vinhedos que havia em volta de Jerusalém nesta época. Recordemos que estamos na festa da Páscoa, a festa da lua cheia, quando a lua brilha em todo seu esplendor à noite. À luz da lua, Jesus e seus discípulos atravessam os vinhedos e ai, provavelmente, se dá esta conversa. Jesus pode, de repente, ter tomado um ramo ao dizer: Eu sou a videira verdadeira e meu Pai é o agricultor(15,1). Entremos também, nós, na conversa.

  • Detenhamos no texto

Podemos ler o texto de João 15,1-8 diferenciando três partes bem unidas entre si, três partes que formam um itinerário de fé:

  • Os vv.1-3, descrevem a obra de Deus no mundo, isto é, a obra do Pai nos homens na pessoa de Jesus. Esta parte é descritiva e dá o conteúdo de cada um dos referentes. Por isso o chamamos “A obra de Deus” (o amor do agricultor)
  • Os vv.4-5, centram-se num imperativo, “permanecei”, que é a resposta desejada à obra de Deus, em nosso caso o dom da vida que nos faz Jesus. esta parte é exortativa. Por isso a chamamos “A resposta do homem” (a adesão a Jesus);
  • Os vv.6-8, na qual em duas ocasiões lemos frases concicionais “Se vocês fazem isto, sucederá então isto”, nos aponta as conseqüências da obra pascal de Jesus incorporada em nossa vida pelo “permanecer”, ou seja, nos permite ver quais os frutos da vida de Jesus em nós. Por isso o chamamos “Os frutos da comunhão com Jesus” e “o gozo de Deus Pai” (Oração eficaz Discipulado e Missão)
    • A obra de Deus: A videira verdadeira, os ramos e o vinhateiro (vv.1-3)

Jesus inicia dizendo “Eu sou a Videira” “a verdadeira”. Ao dizer “Eu sou a videira verdadeira” Jesus não está dizendo que Israel foi uma falsa vinha, mas que Ele é a verdadeira vinha da qual a nação era símbolo, uma imagem. É Jesus que produz finalmente os frutos que Deus tem esperado durante muitos séculos. E mais, os frutos esperados só são possíveis na comunhão com Jesus. Jesus afirma com uma clareza insuperável que a vida autêntica, a vida plena,  provém d’Ele.

“Meu Pai é o vinhateiro”. A obra do Pai é como a de um jardineiro que cuida da vinha. Sua obra é a favor da vida: que ela brote, se desenvolva e amadureça. A imagem do agricultor e seus ofícios próprios, associada à obra de Deus, nos permite compreender toda a dedicação de Deus por nós e o sentido de sua presença em nossas vidas.

O vinhateiro não só escolhe a cepa, buscando sempre a melhor, para sua vinha, mas se ocupa dela observando-a todos os dias de ponta a ponta, para afastar dela tudo que possa ameaçar e, sobretudo, para fazer sair dela os melhores frutos.

Primeiro se vê é o “sarmento”. Recordemos que o sarmento é o rebento da videira, longo, delgado, flexível, nodoso, de onde brotam as folhas, as gavinhas e os cachos de uvas. Do tronco da cepa plantada vão brotando os ramos. Se o vinhateiro deixa que os ramos brotem e cresçam livremente, sem pôr neles a mão, notaremos que de repente o tronco se enche de muitos ramos de todo tipo, como uma espécie de cabeleira vegetal E é aqui onde o vinhateiro tem que intervir.

No v.3, Jesus diz que o vinhateiro encontra dois tipos de sarmentos: (1) um negativo, que não dá fruto e (2) outro positivo, que sim, dá fruto. Vejamos como intervém o vinhateiro:

  • O que Deus Pai faz com os ramos secos que não dão fruto: “Todo ramo que em mim não dá fruto, o corta” (v.3ª)

Quando há ramos que são improdutivos a videira se nota carregada de uma folhagem excessiva que não faz senão tirar a seiva das demais ramas e reduzir a quantidade de uvas que poderiam aparecer. A primeira obra do Pai é podar a videira, cortando esses ramos que não produzem fruto. Não é dificil entender o significado da frase. Em 1 Jo 2,19 lemos: “saíram de entre nós, porém não eram dos nossos. Se houvessem sido dos nossos, teriam permanecido conosco. Porém aconteceu assim para manifestar que nem todos são dos nossos”.

  • O que Deus faz aos ramos que se mostram vivos, portadores de uma grande fecundidade: “Todo o que dá fruto, o limpa para que dê mais fruto” (v.3b)

Os bons ramos não ficam sem experimentar a mão benéfica do vinhateiro. Do mesmo modo, a segunda obra de Deus Pai é podar os ramos bons para que dêem mais frutos. E para isso usa sua santa Palavra.

O termo “podar”, na realidade é “purificar”, “limpar” (não é arrancar completamente). Isto quer dizer que o faz retoques, que a corta um pouco para conseguir o que quer de sua vinha. Assim, o vinhateiro não só vai percorrendo a sua vinha retirando os raminhos secos, mas vai fazendo pequenos retoques naqueles mais promissores, de maneira que potencializa-os para maiores resultados. Entendemos, assim, que o que o vinhateiro faz não é um ato hostil, nem violento, contra os sarmentos. O que faz é bom e inteligente: ao que pode dar mais, Deus pede mais.

O modo como Deus nos purifica para darmos mais, está nos ensinamentos de Jesus. Pode-se falar de uma função “purificadora” da Palavra de Deus.

Por meio dela compreendemos:

  • em que pontos de nossa vida é que temos que trabalhar;
  • como em nossas debilidades, ali onde não podemos sair adiante por nossas próprias forças, onde nossas capacidades pessoais são insuficientes, Deus está agindo; e
  • que só pela obra do Pai que nos purifica misteriosamente com a Cruz do Filho e nos cumula com a força irresistível de seu amor (Jo 3,16-17), é que podemos “dar fruto”.

Do encontro com a Palavra deve sempre resultar um “dar mais fruto”. Sobre este ponto tratou o capítulo 14 de João. Há uma relação muito grande entre a Palavra e a transformação pessoal: “As palavras que vos digo, não as digo por mim mesmo, o Pai que permanece em mim é que realiza as obras” (Jo 14,10).A consequência é que: fará as obras que Eu faço, e fará ainda maiores (14,12).

Porém, certamente a purificação da Palavra é uma purificação no amor: lima as asperezas das más relações, cura as relações fracassadas, aproxima as distâncias.

A Palavra submerge sempre em uma comunhão profundíssima com Deus que se irradia em todas as demais relações: “Se alguém me ama, guardará minha Palavra, e meu Pai o amará, e viremos a ele, e faremos nele morada” (v.23). Esta é a Palavra que nos faz livres: “Se vos mantéis em minha Palavra, sereis verdadeiramente meus discípulos, e conhecereis a verdade e a verdade vos fará livres” (ver 8,31-32).

Muitas vezes fazemos esta experiência. Há ocasiões em que estamos desolados, tristes, débeis, com sentimento de fracasso, experimentando as consequências dos choques da vida. Sem dúvida, a obra do amor do Pai faz brotar de dentro, de sua habitação em nós, uma vitalidade renovada que dá novo sentido, luz e calor a tudo (Jo 3,21;14,27;15, 11); a seiva flui com autenticidade, em amor, paz e gozo.

Portanto, o fruto esperado está relacionado com a “Palavra” semeada em nós, a qual se manifesta como conversão e compromisso, como cristificação de nossa vida, isto é, como transparência da “Palavra encarnada” (Jo 1,14) que vivificou as escuras solidões do mundo.

Esta é a obra do Pai em todos nós, por meio da revelação de Jesus em suas palavras e na “grande palavra” que é sua morte e ressurreição por nós. O Pai tem formas maravilhosas para fazer ressurgir a força da vida de Jesus em nós, de modo que nossa existência tenha o calor, a felicidade, a integridade (ou seja, a santidade), a paz, a beleza da vida de Jesus refletida em nosso rosto. Esta é a nova, a verdadeira e a definitiva vinha do Senhor.

  • A resposta do homem: “permanecer” em Jesus (vv.4-5)

A obra de Deus solicita nosso compromisso, nossa participação. Não podemos esperar que os resultados caiam do céu se não fazemos o esforço penetrar-nos vitalmente no céu vivente que é Jesus, se não nos incorporamos n’Ele. Um ramo só pode dar verdadeiramente seus frutos se está unida ao tronco, se recebe seu fluxo vital.

Por isso Jesus pede uma só coisa: “Permanecei!”. O termo “permanecer” tem duas conotações que apontam a um “que” e a um “como”. O “que” é a inserção na pessoa de Jesus; segundo isto, o “permanecer” em Jesus descreve uma relação profunda que consiste no “estar” n’Ele, no “habitar” n’Ele, no “fundamentar-se” n’Ele. O “como” é a constância nessa relação, a fidelidade que implica.

Isto é o que os outros Evangelhos chamam “seguir a Jesus”. Discipulado é viver este “permanecer” em Jesus em todas as circunstâncias da história, acolhendo e expressando ali a vida do Ressuscitado. Jesus convida, então, a entrar na dinâmica de uma bela e sólida relação com Ele: “Permanecei em mim”. Este “em mim” indica que a vida do cristão consiste em encarnar a dinâmica da vida de Jesus: um apoiar a vida toda na pessoa de Jesus e permitir que aos poucos cristifique o ser. É o que Paulo dizia: “Vivo, porém já não sou eu, é Cristo que vive em mim” (Gl 2,20). A vida de um discípulo consiste nesta interação fecunda.

“Permanecem em mim, como Eu em vós”, indica um duplo processo:

  • O “permanecei” em mim, que está em voz ativa, é o que nós devemos fazer; e
  • O “como Eu em vós”, que está em voz passiva, é o que Jesus faz em nós. Só neste duplo movimento se faz um verdadeiro discípulo, um só aspecto não é suficiente. É aqui onde muitas vezes nos equivocamos em nossa vida espiritual: caímos na autossuficiência espiritual (uma autosantificação) ou caímos num conformismo que espera que Deus se encarregue só de tudo. A vida espiritual é estar “juntos”, só assim brota uma vida frutuosa.

Então daqui se conclui que a relação com Jesus, que caracteriza a um verdadeiro (vivente!) discípulo é: radical (=até a raiz, total), constante, progressiva, interativa e produtiva. Contudo, Jesus nos convida a considerar com cuidado o conteúdo desta relação. Qual a atmosfera e vínculo desta relação circular?

Para isso nos apresenta as duas caras da moeda:

(1) A vida cristã “vazia” de Jesus; e

(2) A vida cristã cujo “conteúdo” é Jesus.

1ª cara da moeda: “não pode dar fruto por si mesmo”

Aprofundando na comparação da videira e o ramo, Jesus sublinha a necessidade que o segundo tem do primeiro: “Como o ramo não pode dar fruto por si mesmo, se não permanece na videira, assim tampouco vós se não permaneceis em mim”. 

O início do v.5 enfatiza agora com toda clareza: “Eu sou a videira vós os ramos”. Só até este versículo e precisamente no centro desta seção do ensino, Jesus revela que os ramos são os discípulos (ainda que se pressuponha nos anteriores), pois o tema agora é a dinâmica da vida cristã, isto é, o discipulado. O que fica claro agora é que a dinâmica do discipulado é a da construção progressiva, cada vez mais funda e forte, da “comunhão” com Jesus. Eis o segredo da fecundidade espiritual e apostólica.

Qualquer tentativa de chegar a algum lugar prescindindo de Jesus destina-se ao fracasso. Sem Jesus um discípulo não pode fazer nada, está perdido no mundo, sem identidade nem missão. Assim, deve tratar de estar unido a Ele o mais estreita e solidamente possível. E esta necessidade está motivada também pelo fato de que Deus pôs todo seu interesse em que os discípulos dêem o máximo deles e, assim, dêem frutos de vida ao mundo (v.2).

Um discípulo de Jesus que não tem como ponto de partida de tudo o que faz, realiza um seguimento vazio e abstrato, vive uma espiritualidade vazia e uma piedade dupla que é cumpridora (e da boa aparência), porém que consiste em sair-se sempre com a sua.

2ª cara da moeda: “O que permanece em mim e Eu nele, esse dá muito fruto”

O ponto principal não é o mal que ocorre ao discípulo separado de Cristo, mas o grande mistério que encerra sua comunhão com Jesus: “permanecem” um no outro. Este é o cume da experiência bíblica da “Aliança”: “Eu serei vosso Deus e vós meu povo”. Só que a experiência da Aliança dá um passo adiante. Já não é o estar junto um junto com o outro, mas um no outro, ou seja, uma relação idêntica à de Jesus com o Pai: “O Pai permanece em mim… Eu estou no Pai e o Pai em mim” (14,10-11).

Isto se traduz na vida diária num tremendo sentido da presença de Jesus em nossa vida, na tomada de consciência contínua do que Jesus está operando em e através de nós e na paciência e docilidade para deixar-nos conduzir por Ele. Este é o exercício do “ele em mim e eu nele”. A oração e a vida diária do discípulo devem estar impregnadas deste exercício.

  • Frutos da comunhão com Jesus: Oração, Discipulado e Missão (vv.6-8)

Por isso chamamos “Os frutos da comunhão com Jesus” ou “o gozo de Deus Pai” (oração eficaz, discipulado e missão de alta qualidade). Com duas condicionais (“se alguém… então”) e uma frase conclusiva (“A glória do Pai consiste em…”) conclui-se nosso texto. Aqui se responde à pergunta: Que resulta da comunhão com Jesus? Ou seja, que esperar de um discípulo de Jesus, que seja, que viva e que faça no mundo de hoje?

Temos aqui uma bela síntese de todos os versículos anteriores, cujos ensinamentos se projetam agora na vida diária. Para enfatizar as consequências da comunhão com Jesus, se apresentam de novo as duas caras da moeda que vimos anteriormente.

  •  Fora da comunhão com Jesus: “Se alguém não permanece em mim…”

De novo a primeira obra do Pai é remover os ramos que não produzem fruto (ver de novo o v.2a): o Pai os “lança fora” e eles “secam”. Os que parecem ser discípulos, mas não são, submetidos ao juízo que Jesus descreve com esta comparação: “Recolhem-os”, “Lançam ao fogo”, “Ardem”.

Isto nos recorda outras passagens dos outros evangelhos como por exemplo Mt 25,41-46. Não é que Deus queira nos fazer mal. É cada pessoa que faz mal a si mesmo com uma má orientação e consciente de seu projeto de vida. O destino final não faz senão confirmar o que cada um construiu ao longo de sua história. Como se diz, “tirou sua vida “não deu com nada”, o final é o resultado da própria contradição.

Enfatizemos: Do dar fruto, ou não, depende o destino pessoal. Jesus não nos chamou para ter com Ele uma amizade individualista (piedade privada), nos destinou para comprometer-nos com o mundo que nos rodeia, um mundo onde, por muitas razões, há ramos secos que esperam que façamos a obra vivificadora e potencializadora do crescimento característico do Pai e Jesus. De nosso compromisso com a vida dos outros depende nosso destino.

(2) Dentro da comunhão com Jesus: “Se permaneceis em mim e minha palavra em vós”.

Quando se vive em comunhão (radical, constante, progressiva, interativa e produtiva) com Jesus, se vêem os frutos que evidenciam um discipulado intenso. Os frutos constituem o critério último da vida espiritual. E os frutos (os suculentos cachos de uva que provêm desta fecunda videira) não são abstratos: trata-se da vivência do que Jesus disse em seus ensinamentos, ou seja, vêem da obediência à Palavra. Por isso substitui o “eu permaneço nele” pela frase “minhas palavras permanecem em vós” (v.7ª).

Isto explica Jesus mais adiante: “Se guardais meus mandamentos permaneceis em meu amor (15,10). O que Jesus pede que se faça é “amar-se uns aos outros como Ele nos amou na Cruz”, isto é, amar e perdoar, submergir-se no abandono confiado ao Pai, entregar-se incondicionalmente no serviço e na missão dando a própria vida.

O primeiro grande fruto: a oração eficaz

Em uma vida comprometida deste modo (sobre esta base da relação justa e amorosa com os demais) a oração (a petição: o que se espera de Deus) se torna eficaz: “Pedi o que queirais e o conseguireis” (v.7b). Ou seja, os esforços que estamos esperando realizar alcançam seus gozos. E isto porque nossa vida está em sintonia com o querer de Deus. A eficácia da oração está condicionada ao plano de Deus, um plano que conhece quem está em comunhão de vida com Jesus. Isto significa:

(1) viver o que Jesus nos prometeu em sua Boa Notícia, e

(2) realizar a sua obra no mundo.

Aprofundemos:

(1) Notemos que no texto Jesus disse “minhas palavras” não utiliza o termo grego “logos”, que indica a Bíblia inteira, senão “rhema”, que indica as promessas específicas de Jesus. Isto é precisamente o que há que pedir. Não esqueçamos que a oração e a Palavra de Deus andam juntas: a Palavra nos descreve o amplo quadro da obra de Deus no mundo, o que Ele faz para nossa salvação, para nossa plenitude como criaturas suas. Isto é o que nos oferece como promessa. A oração não é um modo de arrancar de Deus o que quero que Ele faça, mas pedir que faça o que prometeu. Por isso se deve orar em sintonia com a Palavra: “Se minhas palavras… pedido… o conseguireis”.

(2) Às vezes pode levar algum tempo, porém certamente o fará. Se considerarmos o contexto do discurso de despedida de Jesus (Jo 14-16) veremos também que quando Ele fala da oração não se refere a qualquer pedido. Constantemente se refere à oração que implora a fecundidade da missão (que do começo ao final é a obra transformadora do mundo). Leiamos Jo 14,12-14. Uma vez mais fica claro que a fecundidade de evangelização (e todo esforço por transformar o mundo) depende em última instância da comunhão com Jesus e da obra do Pai.

O segundo grande fruto: o glorificante testemunho que atrai ao mundo

O texto conclui com a frase: “A glória de meu Pai está em que deis muito fruto, e sejais meus discípulos” (v.8).

Poderíamos dizer que aqui está a síntese de todos os ensinamentos. Iniciou-se com a obra do Pai (uma espécie de novo gêneses na vida pascal do cristão, como se diz no v.2: “Meu Pai é o vinhateiro” que trabalha pela vinha “para que dê mais fruto”) e termina com a “glória do Pai”, na plenitude da vida (ver o v.6 se refere ao final dos tempos). O Pai está na origem e no cume de tudo.

Um discípulo dá “glória” ao Pai, ou seja, revela sua verdadeira realidade de Pai gerador de vida.

O modo de evidenciá-lo é:

(1) Vivendo em comunhão com Jesus, que é plenitude de vida, na dinâmica do discipulado,

(2) Convertendo-se num valente apóstolo que leva frutos de vida por onde quer que vá.

Notemos que há um “para dentro” e um “para fora”, na dinâmica do homem novo criado por Deus. Os dois aspectos vão juntos e configuram uma vida de glorificante testemunho. Pelo estilo de vida dos discípulos, pelo gozo, o amor e a paz que irradiam – que são os dons pascais de Jesus – por seu compromisso concreto a favor da vida no mundo, os discípulos atraem muita gente para esta nova experiência de Deus.

É nesta fecundidade missionária que faz do mundo a vinha – o jardim da vida – que Deus sempre quis, “o Pai é glorificado”, quer dizer, é reconhecido e acolhido pelo mundo todo como Pai gerador de vida.

3. Releiamos nossa vida: a dolorosa incorporação a Cristo

A parábola da videira (Jo 15,1-8) que lemos neste quinto domingo de Páscoa nos levou a considerar atentamente o que se anunciou domingo passado como obra principal de Jesus Bom Pastor: “Ele dá a vida”, “Ele nos vivifica dando-nos sua própria vida”. Uma vez que lemos o texto completo, quase palavra por palavra, poderíamos deter-nos tranquilamente na obra pascal descrita na parábola contada por Jesus.

Na Páscoa somos incorporados, batismalmente, na pessoa de Jesus, morrendo e ressuscitando com Ele. Para o evangelho de João esta incorporação pode ser entendida se nos fixamos na comparação tomada do mundo agrícola palestino. A Páscoa de Jesus faz possível no mundo o jardim da vida, da vida abundante e com qualidade, que é o jardim do amor (Jo 15,9), da alegria (15,11) e da paz (14,27). Mas este jardim brota na Cruz, onde Jesus deu sua própria vida ao mundo.

Como aparece a cruz vivificadora na passagem de hoje? No v.2, onde disse que o sarmento é trabalhado dolorosamente pelo vinhateiro. Fala-se de “cortar” e de “podar”. Em Jo 3,16-18, do qual fizemos a “Lectio” no tempo da quaresma passada, vimos que a Cruz era juízo para quem não a acolhia (“Já está julgado porque não acreditou”, Jo 3,18), porém que Deus apostou tudo nela pela salvação: “não enviou seu Filho para julgar o mundo mas para que o mundo seja salvo por Ele” (Jo 3,17). Notemos as correspondências entre as duas passagens. Porém, hoje temos a oportunidade de ir além, no caso do crente: Deus intervém em nossa vida com a Cruz e a Cruz é salvífica.

Quando Deus intervêm em nossa vida com a Cruz, não quer dizer que esteja raivoso conosco, nem que nos esteja castigando. Trata-se do contrário. Claro que se pergunta: “Por que o vinhateiro poda os ramos e o “faz chorar”, como costumamos dizer? Por uma razão muito simples: se não há poda, a videira se desperdiça, se colherão más uvas, ao melhor tem mais quantidade, porém se perde qualidade posto que nem todas chegam à maduração, e isto baixa a gradação ao vinho. Recordemos que quando uma videira permanece muito tempo sem que a podem, começa a ter uma aparência selvagem e somente produz cachos de uvas silvestres, pequenas e amargas, de má qualidade. O mesmo acontece com nossa vida.

Vejamos com um exemplo concreto: Viver é optar continuamente e toda opção implica uma renúncia. Uma pessoa que na vida quer fazer muitas coisas ao mesmo tempo, termina dispersa, não dá excelência em seus assuntos. Dai que é preciso “podar”, isto é, ter a coragem de tomar decisões deixando de lado alguns interesses secundários para concentrar-se em alguns prioritários. E isto vale, também, para outros âmbitos da vida, como por exemplo, determinados hábitos que causam dano a nós ou a outros.

É assim como se modela nossa vida de discípulos, como Jesus se forma em nós, como somos cristificados pascalmente. A santidade se parece a uma escultura. Leonardo da Vinci definiu a escultura como “a arte de tirar da pedra o que lhe sobra”. Todas as demais artes consistem em agregar algo: a tinta se junta à tela na pintura, a pedra se junta a outra pedra na arquitetura, uma nota se agrega a outra no caso da música. Mas no caso da escultura o que se faz é tirar em lugar de agregar: ao bloco de mármore se tira com o cinzel e o martelo tudo aquilo que lhe sobra para que apareça a figura que o escultor tem na cabeça. Também a perfeição, a maturidade cristã se obtém assim: podando as partes inúteis, quer dizer, os desejos, as ambições, os projetos e as tendências internas que nos dispersam do objetivo central da vida e não nos permitem realizar-nos de verdade.

Vou dar-lhes outro exemplo: Um dia, Miguel’angelo, passeando num jardim de Florência, viu de longe, um bloco de mármore na terra que estava meio coberto de erva e lama. De repente se deteve, como se tivesse visto alguém conhecido e dirigindo-se aos amigos que o acompanhavam lhes disse: “Dentro daquele bloco de mármore está um anjo, devo tirá-lo”. E armando-se de um cinzel começou a arrancar pedaços de pedra daquele grande bloco até que foi emergindo, pouco a pouco, a figura de um anjo.

Também Deus nos olha e nos vê assim: como blocos de pedra disformes, mas com uma grande potencialidade, e diz: “Ai dentro está escondido um homem novo que espera que o dê à luz; e mais, está escondida a imagem de meu próprio Filho, quero tirá-la”. E então, que faz? Toma o cinzel que é a Cruz e começa a trabalhar. Toma as tesouras do vinhateiro, que é a cruz, e começa a podar. Não devemos pôr-nos a buscar que cruzes podem nos santificar mais, isso não acrescenta nada a vida. Ela, por si só, já nos apresenta sua carga de sofrimento, de peso e de tribulações. Mas Deus sabe aproveitar isso mesmo para nossa purificação e para fazer brotar o homem novo que criou em nosso interior. Isto é o que o Pai quer, o que mais deseja de nossa vida, o que lhe dá glória: que demos muito fruto e que cheguemos a ser de verdade discípulos de Jesus (v.8). Deus quer que brote a vida, que desenvolva todas as potencialidades de nossa existência, e para isso temos que permanecer unidos a Jesus.

Deus Pai tem muitos caminhos para levar-nos a uma união mais profunda com Jesus, para que possamos viver a intensidade e a graça de sua vida ressuscitada. O que Deus quer é nossa felicidade, nossa integridade, nossa santidade. Não quer que fiquemos admirados (com os cachos de uva que não foram convenientemente trabalhados) mas que nosso projeto de vida tenha êxito, que se reflita em nosso rosto a beleza da vida, a beleza da personalidade cristã, não tristeza, mas serenidade, ou seja, a beleza de Deus.

  1. Releiamos o Evangelho com um Padre da Igreja

“O Senhor disse que Ele mesmo é a Videira, e que somos como as varas que dela brotam. De fato, fomos gerados a partir dele e nele, no Espírito Santo, para dar frutos de vida, porém de uma vida nova que consiste essencialmente no amor operante para com Ele. Antes dávamos frutos murchos de uma vida decadente. Somos, pois, conservados no ser, inseridos de alguma maneira nele, se nos mantemos presos tenazmente a seus santos mandamentos que nos foram dados, se pomos todo nosso empenho em conservar o grau de nobreza conseguido, e se não permitimos que seja entristecido o Espírito Santo que habita em nós, aquele espírito que nos revela o sentido da habitação divina.A maneira como estamos em Cristo e Ele em nós, nos explica São João: “Por isto se conhece que permanecemos nele e Ele em nós: pelo Espírito que nos concedeu” (1 Jo 3,24; ver 4,13). Tal como a raíz transmite às ramas as qualidades e a condição de sua natureza, assim o Verbo Unigênito de Deus concede aos homens, e sobretudo àqueles que estão unidos a Ele por meio da fé, seu Espírito…”. (San Cirilo de Alejandría, In Io. ev., lib. 10,2)

  • Cultivemos a semente da Palavra na vida:
  • Como “toma corpo” em nós o mistério pascal? Como nos vivifica o Pai do Ressuscitado?
  • Se a vida pascal é um processo dinâmico, forte e frágil, que fazer para que esta em nós se desenvolva?
  • Que frutos se esperam de nós que vivemos a experiência pascal? Em que base se edificam a vida de oração, a vida comunitária e o apostolado? Que rosto de Deus se revela no mistério pascal?
  • Releiamos à “luz” da Palavra as profundidades de nossa própria vida: é um ramo seco ou vivente? Que potencialidades descubro que ainda não desenvolvi? Como me tem purificado o Senhor nos últimos tempos? Como se tem dado a Cruz-Pascal em minha vida? Tenho resistido ou tenho me aberto?
  • Que meios me ajudam a manter a união viva a Jesus? (a Lectio Divina e Oração Pessoal, os Sacramentos, os compromissos apostólicos, etc.). Que decisões (“arrancar ou “podar” definitivamente”) descubro que devo tomar a partir da “Lectio” deste Evangelho?

Autor: Pe. Fidel Oñoro, cjm

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