3º DOMINGO DA QUARESMA ANO B

João 2,13-25

Um novo modo de edificar e de viver “a Casa de meu Pai”

“Aquele templo era uma sombra: 

chegou a luz e afugentou a sombra”

(Santo Agostinho)

“Destruí este Santuário e em três dias o levantarei”

Introdução

Após os primeiros domingos da Quaresma, onde as cenas das tentações de Jesus e a da transfiguração, serviram de pórtico e nos deram luzes para nosso caminho, entramos na nova etapa do itinerário bíblico: a revelação do sentido profundo do mistério pascal. Para isto nos ajuda o evangelista São João.

Com o relato da purificação do Templo de Jerusalém por parte de Jesus, o evangelista João nos leva à contemplação do mistério pascal, suas causas e suas consequências, no “Corpo” de Jesus transformado finalmente no definitivo santuário da Nova Aliança e da comunhão de amor e adoração de Deus.

  1. O texto

Este texto se encontra após o relato das bodas de Caná (ver 2,1-12). Após descrever rapidamente a permanência de Jesus com a sua família e os seus discípulos em Cafarnaum (2,12), o evangelista nos apresenta a primeira peregrinação de Jesus e seus discípulos à cidade santa de Jerusalém (2,13).

Assim, entre o sinal de Caná e o novo sinal no Templo de Jerusalém se estabelece uma continuidade: Jesus está se “revelando” e sua revelação encontra a acolhida de uns, mas também a contestação por parte de outros. Em contexto, adquire relevo a terceira cena de discipulado do evangelho de São João.

  • A estrutura do texto

A passagem de Jo 2,13-22 se desenvolve em cinco partes que podemos distinguir assim:

  • A circunstância: Jesus peregrino em Jerusalém (2,13);
  • Expulsão dos vendedores do Templo (2,14-17);
  • Controvérsia com as autoridades (2,18-20);
  • A significação do evento e do discipulado (2,21-22);
  • Epílogo: A fé das multidões e a cautela de Jesus frente a elas (2,23-25).  
  • Aprofundando o texto
  •  A circunstância: Jesus viaja como peregrino a Jerusalém (2,13)

“Aproximava-se a Páscoa dos judeus e Jesus subiu a Jerusalém”

A narração do ministério de Jesus no quarto Evangelho inicia com duas festas. Da festa de Caná da Galileia, onde “manifestou sua gloria e creram nele os seus discípulos” (2,11), passamos à festa da Páscoa, em Jerusalém.

Já não é festa de um casal de esposos no âmbito estreito da família, parentes e conhecidos de uma pequena aldeia de Galileia. Agora se trata da “Páscoa dos judeus”, a máxima festa de Israel. Por ocasião desta solenidade todo o povo estava convidado a reunir-se em Jerusalém. Na liturgia solene da Pascoa, o povo de Israel comemorava, a “memória viva” da libertação de Egito e dava graças a Deus por havê-los feito um povo livre e, mais ainda, seu próprio povo, graças à Aliança.

Neste contexto, Jesus entra em cena como um peregrino desconhecido que vem a Jerusalém e entra no Templo. É curioso, que este mesmo homem que percorreu calmamente as rotas do país (ver 1,29.36) e que salvou de forma eficaz a festa de Caná, agora se mostre sob outro aspecto: um peregrino anônimo.

Nesta ocasião, Jesus não contribui para salvar e aumentar a alegria de uma festa, ao contrário, parece bem amargurado com o que vê. Ele chega discretamente, mistura-se, sem chamar a atenção, no meio da agitação da explanada do Templo. De repente… ele entra em ação! Entra em ação perturbando demais o desenrolar do comercio que ali se realizava.

  • Expulsão dos vendedores do Templo (2,14-17)

“E encontrou no Templo os vendedores de bois, ovelhas e pombas, e os cambistas em seus postos. Tendo feito um chicote com cordas, expulsou todos do Templo, com as ovelhas e com os bois; lançou ao chão o dinheiro dos cambistas e derrubou as mesas; e disse aos que vendiam pombas: ‘Tirai isto daqui. Não façais da Casa de meu Pai uma casa de comércio’. Seus discípulos se recordaram que estava escrito: O zelo por tua Casa me devorará”.

Jesus realiza um ato de purificação do Templo, que está sendo profanado. Com este gesto radical começa, segundo o evangelho de João, o ministério de Jesus em Jerusalém. Os outros evangelistas preferem colocar este episódio no início da paixão de Jesus (ver Mc 11,15-18; Mt 21,12s; Lc 19,45s), se bem, que, também para eles esta é a primeira ação de Jesus em Jerusalém.

Tudo estava transformado num mercado

Na explanada do Templo, Jesus encontra com um verdadeiro mercado: “E encontrou no Templo os vendedores de bois, ovelhas e pombas, e os cambistas em seus postos” (2,14). A atividade destaca dois pontos:

  • ocomercio de animais destinados ao sacrifício como vítimas; e
  • a troca de moedas de uso diário por moeda própria do Templo para pagar os tributos respectivos.

É preciso ter em conta, a principio, que esta atividade era necessária porque:

  • não era prático carregar um boi desde a Galiléia, por exemplo, para oferecer em Jerusalém; era preferível trazer o dinheiro e adquiri-lo em Jerusalém mesmo; e
  • por razões de pureza cultural não eram aceitas as moedas comuns, consideradas contaminadas, mas as moedas próprias do Templo.

A purificação do Templo

Por isso, surpreende a reação de Jesus ante o cenário que encontra neste lugar de culto (2,15-16).

Jesus não entra em choque com o mercado em si, mas com o modo como se entende a honra devida a Deus no Templo. Embora pudesse ser prático ter animais e moedas à mão, e tudo sob o controle das autoridades do Templo, para Jesus isto não está de acordo com a concepção que tem da “casa do Pai”.

Uma nova visão do Templo

Jesus chama a Deus “meu Pai” e, com base nisso, regula o comportamento que mais se adequa com esta concepção particular que tem do Templo. Portanto, nem tudo se pode tolerar, nem tudo que parece prático ou arrecada dinheiro é necessariamente conveniente.

Um comércio de animais para o sacrifício é, em princípio, uma atividade honrosa, porém Jesus o considera distante do sentido que tem aquele espaço: lugar da presença e da veneração de Deus. É verdade que esta atividade comercial se realizava segundo os mandamentos de Deus. Porém, para Jesus, o comercio e a casa de Deus devem ser vistos como assuntos claramente distintos.

Jesus vê os abusos e, frente a eles, não permanece indiferente, mas intervêm com autoridade definindo abertamente sua visão do Templo: “na casa do meu Pai” o que deve ocupar os pensamentos, as preocupações e toda a atividade é o Pai mesmo, tudo o mais deve ser retirado do meio.

Como observadores privilegiados do acontecimento aparecem os discípulos. Eles não se limitam a observar, mas com sua reflexão avançam no sentido do sinal: “Seus discípulos se recordaram de que estava escrito: O zelo por tua Casa me devorará” (2,17). Trata-se de uma citação do Salmo 69,10. Agora voltemos sobre este ponto.

  •  Controversia com as autoridades (2,18-20)

“Os judeus interpelaram-no, então, dizendo: ‘Que sinal nos mostras para agires assim?‟ Jesus lhes respondeu: ‘Destruí este Santuário e em três dias o levantarei’. Os judeus o contestaram: Quarenta e seis anos foram necessários para construir este Santuário, e tu o vais levantar em três dias?’”.       

O fato está consumado. Agora Jesus deve contas às autoridades competentes. Notemos como, com palavras veladas, Jesus aponta para a meta de seu caminho terreno: a sua paixão e ressurreição.

Começam as controversias

Com a pergunta dos judeus “Que sinal nos mostras para agir assim?” (2,18), se entra no tema fundamental de todas as controvérsias que as autoridades vão ter com Jesus ao longo do Evangelho. Recordemos que a expressão “os judeus” se refere, no quarto Evangelho, às “autoridades”.

Durante o ato da purificação do Templo Jesus deu a explicação do fato. Para isso, como acabamos de ver, se refere à dignidade da casa do Pai. Porém, ocorre que isto não satisfaz aos judeus, nem tampouco, os convencerá em nada do que Jesus dirá e fará (ver 6,30).

Neste caso, as autoridades consideram o gesto de Jesus e sua explicação como um ato presumido. Por isso lhe pedem outros argumentos, outras provas de sua autoridade.

É aqui onde Jesus lhes mostra, com palavras fortes e de profundo significado, o sinal de todos os sinais, a última e decisiva confirmação de sua própria obra e de sua própria reivindicação.

Vejamos 2,18-20. A resposta de Jesus é: ‘Destrui este Santuário e em três dias o levantarei’. Com a frase sobre a destruição do Santuário e a reconstrução em três dias, Jesus está dizendo a aos judeus: “Vocês vão me matar, mas, com isso vão alcançar para vocês mesmos a máxima clareza do que lhes tenho dito. Pois bem, a partir disto, eu cumprirei minha obra e me revelarei definitivamente”.

As autoridades interpretam mal o sinal de Jesus

Mas a reação ante o novo sinal de Jesus é de má interpretação: os adversários entendem suas palavras como uma simples referência ao Templo de pedra (do mesmo modo que Nicodemos interpretará mal as palavras de Jesus sobre o novo nascimento: ver 3,4), como um edifício que cai e não como um sinal de Deus na pessoa de Jesus: “Quarenta e seis anos foram necessários para construir este Santuário, e tu o vais levantar em três dias?” (2,20b).

E desde este primeiro confronto, já se evidenciam as conseqüências do conflito mortal que se levanta contra Jesus por causa de sua revelação. Delineia-se desde o início do Evangelho qual a meta do caminho de Jesus: sua morte; porém, a última palavra será a do Pai: a ressurreição de Jesus.

Porém a última palavra é a de Deus mesmo

A ressurreição confirmará o que, por causa de sua obra e por declarar-se “Filho” (a “casa de meu Pai”) será conduzido a uma morte violenta. Por esta morte será construído o novo templo. Portanto, Jesus Cristo ressuscitado é o “lugar” definitivo da presença de Deus em meio de seu povo. E vice versa, Jesus ressuscitado é o “lugar” da adoração de Deus por parte de seu povo, é a perfeita “casa do Pai”.

As palavras e as obras de poder de Jesus não serão aceitas por seus adversários (ver 5,16; 9,16), ao contrário, os levarão à decisão de eliminá-lo (ver 11,45-53). Porém, ao recusá-lo, seus adversários o que alcançam é dar cumprimento às palavras proféticas de Jesus: “Destruí este Santuário e em três dias o levantarei” (2,19).

Ainda que queiram, os judeus não podem impedir que, o “zelo” de Jesus por seu Deus-Pai, chegue até esta máxima expressão da Aliança de Deus com os homens e da adoração dos homens a Deus que se manifesta em seu mistério pascal.

  •  A significação do evento e a importância do discipulado (2,21-22)

“Mas Ele falava do Santuário de seu corpo. Quando ressuscitou, pois, dentre os mortos, seus discípulos se recordaram de que havia dito isso, e creram na Escritura e nas palavras que havia dito Jesus”

Nesta altura, o evangelista São João intervêm, agora, como comentador da cena e nos dá a chave interpretativa no “discipulado”.

Neste Evangelho Jesus está sempre acompanhado de seus discípulos. Nesta cena, o evangelista nos explica a importância do discipulado: “discípulo” é aquele em quem a obra de Jesus chega à sua realização, é aquele que o “compreende” (mediante o “recordar”) e “crer” nele. Estes são os passos que constituem o discipulado: a compreensão do Mestre e a fé no Mestre.

  •  A captação do sinal com olhos e coração de discípulo

Dentro desta passagem os discípulos são mencionados duas vezes e nas duas ocasiões aparecem com a mesma reação em vez que Jesus fez ou disse algo: “seus discípulos se recordaram…” (2,17.22).

Aqui não se trata de uma recordação que remete simplesmente à memória do passado, mas de uma recordação que de súbito leva a uma compreensão de fundo. De onde nasce esta compreensão?           O evangelista João disse expressamente que esta compreensão nasce da ressurreição de Jesus (2,22ª).

  • Todo um caminho por percorrer: O discipulado e a memória do caminho

Os discípulos têm ante eles um longo caminho a percorrer. Eles não seguem Jesus só para acompanhá-lo, mas também para compreendê-lo e se tornarem suas testemunhas. A vida em comum com o Mestre não lhes dá, pois, uma compreensão instantânea e completa.

Requer a permanência, a fidelidade no caminho com Jesus, para poder levar dentro de si o que vão vivendo, mesmo que numa primeira etapa o sigam sem compreendê-lo bem ou o captem pela metade. Somente permanecendo nesta fidelidade e paciência, é que o discípulo pode ser conduzido até a plena compreensão.

É a meta do caminho de Jesus que dá a luz, retrospectivamente, sobre os acontecimentos obscuros, permite que compreendam sua pessoa, que captem o sentido de suas palavras, suas obras e todo seu caminho terreno. Em poucas palavras: somente a ressurreição dará a luz que ilumina toda obscuridade.

  • Captar Jesus a fundo: O discipulado e a memória da Escritura

Retomemos agora a primeira intervenção dos discípulos: “Sus discípulos se recordaram de que estava escrito: ‘O zelo de tua casa me devora’” (2,17).

A frase “o zelo de tua casa me devora” está tomada do Sl 69,10. Em seu contexto original se trata da oração dum inocente perseguido.

Este mesmo Salmo será retomado duas vezes mais neste Evangelho de João (15,25 e 19,28-29), e sempre como iluminação bíblica da paixão de Jesus. Graças à citação bíblica os discípulos apuram sua contemplação do Mestre. Em Jo 2,17, se afirma que não só Jesus arde de “zelo” pela casa do Pai, mas também que este “zelo” o levará à morte.

Ao confrontar a citação com a vida do Mestre, os discípulos compreendem a verdadeira razão da morte de Jesus e captam que esta morte não é um acidente histórico, mas que tem suas raízes na Palavra de Deus. Portanto, na morte de Jesus se põe em primeiro plano o tema “Deus”: em meio dela está e é um caminho captar plenamente a Deus.

Jesus não morre porque haja pecado contra Deus, como pretendem seus adversários, mas, precisamente, é o contrário: porque se comprometeu de uma maneira nunca antes vista com ele. Então, como se vê, desde este primeiro choque, a contraposição entre Jesus com seus opositores tem que ver com a concepção de Deus.

  •  O discipulado: uma única síntese do caminho vital na fé

Como ocorreu também ao sinal das bodas de Caná, o evento do Templo tem um significado particular para os discípulos. Assim como, através do que o Mestre fez, viram sua glória e creram nele (2,11), igualmente, à luz da ressurreição, os discípulos compreenderão o significado de sua palavra e sua obra.

Os passos internos do discipulado ficam assim delineados: “Recordando”, os discípulos compreenderão, com a ajuda da Sagrada Escritura, a morte de Jesus, e crerão na Escritura. Porém, compreenderão também a palavra de Jesus e crerão nele.

A palavra de Jesus adquirirá para os discípulos, o mesmo peso da Palavra da Escritura e se converterá para eles em Palavra de Deus.

Resumamos assim: Inspirando-se na Escritura compreenderão a razão da morte de Jesus. Inspirando-se na palavra de Jesus, compreenderão o significado do Ressuscitado como o “lugar” definitivo da presença e dos cuidados do amor de Deus por suas criaturas.

  •  Epílogo: A fé das multidões e a cautela de Jesus frente a elas (2,23-25)

“Enquanto estava em Jerusalém para a festa da Páscoa, vendo os sinais que fazia, muitos creram em seu nome. Mas Jesus não tinha confiança neles pois conhecia a todos e nem necessitava que lhe dessem testemunho sobre o homem, pois Ele conhecia o que havia nele”

Não somente temos a reação positiva – a reação ideal – por parte dos discípulos, também muita gente crê em Jesus: “vendo os sinais que fazia, muitos creram em seu nome” (2,23). Seguimos na mesma lógica das bodas de Caná: ali iniciou os seus sinais “e manifestou a sua glória, e os deus discípulos creram nele” (2,11).

Frente a este panorama se delineiam as atitudes que se pode tomar diante de Jesus:

  • A rejeição.  Tipificado pelos adversários. Eles entram em conflito com Jesus por algo fundamental: a reta compreensão de Deus. Jesus reconhece a Deus como seu próprio pai; tudo o que Ele faz está inspirado por Deus e dá testemunho dele. Seus opositores se sentem provocados por Ele, exigem dele outras provas e o rejeitam.
  • O crer.  Os discípulos: os que se deixam guiar por Jesus, chegando à fé e ao pleno conhecimento.

Acima assinalamos os passos que levam ao crer. Pero resta ainda no fundo um grupo de pessoas anônimas: a multidão que está impressionada pelo que Jesus realiza. Porém Jesus adverte que não se pode confiar neles e os mantém à distância: um fio de debilidade se manifesta nestas adesões da multidão que “crê”, porém, não se faz discípula (ver 2,24-25).

  • Releiamos o Evangelho com um Padre da Igreja

“Adoremos a Deus, de quem somos templos. Só a Deus podemos fazer um templo, seja de madeira ou de pedra. Se fôssemos pagãos levantaríamos templos a deuses; porém a deuses falsos, como os que são erigidos pelos povos infiéis, separados de Deus. Salomão, ao invés, sendo profeta de Deus, constrói um templo de madeira e pedra, mas a Deus. À Deus, não a um ídolo, nem a um anjo, nem ao sol, nem à lua. Ao Deus que fez o céu e a terra e permanece no céu, Salomão fez um templo de terra. E a Deus, não só não lhe desagradou isso, mas mandou que fosse feito. Por que mandou Deus que se erigisse um templo a ele? É que não tinha aonde residir? Escutem que disse o bem-aventurado Estevão no momento de sua paixão: “Salomão o edificou uma casa, porém o Altíssimo não habita em templos feitos por mão de homem” (At 7,47-48). Então, por que quis fazer um templo? Para prefigurar o Corpo de Cristo. Aquele templo era uma sombra: chegou a luz e afugentou a sombra. Busca agora o templo que Salomão edificou e encontrarás ruínas. Por que o templo se converteu em ruínas? Porque se cumpriu o que simbolizava. Até o próprio templo, que é o Corpo do Senhor, se arruinou, porém logo ressuscitou. E, de tal modo ressuscitou que ninguém o poderá voltar a arruinar nunca más”.

(Santo Agostinho, Sermão 217, 4)

AUTOR: Pe. Fidel Oñoro, cjm – Centro Bíblico del CELAM

Deixe uma resposta

%d blogueiros gostam disto: