Deus não precisa de defesa (EFC)
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Lucas 9,51-56
A HORA DA DECISÃO DE JESUS
“Quando se iam cumprindo os dias de sua assunção, Ele se afirmou em sua vontade de ir a Jerusalém”
Em Lucas 9,20-22, foi apresentado o horizonte dentro do qual Jesus realiza sua missão como “Messias” que leva a cabo o projeto salvífico “de Deus”. Este panorama delineou a rota dentro da qual o discípulo realiza seu projeto de vida (9,23-24).
No texto de hoje vemos como Jesus abraça seu caminho definitivo, com uma grande resolução interior. Com esta atitude começa a subir para Jerusalém, onde percorrerá o último e decisivo trecho de seu “êxodo” (9,51), que culminará em sua ascensão ao céu.
O Evangelho nos põe hoje de frente com “a hora” dos acontecimentos decisivos.
- Para Jesus, é o tempo do “cumprimento”, segundo o projeto messiânico fixado pelo Pai. Nada, nem ninguém o poderá deter. Nem a hostilidade dos samaritanos, nem a pobreza, nem o pai que tem que sepultar, nem os parentes dos quais deve despedir-se, são suficientes para “olhar atrás”.
- Para o discípulo é o tempo de avaliar previamente o “custo” do ser discípulo, analisando as implicações da opção e decidindo livre e conscientemente entrar no caminho do mestre sem impor-lhe condições.
O que vale para o Mestre também vale para o discípulo: o caminho do discipulado requer decisões assim de fortes. O seguimento do Mestre na rota para Jerusalém leva a marca da radicalidade e da hierarquia de valores de Jesus.Abordemos o texto em suas duas partes:
- A hora da decisão de Jesus (v.51);
- O fracasso em Samaria (vv.52-56).
- A hora da decisão de Jesus: começa o caminho da subida para Jerusalém (v.51)
Jesus sabe fechar e abrir etapas em sua vida. Assim o vemos terminar a primeira parte de sua missão na região montanhosa, marítima e sempre verde da Galileia (Lc 5,1–9-50) e abrir-se uma nova página com estas palavras: “Quando se completaram os dias de sua ascensão, ele tomou resolutamente o caminho de Jerusalém” (v.51).
Vejamos três elementos chaves inseridos nesta frase lucana: (a) a realização do plano de Deus; (b) o interesse por Jerusalém; e (c) a tomada de decisão.
- A realização do plano de Deus: O indicador deste giro decisivo no ministério de Jesus é o “cumprimento dos dias de sua ascensão”. Observemos que não se trata de uma decisão tomada rapidamente:
- Já, por duas vezes, Jesus havia anunciado a segunda parte de seu programa missionário nos, assim chamados, “anúncios da paixão” (9,22 e 9,44-45); e;
- A referência que Jesus tem é o tempo estabelecido pelo Pai. Este tempo vai chegando a seu fim. Jesus quer cumprir sua passagem pontualmente.
- O interesse por Jerusalém: O olhar está posto em Jerusalém: “se firmou em sua vontade de ir a Jerusalém”. Jesus sabe o que o espera: “não convém que um profeta morra fora de Jerusalém” (13,33). Daqui em diante Jerusalém permanecerá na mira dos movimentos de Jesus.
- A tomada de decisão: Lucas nos apresenta a tomada de decisão de Jesus com uma frase que, à primeira vista, parece enigmática, mas, na realidade, é bela e de grande profundidade: “tomou resolutamente o caminho”.
Ante o fatídico destino, Jesus toma uma decisão radical: sai Galileia e se dirige a Jerusalém. A iniciativa é d’Ele: Jesus escolhe o caminho do Pai. Para nós já é muito se aceitamos o destino que se aproxima e não podemos evitar. Jesus, ao contrário, avança decidido para seu destino. É assim como a frase “tomou resolutamente o caminho de …” (=“endureceu o rosto”, em grego) descreve o impulso de uma forte decisão.
Algumas imagens de fundo, no Antigo Testamento, nos permitem compreender a transcendência do gesto de Jesus. Esta expressão, de “forte decisão”, a vemos na valentia do Rei de Aram, quando avança contra a cidade santa para a guerra: “resolveu subir para atacar Jerusalém” (2 Rs 12,18). O mesmo se diz, também, do “Servo Sofredor de Yahweh”, profetizado por Isaias, mas desta vez, na atitude teimosa e defensiva de quem não cede, apesar da adversidade: “Fiz de meu rosto uma pederneira, e tenho a certeza de que não serei confundido” (50,7).
Os dois aspectos contidos nas citações anteriores parecem estar presentes na frase tomada por Lucas e aplicada a Jesus: “endureceu o rosto”. Jesus com uma grande fortaleza enfrenta seu destino, se compromete e toma decisões firmes. O que Jesus vai a fazer é o prelúdio de sua morte, que será, para nós, o prelúdio da vida. Isto mesmo vai pedir a seus seguidores para fazer em seguida.
- O caminho começa mal: em Samaria não o recebem (vv.52-56);
Para chegar a Jerusalém, descendo desde o norte da Galileia, o caminho mais direto passava por Samaria. Porém, a maior parte dos judeus evitava esta rota. Havia uma inimizade de séculos entre judeus e samaritanos (ver Jo 4,9). Por intolerância religiosa e motivos nacionalistas, os samaritanos procuravam aborrecer os viajantes, inclusive atacavam aos grupos de peregrinos que cruzavam seu território em caravanas.
- A hospitalidade negada: Jesus se arrisca por esta rota. Não o faz só como uma pessoa que vai “de passagem”. A expressão “enviou mensageiros a sua frente” (9,52) indica que tem intenções missionárias (como se verá depois, nos Atos, aqui nascerão comunidades cristãs: 1,8; 8,4-8). Esta opção de Jesus, a mais perigosa, deixa entrever sua misericórdia: Jesus está oferecendo uma mão amiga a um povo inimigo. Porém, lhe é negada a hospitalidade. Não acolhem a missão nem a amizade de Jesus (9,53).
- A ira dos mensageiros: Assim como no primeiro dia de sua missão na Galiléia (ver Lc 4,16-30), também, aqui, fecham-lhe as portas, a rejeição anunciada iniciou. Os discípulos Tiago e João, chamados “filhos do trovão”, pela impetuosidade de seu temperamento (Mc 3,17), reagem violentamente, não compreendem o desdém dos samaritanos e reagem irados: “Senhor, queres que digamos que desça fogo do céu e os consuma?” (9,54). Pedem para arrasar, com fogo, essa cidade (gesto de maldição). Será este o modo de lidar com um fracasso? A atitude nos recorda o que fez o profeta Elias quando o malvado rei Ocozias mandou chamá-lo (2 Rs 1,10ss). Claro que essa foi uma estratégia de defesa.
- A lição de Jesus: Porém Jesus não permite, aos discípulos, que levem a cabo seus propósitos e pela segunda vez os repreende por sua intolerância e por sua violência (9,55; ver 9,49-50). É verdade que Jesus pede para ser acolhido, mas, também é verdade que deixa os homens em liberdade para acolhê-lo e não quer forçar ninguém. A má decisão dos samaritanos não pode ser castigada com medidas drásticas.
Aqui vemos uma consequência da decisão pelo caminho da Cruz: a rejeição que experimenta ao longo do caminho não o deixa amargurado; ao contrário, segue adiante firme (9,56; assim havia feito em 4,30 e assim farão, após, os missionários itinerantes, nas rejeições que lhes estão reservadas nas diversas cidades, cf. Atos). Assim, desde o primeiro passo na subida a Jerusalém, começa a paixão. Jesus sabe afrontar a violência que lhe vem ao encontro e não devolve na mesma moeda; o não submetê-los, imediatamente, à justiça de Deus já é um sinal de misericórdia e, o bom resultado desta decisão, se verá mais adiante (na evangelização de Samaria nos Atos dos Apóstolos).
Desde o princípio o discípulo aprende que “tomar a Cruz todos os dias” é saber passar os momentos amargos do desprezo com a maturidade de quem é capaz de afrontar com altivez as recusas, com amor ao adversário (ver 6,27). O que é livre de coração sabe respeitar também as decisões livres dos outros.