DOMINGO DA MISERICÓRDIA (Estudo Bíblico)

Domingo da Misericórdia Divina

João 20,19-31

A hora de Jesus

A Páscoa do Cordeiro de Deus

Introdução

Em uma das antigas exortações da liturgia greco-ortodoxa lemos:

“Esta é a Páscoa felicíssima, a Páscoa do Senhor, a Páscoa santíssima. Abracemo-nos mutuamente com alegria, já que ela veio remediar nossa tristeza… É hoje o dia da Ressurreição; resplandeçamos de gozo, abracemo-nos, chamemo-nos irmãos mesmo aos que nos odeiam, deponhamos toda classe de ressentimentos em atenção à Ressurreição do Senhor…”

A passagem do evangelho deste domingo, tomado de João, nos diz como se chega a esta alegria. Vamos explorar este e outros elementos da experiência pascal em um relato que é verdadeiramente grandioso: a aparição de Jesus ressuscitado a sua comunidade.

Efetivamente, trata-se de um relato que se desenvolve a partir de diversos itinerários internos:

(a) Do medo à alegria;

(b) Do ouvir ao experimentar;

(c) Do ver ao crer;

(d) Do receber ao dar;

(e) Do crer ao testemunhar

Tal é a progressão à qual o relato destas duas aparições de Jesus ressuscitado nos permite assistir.

Entremos no relato decantando seus elementos mais significativos

1. O primeiro domingo vai abrindo passagem

Na escuridão da madrugada Maria Madalena havia encontrado o sepulcro vazio (Jo 20,1).

Neste mesmo dia, Madalena havia se convertido, em duas ocasiões, em mensageira do acontecimento:

  • a primeira vez para informar sobre o tumulo vazio (20,2); 
  • a segunda, como enviada de Jesus ressuscitado, para anunciá-lo à comunidade e transmitir-lhes suas palavras (20,17-18).

Em meio aos dois anúncios da mulher e inicialmente impulsionados por ela, o quarto Evangelho nos narra a ida de Pedro e o Discípulo amado ao túmulo vazio.

Ali o Discípulo amado “viu e creu”, a partir da observação dos sinais. Se com a Madalena temos o modelo do anuncio pascal, com o Discípulo amado temos o modelo da fé pascal. 

Porém o relato agora avança para o cume do primeiro domingo pascal: nesse mesmo dia “ao entardecer”, o Ressuscitado vem pessoalmente ao encontro de seus discípulos. O quarto evangelho insiste em que estamos ainda no “primeiro dia da semana” (20,19ª; ver 20,1).

O estado inicial em que se encontra a comunidade se descreve assim: “… Estando fechadas, por medo dos judeus, as portas do lugar em que se encontravam…” (20,19b).

Jesus os encontra com as portas fechadas: ainda estão no sepulcro do medo e não participam de sua vida ressuscitada.

Esta é a primeira vez que se manifesta a como Senhor Ressuscitado a sua comunidade. Realiza-se, então, no interior da primeira comunidade o caminho da fé pascal.

2. O primeiro encontro de Jesus ressuscitado com sua comunidade (20,19c-23)

O primeiro encontro de Jesus ressuscitado com sua comunidade tem dois momentos:

  • Jesus se manifesta a sua comunidade como Senhor ressuscitado (20,19-20);
    • Jesus partilha com eles sua própria missão, sua própria vida e seu próprio poder para perdoar pecados (20,21-23).
  • Jesus se manifesta a sua comunidade como Senhor ressuscitado (20,19-20)

Jesus realiza três ações:

  • Põe-se “no meio deles”(20,19c);
  • Dá-lhes sua paz “A paz esteja convosco” (20,19d); ]
  • Faz-lhes ver as marcas de sua crucifixão: ”Mostrou-lhes as mãos e o lado” (20,20ª).

E a reação não se faz esperar: “Os discípulos se alegraram por ver o Senhor” (20,20b). A presença de Jesus ressuscitado suscita paz e alegria. Estes são os dois grandes dons do Ressuscitado.

 (1) O primeiro dom fundamental do Ressuscitado é a “paz”

O primeiro dom fundamental do ressuscitado é a paz. Três vezes, em 20,19.21.26, Jesus insiste nisto.Jesus havia prometido em suas palavras de despedida: “Deixo-vos a paz, minha paz vos dou; não as dou como dá o mundo. Não se perturbe vosso coração nem se acovarde” (14,27).

Agora, como alcançou sua meta e foi glorificado, enquanto vencedor do mundo (16,33) e em seu ir ao Pai, Jesus está em condições de “dar” a paz anunciada.

Jesus mesmo é o fundamento de sua paz. Não se trata de evitar aos discípulos as aflições do mundo (por isso havia dito: “no mundo tereis tribulações”, 16,33a), mas de dá-los segurança e confiança frente ao mundo: “Ânimo, eu venci o mundo!” (16,33b).

(2) De onde provém o “dom”: as mãos cravadas e o lado traspassado

Jesus dá um fundamento sólido a suas palavras: legitima-se diante de seus discípulos mostrando-lhes suas chagas. Com este gesto quer dizer que o Ressuscitado é o Crucificado e não outro.

Porém, a contemplação (esse “ver” os sinais) das chagas do Crucificado leva a descobrir outra mensagem: O Ressuscitado venceu a morte!  As chagas são o sinal de seu imenso amor pelos seus: os discípulos, esses amigos por quem deu a vida, são verdadeiramente amados.

Jesus foi, efetivamente, para eles, o “Bom Pastor”.

Estas chagas são a de um Ressuscitado. Portanto este amor não faltará nunca, ai estão estes sinais dos cravos que o prenderam à Cruz para recordá-lo todos os dias. A fonte de vida que brotou de seu lado traspassado pela lança não parará de jorrar a água do Espírito para todo o que se aproxime d’Ele.

(3) A reação frente à experiência do Ressuscitado é a alegria

A resposta não pode ser senão a alegria de ver o Senhor. É o gozo pleno de quem se sente amado: na Páscoa os discípulos fazem a experiência deste amor sem limites do Senhor.

O contraste com a situação inicial é notável. Os discípulos agora sabem que, em um mundo que infunde medo, eles contam com o vencedor do mundo. Em conseqüência, não devem fechar-se ante o mundo e seus desafios, mas entrar nele cheios de confiança.

Por isso Jesus lhes abre as portas, para que sejam capazes de ir ao encontro deste mundo, cheios de paz e de alegria e, desta maneira, serem portadores dos dons do Crucificado-Ressuscitado.

2.2. Jesus partilha com eles sua própria missão, sua própria vida e seu próprio poder para perdoar pecados (20,21-23).

Este é o momento propriamente dito da abertura das portas. O gozo pascal não fica em si mesmo. Faz-se irradiação.

O próprio Jesus ressuscitado faz avançar a experiência pascal. A partir de uma nova saudação de paz, partilha com eles sua própria missão, sua vida e seu poder para perdoar pecados.

  •  O dom da paz e o envio à missão

A paz esteja convosco” (20,21).

A repetição da saudação da paz é significativa. A paz do Ressuscitado está associada ao dom da missão. Visto que em tudo estão em comunhão com Jesus, os apóstolos na missão terão necessidade desta segurança e confiança que provém d’Ele, já que o mundo os odiará (ver 15,18-20;17,14).

É verdade que o destino dos discípulos não será diferente do de Jesus, por isso só arraigados em sua paz poderão levar até o fim a tarefa encomendada..

  •  O envio à missão e o sopro do Espírito

Como o Pai me enviou, também eu vos envio” (20,21b).

Como o Pai o enviou, assim Jesus agora envia seus discípulos ao mundo (4,38;17,18). Assim como deu a conhecer o Pai enquanto Filho, também os discípulos devem dar a conhecer a Ele.

Sua missão é conduzir todo o mundo a crer no Filho, de maneira que através d’Ele entrem em comunhão com o Pai.

Para levar a cabo a missão os enche de seu Espírito Santo.

Desde o inicio do evangelho João Batista havia anunciado que Jesus ia batizar no Espírito Santo (1,33):

  • Jesus o infunde sobre todos em seu último alento sobre a cruz (19,30),
  • Jesus o transborda na água que emana de seu lado (19,34;7,39),
  • Jesus, agora que foi glorificado o sopra, assim como na primeira criação Deus soprou no homem seu alento vital (Gn 2,7).

No Espírito Santo, Jesus comunica uma vida nova que não passa, esta vida nova põe os seus em comunhão profunda com a Trindade inteira.

No Espírito Santo, os apóstolos são capacitados para compreender a fundo sua obra (14,26;15,26-27) e ser testemunhas dela. É o principio da vida nova que deve ser anunciada e comunicada a todo homem.

  •  O sopro o Espírito e o poder para perdoar pecados

Nesta comunhão com Jesus, por meio do Espírito, os apóstolos entram a fundo na missão de Jesus. Ele foi apresentado como o “Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo” (1,29), e de fato assim fez até o instante final da Cruz (19,36-37).

Agora ressuscitado, Jesus envia a seus discípulos com a plenitude do poder para perdoar os pecados. O perdão está associado com a experiência do Espírito que purifica os pecados e no qual se nasce de novo “do alto” (3,3).

Os apóstolos têm também o poder para “reter” os pecados (20,23b). De fato, quando o testemunho acerca de Jesus Cristo for acolhido com fé, eles deverão perdoar os pecados.

Porém, quando o anuncio for rejeitado, eles deverão chamar por seu nome esta obstinação: “reter”.    O “reter os pecados” não é uma condenação inapelável, mas, antes de tudo um renovado chamado à conversão.

Quem pronuncia este mandato é o vencedor da morte, o Senhor glorificado, o Filho plenamente associado á potencia misericordiosa do Pai.

É assim que Jesus se constitui verdadeiramente o “salvador do mundo” (4,42) e como sua obra chega a todo homem submergindo a quem a Ele se abre à paz com Deus.

3. O segundo encontro de Jesus ressuscitado com sua comunidade e com Tomé (20,24-29)

Confirmando o realizado uma semana antes, Jesus repete a experiência “dominical”: “oito dias depois” (20,26ª). O primeiro dia da semana começa a institucionalizar-se. Como novidade, desta vez Tomé está ai.

Este novo evento responde à inquietude: Como chega a “crer” quem não viu pessoalmente o Crucificado Ressuscitado?

3.1. A comunidade e Tomé (20,24-25)

A resposta aparece em seguida: ante tudo mediante o testemunho apostólico, assim como fazem os dez discípulos com Tomé ausente: “Vimos o Senhor” (20,24).

Porém Tomé se nega a crer no anuncio pascal da comunidade, quer uma experiência direta: “Se não vê em suas mãos o sinal dos cravos e não meter meu dedo no lugar dos cravos e não meter minha mão em seu lado, não crerei” (20,25).

3.2. Tomé e Jesus (20,26-28)

Quando chega o oitavo dia, Jesus ressuscitado se manifesta de novo a sua comunidade.

Destacam-se duas idéias importantes:

  •  Jesus sempre toma a iniciativa.

É Ele que vem ao encontro e, conhecendo de antemão o que Tomé disse, se antecipa para convidá-lo a apalpar as chagas que ele queria ver e tocar;

  •  Jesus não quer que ninguém fique excluído do gozo pascal

E por isso tira Tomé de seu isolamento.

Todos vêem como Jesus conduz Tomé à fé. De novo seu grande dom é a paz (20,19.21.26), a segurança e a proteção que se fundamenta na própria pessoa do Senhor Ressuscitado. Também Tomé, o que se nega a crer, recebe a paz.

Mostrando conhecimento do que disse Tomé, Jesus lhe mostra os sinais de sua morte e de seu amor, estes que são ao mesmo tempo fonte de salvação. Permite-o chegar a crer por este meio.

Em seguida, a Tomé e a todos os incrédulos, diz: “Não sejais incrédulo, mas crente” (20,27). Então Tomé confessa sua fé como nenhum outro: “Meu Senhor e meu Deus” (20,28).

Ele que estava atrás, ao fim acaba adiante de todos.

Para ele pessoalmente, Jesus é Senhor e Deus:

  • Jesus é o Senhor cujo poder vivificante salva. Sob sua soberania tudo se renova;
  • Jesus é Deus mesmo que se acerca a todo homem por sua encarnação e partilha o dom de sua vida.         

O Senhorio de Jesus é o Senhorio de Deus. Assim o entende Tomé. Sua vida fica, então, completamente abandonada nas mãos de seu Senhor e Deus.

3.3. Jesus e nós (23,29)

Porém, sem contestar a altíssima confissão de fé de Tomé, como que dando uma piscadela ao leitor deste relato, Jesus, a seguir, chama “Bem-aventurados” os que não vêem e, contudo, crêem (20,29). Jesus vê os que crerão no futuro.

A experiência dos que viram o Senhor se converte em impulso para que outros possam crer.

Não será mediante aparições diretas que o Ressuscitado se dará a conhecer, mas através do testemunho dos discípulos, dado com a força do Espírito Santo (15,26-27).

4. Conclusão, que é também a conclusão do Evangelho (20,30-31)

Ao final, tendo ficado claro que a fé Pascal se suscita pela mediação de testemunho daqueles que fizeram a experiência, o evangelista João resume a finalidade da obra de Jesus Cristo e mostra qual é o caminho que dá acesso à fé para todos aqueles que não o viram como o viram Tomé e seus companheiros (20,30-31).

Uma nova mediação que permanece, junto com a viva voz da Igreja, para seguir conduzindo no caminho de fé pascal é o próprio texto do Evangelho.

O que Jesus fez diante de seus discípulos, revelando-lhes sua gloria, é a base do que se retrata no Evangelho escrito: “O que viu atesta e seu testemunho é válido, e ele sabe que disse a verdade, para que também vós creiais” (19,35).

O evangelista é um testemunho que se faz de mediador na experiência que todos estamos chamados a fazer do Ressuscitado. O importante é que cheguemos a um crer preciso e pessoal, isto é, que “Jesus é o Cristo, o Filho de Deus” (20,31).

O “crer” nos une a Jesus e, por meio dele, na dinâmica da fidelidade à Palavra, entramos em comunhão com Deus Pai.

Esta é a vida eterna, como efetivamente disse: “Esta é a vida eterna: que conheçam a ti, o único Deus verdadeiro, e ao que enviaste, Jesus Cristo” (17,3).

Fazer o caminho do “crer”, aprendendo a ler, com a ajuda da Palavra de Deus, os sinais do Ressuscitado hoje, é decisivo para experimentar a força renovadora da Páscoa: por essa via temos o acesso à “Vida” em plenitude.

O “Domingo” nasce como dia no qual a comunidade dos discípulos faz a experiência do Ressuscitado, se alegra com sua presença e, com a efusão do Espírito Santo, com o dar inicio a uma nova humanidade, inaugurando, deste modo os novos tempos da paz que só Jesus pode dar.

Temos que celebrar o Domingo em espírito e em verdade!

5. Releiamos o Evangelho com um Padre da Igreja

Por que temos de nos admirar pelo fato de que depois da ressurreição,

e já vencedor para sempre, Jesus entra no cenáculo com as portas fechadas,

Ele que, quando veio para morrer, havia saído intacto do ventre da Virgem?

Porém, posto que a fé daqueles que contemplavam seu corpo estava titubeando,

lhes mostrou logo as mãos e o lado e os fez tocar aquela carne

que passou através das portas fechadas.

De modo maravilhoso e incomparável, nosso Redentor mostrou,

depois de sua Ressurreição, seu corpo incorruptível, porém palpável,

para que a incorruptibilidade convidasse a conquistar o premio,

e a possibilidade de tocá-lo fosse uma confirmação para a fé.

Se mostrou incorruptível e palpável também para demonstrar que seu corpo,

depois da ressurreição, tinha a mesma natureza, mas outra glória”

(São Gregório Magno, Homilia 26,1)


autor:

Pe. Fidel Oñoro, cjm (Centro Bíblico del CELAM)

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