O Corpo e o Sangue de Cristo (Estudo Bíblico)

Lucas 9,11b-17

Introdução

Depois de celebrar duas solenidades de “comunhão”: a comunhão eclesial suscitada pelo Espírito a partir de Pentecostes e a comunhão trinitária como vértice, modelo e fundamento da comunhão eclesial, celebramos, hoje, a comunhão eucarística com Jesus.

Esta celebração do “Corpo e Sangue do Senhor”, também chamada de “Corpus Christi” (ou “Corpus Domini”, do “Corpo do Senhor”), nos situa, uma vez mais, no plano da amizade com Jesus e nos convida a tomar consciência do fato que esta amizade tem uma dimensão sacramental que se realiza no mistério Eucarístico, que o mesmo Jesus instituiu.

Foi Jesus mesmo quem disse de que maneira permaneceria em meio de seus discípulos e como continuaria a comunhão começada no discipulado dos caminhos da Galiléia, o qual teve seu cume no amor total expressado pelo Mestre com os braços abertos na Cruz. Por isso, em nossa celebração de hoje, fazemos, também, uma profunda confissão de fé e agradecemos o imenso tesouro que Jesus pôs em nossas mãos.

Com o Papa Benedicto XVI dizemos: “Sacramento da caridade, a Santíssima Eucaristia é o dom que Cristo faz de si mesmo, revelando-nos o amor infinito de Deus por cada homem. Neste admirável sacramento se manifesta o amor “maior”, aquele que leva a “dar a vida pelos próprios amigos” (cf. Jo 15, 13)… No Sacramento eucarístico Jesus segue amando-nos “até ao extremo” até o dom de seu corpo e de seu sangue. Que emoção deve ter tomado o coração dos Apóstolos ante os gestos e palavras do Senhor durante aquela Ceia! Que admiração há de suscitar também em nosso coração o Mistério eucarístico!” (Sacramentum Caritaris, 1)

Cada ano, um dos evangelhos nos ajuda a aprofundar no mistério eucarístico desde sua própria perspectiva teológica e catequética. Assim, à luz da mesma Palavra do Senhor, vamos entendendo aos poucos o fundamento e as implicações da “comunhão” com Jesus Cristo significada na Eucaristia, a celebramos agradecidos e nos comprometemos com ela. Este ano o fazemos com São Lucas.

  1. O horizonte espiritual de Lucas: A comunidade de Jesus encontra sua identidade na Eucaristia

A importância e a centralidade da celebração Eucarística se percebem, claramente, na ênfase que o evangelista Lucas faz dela: instituída pelo mesmo Jesus na Última Ceia, a celebração gozosa da mesa do pão partido e o cálice compartilhado, em um ambiente gozoso, pelos discípulos de Jesus, é a resposta ao mandato de Jesus: “Fazei isto em memória de mim” (Lc 22,19).

Depois da Ascensão de Jesus, a comunidade dos discípulos se une através da Ceia com Jesus Ressuscitado, que está presente na Eucaristia, e assim cumpre seu mandato. Assim os vemos, por exemplo, em Atos 20,7, onde “no primeiro dia da semana” (o domingo), Paulo partilha, com a comunidade de Trôade a Eucaristia: “estando reunidos para a Fração do Pão”.

Voltando às origens da Igreja, ao comportamento cotidiano da Igreja “mãe” de Jerusalém, vemos que os cristãos buscavam assiduamente ao ensinamento dos apóstolos, à comunhão, à fração do pão e às orações” (At 2,42) e também que “partiam o pão pelas casas e tomavam o alimento com alegria e simplicidade de coração” (2,46b).

Se a comunidade faz da mesa partilhada costume identificável e identificador é porque esta provém do próprio Jesus. O Mestre, como nos mostra o evangelho de Lucas, se reunia, com freqüência, com diversas pessoas em torno à mesa ao longo de sua missão. No oriente antigo (e também no moderno) as comidas eram expressão de convivência, de paz, de alegria, de confiança mutua e de comunhão; em torno à mesa se teciam e tecem as relações comunitárias.

No evangelho lemos seis passagens de banquetes que são particularmente significativas, e isto sem contar com as parábolas e ditos de Jesus nos quais o tema se reforça. Os seis banquetes se realizam:

(1) com pecadores (Lc 5,29-32; e há um resumo em 15,1-2);

(2) com o fariseu Simão (7,36-50; ali perdoa à adultera);

(3) com suas amigas Marta e Maria (10,38-42);

(4) com um grupo de fariseus e legistas (11,37-53);

(5) com um dos chefes dos fariseus (14,1-24); e

(6) a muito significativa a cena com um povo inteiro (9,12-17; este relato é o que lemos neste domingo).

Nota-se que a mesa é o cenário mais frequente e importante do ensinamento de Jesus. Seus adversários o criticam: “Aí tendes um comilão e um beberrão” (7,34).

O fato de que Jesus partilhe estes banquetes: com marginalizados, com publicanos, pecadores e mulheres; tanto com seus amigos como com seus inimigos; em privado, mas também em público; com uns poucos, porém, que também amplie sua mesa a todo um povo; Tudo isso nos mostra que o Reino de Deus está aberto para todos: na mesa com Jesus se faz a experiência do Reino que começa aqui e se consuma na comunhão eterna com Deus (ver Lc 22,16.18);

Em especial, o fato que os relatos da multiplicação dos pães (9,12-17) e da ceia em Emaus (24,28-32), façam eco ao relato da Ultima Ceia (22,19-20), na qual Jesus expressa o sentido último de sua missão. Não é senão ver como se repetem (se bem com alguma ligeira variante) os mesmos quatro verbos eucarísticos: “tomar” (o pão), “dar graças”, “partir” e “dar”.

Em torno destes movimentos se proclama a dupla verdade da Eucaristia:

(1) que Jesus está ali presente: Ele se identifica com o pão e o vinho, fazendo-os seu Corpo entregue e seu Sangue derramado por amor na Cruz;

(2) que na comunhão com seu Corpo e com seu Sangue, Jesus convida aos seus discípulos a selar com Ele uma nova Aliança (Nova Aliança em meu Sangue”, 22,20), um novo modo de ser comunidade a partir da imensa e sólida comunhão com sua Pessoa e sua Missão. 

Neste contexto amplo, podemos dizer que o relato da multiplicação dos pães, relato com sabor eucarístico, mesa de Jesus em meio de seu ministério, é a mesa do Messias, a mesa da esperança. Aprofundemos no relato de Lucas 9,11-17. Porém primeiro façamos sua leitura.

  • O contexto da multiplicação dos pães: (vv.10-11)

Observemos atentos quatro dados iniciais desta bela passagem. Estes são chaves para captar a profundidade das ações de Jesus com os pães e os peixes a favor da multidão.

  •  O regresso da missão

No começo o evangelista nos faz uma ambientação do lugar: depois que os apóstolos regressam da missão, Jesus se vai a sós com eles a Betsaida (Lc 9,10); ao contrario do relato que conhecemos em Marcos, Jesus vai em busca do mundo urbano.

(2) O lugar desabitado

Mas, se o milagre vai ocorrer em “um lugar desabitado” (9,12), a menção de Betsaida coloca num mesmo contexto, o milagre da multiplicação dos pães e a confissão de fé de Pedro. De fato: o reconhecimento que o Apóstolo faz de Jesus como Messias ou “Cristo de Deus” (9,20) provém, finalmente, da compreensão do sentido deste milagre revelador da identidade do Mestre. Embora nesta cidade, tenha se dado a antecipação, também se dará um forte desprezo de Jesus (ver 10,13); Ele é “sinal de contradição” (2,34).

(3) O encontro com Jesus

A cena está construída de uma forma curiosa: é como se chegassem os convidados. Jesus não está escondendo-se da multidão (ver Mc 6,31), melhor, a está esperando e se dedica a acolhê-la, a recebê-la bem. Vejamos como no inicio há ai uma inversão de papéis. O Evangelho nos ensina que são as pessoas que buscam Jesus: “quando retornou Jesus, recebeu a multidão, porque todos estavam à sua espera” (8,40).

O mesmo parece ocorrer, agora, nos arredores de Betânia: o cenário começa a povoar-se com multidões que “sabem” onde está Jesus e “o seguem” (9,11ª). Mas admira que, esta vez seja Jesus quem acolhe: “Acolhendo-as, falava-lhes do Reino de Deus e curava os que tinham necessidade de ser curados” (9,11b).

A atenção concentra-se nestes dois aspectos: (a) A acolhida que Jesus oferece às pessoas: “Acolhendo-as”; e (b) A pregação do Reino de Deus: “Falava-lhes do Reino de Deus”. Aqui está a palavra-chave de todo o relato. Como se mostrará em seguida, alimentar à multidão faminta não significa somente buscar-lhe a comida, mas que é o ponto de partida para introduzir seu ensinamento sobre qual é o significado do Reino de Deus.

(4) Os dois primeiros dons de Jesus

Jesus oferece o dom da sua palavra e a saúde. O ensinamento parece ser extenso (“falava-lhe…”). O tema é o mesmo que os Apóstolos pregaram na missão que tinha acabado de terminar (ver 9,2: “enviou-os a proclamar o Reino de Deus e a curar”).

As curas – também em tempo prolongado, “curados” – são sinais concretos do acontecer do Reino, são para aqueles que têm “necessidade”, já tinha dito Jesus: “não necessitam médico os que estão com saúde, mas os doentes” (5,31).

Todo o ministério de cura de uma humanidade prostrada pela dor – em todos os sentidos, que vem sendo apresentado desde o capítulo cinco do presente Evangelho, parece resumir-se aqui.

Ao responder explicitamente a “necessidade” de pessoas, Jesus se coloca à frente de todo um povo como um “servidor”, e o que vem em seguida está coerente com isso:“Qual é, então, o administrador fiel e prudente que senhor constituirá sobre o seu pessoal para dar em tempo oportuno, a ração de trigo?” (12,42).

3. O cume do serviço de Jesus: o terceiro dom

Veja agora, o Messias revelador e realizador da definitiva obra salvífica de Deus em ação.

3.1. Uma nova necessidade e uma nova solução: (vv.12-14ª)

(1) Uma nova necessidade: 9,12

A missão de Jesus com a multidão se estende até o fim do dia (9,12a). Aparecem, então, duas novas necessidades que os apóstolos se encarregam de colocar: (1) a hospedagem; e (2) a comida. Os dois termos caracterizam a “hospedagem” completa (tema que agrada muito a Lucas: ver Marta e Maria, Zaqueu, discípulos de Emaús, etc.). Como se diz explicitamente, as cidades vizinhas o poderiam prover (9,12b).

(2) Uma nova solução: (vv.13-14ª)

Jesus pede então aos Apóstolos para resolver o caso: Dai-lhes vós mesmo de comer(9, 13a). Descartada a primeira solução, “despachar as pessoas” (9,12), a resposta dos apóstolos supõe duas alternativas: (1) dar do que têm agora; ou (2) ir à cidade para fazer a compra.

A primeira alternativa é a mais pobre “Não temos mais que cinco pães e dois peixes” (9,13b) para uma multidão de “aproximadamente cinco mil homens” (9,14a). Jesus, então, de novo, se põe à frente da situação (9,14b-16). Mas a iniciativa de Jesus não faz mais que por em primeiro plano o serviço dos discípulos. Eles: (1) Acomodam as pessoas: respondendo, assim, à necessidade de acolhida-hospedagem; e (2) Servem a comida: respondendo, pois, à necessidade de alimento do povo. Poder-se-ia dizer ainda que soa redundante, que os apóstolos, como totalidade de Doze (=comunidade apostólica), se põem a serviço do serviço de Jesus.

3.2. Jesus servidor da mesa e formador da comunidade

  •  A multidão é acomodada na mesa (vv.14b-15)

Os apóstolos obedecem de modo pontual. Disse Jesus: “Fazei que se acomodem em grupos de cinquenta” (9,14). Os apóstolos agem prontamente: “E assim fizeram acomodar-se todos” (9,15). Mesmo que seja o povo, em última instância, que obedece ao mandato de Jesus, é importante realçar, aqui, a ação dos Apóstolos:

  • Sua tarefa corresponde a um gesto profundo de acolhida: o verbo “acomodar” (em grego “reclinar”, no sentido de “pôr-se à mesa”) é o mesmo que aparece no relato da Ceia em Emaús, onde se diz que Jesus “pôs-se à mesa” com os dois peregrinos que acabavam de receber a Palavra no caminho (24,30). Assim, “acomodar” alude ao acolher na mais profunda intimidade de uma família: a mesa.
  • A finalidade é “formar comunidade”: este é o sentido da frase em grego. O número “cinquenta” (não interessa a exatidão da medida), por cada grupo, parece querer evitar a massificação e promover a integração. Que imagem tão bela de comunidade!
  • Procuram fazer com que ninguém fique sem ser acolhido: “a todos”. A comunidade de mesa é um espaço que “inclui”, sem exceções.

Assim Jesus faz de uma multidão anônima, da massa, um verdadeiro povo, o “povo” querido por Deus.

  •  A multidão recebe o alimento e fica satisfeita (vv.16-17)

“E tomando os cinco pães e os dois peixes, Ele …. Jesus segue sendo o protagonista da ação. Comporta-se como um anfitrião com seus ilustres hóspedes ou como um pai de família quando se senta à mesa com toda a família: normalmente se coloca à cabeceira da mesa, dá início à ceia com uma oração e toma a iniciativa na distribuição dos alimentos. Parece um eco de Lc 22,27: “Eu estou no meio de vós como o que serve”.

O texto não omite nenhum detalhe essencial sobre o modo como se realiza a ceia. Cada um dos verbos nos recorda a Última Ceia de Jesus com seus discípulos, mas aqui é preciso esclarecer que Jesus não pronuncia as palavras que identificam o pão com seu Corpo.

Chama a atenção o gesto de Jesus que “levanta os olhos ao céu”, o qual se refere, evidentemente, a uma atitude de oração, porém, que não é comum entre os judeus; com este detalhe Lucas põe de relevo o ambiente oracional da cena.

Notemos as ações solenes: (a) “tomar” os pães e os peixes, com o qual se dá começo oficial à ceia; (b) “bendizer” a Deus pelo alimento (na Última Ceia é “agradecer”); (c) “partir”, faz pedaços dos pães e peixes enquanto está pensando em alimentar todos; e (d) “dar” aos discípulos, de modo que ponham cada bocado nas mãos da multidão.

Este momento cume da cena quer mostrar a capacidade que Jesus tem para solucionar as necessidades fundamentais de seu povo e no fato de que o pode fazer “para a satisfação total” e “para todos”. Notemos como num primeiro momento se havia dito que “todos” (9,15b) foram acolhidos à mesa, e como agora se enfatiza o fato de que “Comeram todos até saciar-se” (9,17ª).

Por sua parte os apóstolos aparecem como aqueles que são capazes – graças a Jesus – de fazer pelo povo o que o povo não poderia fazer por si mesmo (ver de novo o v.12): este é o sentido de sua liderança no serviço.          O papel assumido pelos apóstolos aparece destacado na frase final, segundo a qual cada um dos Doze parece portar um cesta durante o recolhimento das sobras (ver 9,17b).

4. Um final aberto

Ao final do texto não se diz o que se passou depois com a multidão. Porém, sim sabemos que se passou com os discípulos de Jesus: foram interrogados sobre a identidade de Jesus. A resposta de Pedro deixa entender que alguém que oferece o pão desta maneira não pode ser outro senão o Messias (9,20).

De fato, não se deve perder de vista que o milagre realizou-se, antes de mais nada, aos olhos dos apóstolos. O que deu o pão deste modo – formando um povo – comunidade que acolhe e participa a todos o dom da vida – é o mesmo que deu a si mesmo na morte por muitos e que continua presente, com seus discípulos, cada vez que repetem o gesto da “Fração do Pão”. Então se repete todo o itinerário que vimos aqui. 

Cultivemos a semente da Palavra no profundo do coração

  1. Que significado tinha o partilhar a mesa no oriente antigo? Nossas reuniões ao redor da mesa para partilhar o pão têm o mesmo significado hoje?
  2. Jesus partilha a mesa com todo tipo de pessoas. Esta atitude, que me dá a entender sobre a experiência do Reino de Deus? A que compromisso concreto me chama?
  3. Jesus se põe frente ao povo como “servidor”, quer dizer sai ao encontro das necessidades das pessoas. Quais são as características que distinguem um “discípulo-servidor” ao estilo de Jesus?
  4. Quais os traços de uma comunidade (família, grupo) que – como a dos apóstolos- se põe a serviço de Jesus para dar soluções concretas às necessidades (acolhida, pão…) que tem as pessoas hoje?
  5. “Tomar”, “bendizer”, “partir”, “dar”. Todas estas ações solenes as realiza Jesus. Concretamente, em nossa família/comunidade, como vivemos e podemos viver estas ações que viveu Jesus?

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