Santíssima Trindade (Estudo Bíblico)
João 16,12-25
Introdução
Depois de haver contemplado amplamente a obra de Jesus em seu mistério pascal, realização do projeto salvífico do Pai, e de acolhê-la no dom de seu Espírito, colocamos hoje nosso olhar no mistério da Santíssima Trindade. “Três pessoas distintas, um só Deus verdadeiro”, assim confessamos ao Deus em quem nossa vida foi submersa no batismo.
Em um dia como hoje proclamamos que a vida trinitária, a intimidade do Pai, do Filho e seu Amor, é a medida, a graça e a inspiração de nossas relações com Deus e entre nós.
É tão claro que se trata de um mistério inesgotável, que só conhecemos de experiência na medida em que se impregna em nós, que São Paulo saudava a sua comunidade, talvez a mais complicada em matéria de relações comunitárias, com uma frase que lhe recordava o essencial de sua fé e o estilo que devia caracterizar todas as suas relações: “A graça do Senhor Jesus Cristo, o amor do Pai e a comunhão do Espírito Santo estejam com todos vós” (2 Cor 13,13).
Porém, que muda em nós o fato de crer na Trindade? Que experiência de vida se inscreve por trás desta revelação do ser de Deus? Como viver desta vida trinitária?
- Uma revelação que provêm de Jesus, o Filho.
Ante de tudo tenhamos presente que se nós confessamos que Deus é Pai, é Filho e Espírito Santo, o fazemos graças ao ensino, a vida e o mistério de Jesus. Mas, já muito antes – no Antigo Testamento – o povo da Bíblia o pressente e, depois, pouco a pouco, quando os apóstolos fazem a experiência pascal, a vida e a fé das primeiras comunidades cristãs o compreendem de maneira inequívoca.
A experiência de um Deus Trino é fé e vida. Não há dúvida que a intimidade dos Três foi vivida espontaneamente pelos primeiros cristãos após a Páscoa, quando já se havia cumprido a promessa de Jesus sobre a vinda do Paráclito: “Quando Ele vier, o Espírito da verdade, os guiará até a verdade completa” (Jo 16,13).
Porém, depois da experiência vem a “formulação” do vivido e compreendido; é assim como se vai chegando, pouco a pouco, à confissão de que Deus é Trindade Santa.
É verdade que Jesus já havia dado muitas pistas. Não é senão que recordemos algumas de suas revelações mais significativas que meditamos no mês passado no evangelho de João:
- “Quem me vê, vê o Pai… Eu estou no Pai e o Pai está em mim” (14,9.11);.
- “Quem me ama, guardará minha Palavra e meu Pai lhe amará, viremos a ele e faremos morada nele” (14,22)
- “O Espírito Santo, que o Pai enviará em meu nome, os ensinará tudo” (14,26);
- “Como o Pai me amou, eu também vos tenho amado” (15,9)
- “Que todos sejam um; como tu está em mim e eu em ti, que eles…” (17,21);
- “Subo a meu Pai e vosso Pai, a meu Deus e vosso Deus” (20,17);
- “Como o Pai me enviou, também eu os envio. Dito isto, soprou sobre eles e lhes disse: ‘Recebei o Espírito Santo’” (20,21b-22).
A partir de Pentecostes, plenitude do tempo pascal, quando Jesus e o Pai entregaram o mais íntimo de si, o amor infinito de um pelo outro, o Espírito Santo, nos guia “até a verdade completa” (16,13) e é no âmbito deste dom que proclamamos e celebramos a solenidade de hoje.
Nosso conhecimento de Deus provém, em definitivo, de Jesus. Por isso voltemos ao Cenáculo para escutar, maravilhados e agradecidos, da boca de Jesus, a revelação sobre o amor dos Três.
- Frente à fé imperfeita dos discípulos, Jesus lhes promete o Espírito da Verdade
“Muito tenho que dizer-vos, porém agora não podeis agora suportar” (16,12). Esta frase de Jesus soa estranha, à primeira vista, já que Ele antes havia dito: “tudo o que ouvi de meu Pai vos dei a conhecer.” (15,15). Porém, o sentido é este: mesmo que Jesus já tenha dito “tudo” na confidencia da amizade com seus discípulos, ainda está faltando à compreensão profunda e vital.
A frase “não podeis agora suportar”, (16,12b), ou mais exatamente “não o podeis suportar” tem como fundo a imagem de uma pessoa que carrega um objeto pesado (ver Atos 15,10; Gl 5,10).
De fato, a expressão tão conhecida “carregar a cruz” está relacionada com isto. A situação, então, é dramática porque, segundo o evangelho, à meta só se pode chegar caminhando atrás de Jesus, que carrega a Cruz (ver Jo 13,36). Porém, aqui o sobrepeso está relacionado com a capacidade de entrar em tudo o que implica a relação do Pai e do Filho (“Todo que ouvi de meu Pai”,15,15).
É conhecimento: (1) das confidencias entre eles e (2) da obra deles no mundo, porém, também, e (3) da vivencia desta revelação de amor e salvação.
É como um avião que, para poder voar alto, não pode levar sobrepeso. Tenhamos em conta que o problema não está unicamente em “saber” o ensinamento de Jesus, mas no poder levá-lo à prática; e também, é verdade, que só quando se leva à prática, este se compreende plenamente. Isto é próprio do conhecimento que vem da fé.
Portanto, encontramo-nos ante uma dupla dificuldade:
(1) a que provêm de nossa capacidade limitada para entender os ensinamentos de Jesus; e
(2) a que provêm de nossa capacidade limitada para praticá-las.
A única solução possível é a pedagogia: fazer itinerários, percorrer o caminho gradual de amadurecimento da fé. Esta é a obra do “Paráclito”: este título significa, precisamente, “o que ajuda”.
- O Espírito Santo é “pedagogo” que nos conduz até o profundo mistério de Deus
“Quando vier, o Espírito da Verdade, ele vos guiará na Verdade plena”(16,13).
A obra do Espírito tem três acentos:
- É pedagógica Há um leve matiz na frase: “guia-los-á progressivamente”. Trata-se de um trabalho de indução, feito pouco a pouco.
- Está centrada Seu horizonte é a “Verdade”. Trata-se da “Verdade” da presença do amor de Deus no mundo, levada a cabo no Verbo encarnado (“Eu sou a Verdade”, 14,6).
- É completa O objetivo é alcançar “a Verdade completa”: trata-se de uma globalidade, ou melhor, de uma visão global e perfeita da obra que Deus– em sua fidelidade, com a criação e o povo com o qual fez aliança – quis levar a cabo.
Um caminho para um profundo desejo
O desejo de todo ser humano é ver a Deus, ver a sua glória. Somos chamados à unificação da vida e a caminhar para uma plena realização. Como expressa o orante do Salmo 24,5, “Guia-me para na verdade” (ver também o Sl 143,10), temos uma sede ardente por conhecer o caminho do Senhor, com a certeza de que só n’Ele está a vida. Como sucedeu com o povo de Deus no deserto, este caminho de vida não se pode percorrer, se Deus mesmo não é quem o guia (ver Ex 15,13; Is.49,10).
Esta rota pascal se deve ao Espírito Santo: “O Espírito de Yahweh os conduziu para o repouso. Assim conduziste teu povo, fazendo para ti um nome glorioso” (Is 63,14). Então, a “guia pascal” do Espírito consiste em introduzir em meio a fragmentação da vida humana, das suas situações históricas, uma força transformadora e orientadora, que unifica tudo, na plenitude de Cristo, na historia.
A vigência e a pertinência da eterna novidade do Ressuscitado
Sob a pregação pascal compreendemos melhor a obra do Espírito Santo, que é a cristificação do mundo. O Espírito Santo “guia” cada discípulo e à comunidade dos crentes para fazer presente o “hoje pascal” da obra de Jesus, o Senhorio de Cristo, em cada uma das circunstancias que se dão na humanidade e, também, em cada um dos novos desafios que vão aparecendo em cada nova etapa da história.
Caminho aberto para a plenitude
O que, naquele dia, no cenáculo, os discípulos não estavam em condições de “suportar”, tinha que ver, então, com a captação da grande unidade da revelação que, apesar de haver sido dada, plenamente, em Jesus, não se capta, senão na medida em que vai entrando em contacto com todas e cada uma das realidades humanas que emergem ao longo do caminhar histórico.
Enfim, o Espírito centra tudo no Plano de Deus e, portanto, na pessoa de Jesus que, como Verbo encarnado, o tem realizado no mundo mediante o duplo movimento de “saída” do Pai e “subida” ao Pai (ver 16,28):
- Sua “saída” é vinda que traz o amor de Deus nas trevas e estruturas egoístas do mundo.
- Sua “subida”– passando pela Cruz – leva os que entram em seu caminho até a comunhão de amor, luminosa e gozosa, de Deus, na plenitude da vida.
- Como o Espírito nos mergulha nos tesouros do amor do Pai e do Filho
Digamos de outra forma: De que maneira o Espírito nos guia até a “Verdade completa”?
(1) Com uma fonte de alta fidelidade
O Espírito “falará”. A voz do Espírito começa a partir do silêncio de Jesus. Ele cala (16,12), mas sua mensagem está ai ressoando, por meio do Espírito. Por isso, “falará o que ouvir” (16,13b). “Não falará por sua conta própria”. Notemos a grande fidelidade que caracteriza o Espírito com relação a Jesus. Sua atitude é similar à que Jesus tem com o Pai: “o que me enviou é verdadeiro, e o que ouvi dele falo ao mundo” (8,26).
O Espírito “anunciará o que há de vir”: mais que tudo o que vai se passar no futuro, trata-se antes de como deve reagir os discípulos ante o que vai vindo. O Espírito não permite que as eventualidades da história desviem os discípulos de Jesus, mas pelo contrario, os leva a fazer presente e atual, a Palavra do Mestre, em tudo o que lhes vai se passando. Para isso mantém a sintonia, com a maior nitidez possível, dos discípulos com Jesus.
(2) Submergindo-nos na glória da Trindade
O Espírito “me dará gloria” (16,14a). Trata-se da glória dada pelo Pai ao Filho desde a eternidade: “a gloria que tinha a seu lado, antes da criação do mundo” (17,5b).
O “dar gloria” a Jesus resume o que havia dito antes sobre o Senhorio de Cristo no mundo, isto quer dizer que, levando à plenitude a obra de Jesus no mundo, o Espírito está antecipando sua plenitude final na historia. Ele nos leva de braços abertos ante Deus.
E que é que traz a “glória”? A mesma vida de Deus e seus tesouros inesgotáveis. Jesus disse “Tudo o que o Pai tem é meu” (16,15a). Este “meu” ou “de minha propriedade” indica até onde é capaz de chegar o amor: até compartilhá-lo todo.
Quando dois se amam entregam-se mutuamente, com absoluta confiança, tudo o que são e têm: “Tudo o que é meu é teu e tudo o que é teu é meu” (17,10; ver também as últimas palavras na parábola do Pai Misericordioso em Lucas 15,31). A comunidade de amor é também comunidade de bens; o segundo é conseqüência do primeiro. E o Espírito? Como o mostra o texto: se bem que o Espírito e Jesus são dois, também são “um” no operar.
O discípulo de Jesus participa, então, da vida que está no Pai e no Filho, a que só pertence a eles em propriedade: “Como o Pai tem vida em si mesmo, assim também deu ao Filho ter vida em si mesmo” (5,26). E mais ainda: tudo o que cabe na relação do Pai e do Filho, sua estima, admiração, escuta/obediência, o estar contentes um com o outro, tudo isto o Espírito o transmite aos discípulos. Por isso disse: “Receberá do que é meu e os anunciará (transmitirá) a vós” (16,14c.15c).
Realiza-se, assim, o desejo de Jesus: “Quero que onde eu estiver estejam comigo, para que contemplem minha glória” (17,24). Sob a luz desta glória, a comunidade dos discípulos fica envolvida na força e na intensidade do amor que é próprio de Deus. Agora vemos que o Espírito não nos chega somente aos ouvidos, mas até o coração. É o Espírito – Deus mesmo esvaziando-se em nós – quem coloca no mais profundo de nosso ser, o Ser mesmo de Deus.
Fomos criados para “viver”. Porque fomos criados no Verbo (1,3) – que é eterna relação – vivemos sedentos de amor: por isso o que mais nos dói é uma má relação. É algo que levamos impregnado dentro. Pois bem, pela entrada e permanência de Jesus em nossa vida, Ele como Verbo pleno de amor, nos resgata de nossas solidões e isolamentos, cura nossas incomunicações e más relações ao colocá-las no plano superior do amor primeiro e perfeito que vem de Deus.
Tudo o faz convergir ali e dele, do alto, brota uma nova capacidade de amar. E se passamos pelo trauma da morte física, viveremos para sempre, porque em nosso relacionamento não há lugar para a morte, e isto porque o Céu da Trindade já está em nós. Assim, a missão do Filho fica “completa”, isto é, dar-nos a vida eterna de Deus: “Para que o amor com que tu hás me amado esteja neles e eu neles” (17,26).
- Em conclusão…
A Trindade Santa habita em nós de modo inefável. Graças à guia do Espírito que tudo conduz “até a Verdade completa”, nossa vida vai, paulatinamente, se cristificando, impregnando, em nós, o rosto do amor. A identidade com o Filho, a participação em sua glória, faz possível unir-nos ao amor dos Três, compartilhar sua vida de glorificação recíproca, de amor e gozo, e meditar, largamente e em profunda paz, as confidencias de Um e do Outro, através da escuta do que o Espírito nos coloca no coração.
Sendo assim, não se pode ser cristão completo sem viver na Trindade, porque a novidade da vida batismal – somos batizados “no nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo” – está iluminada por um amor transformante do Deus família: “O amor de Deus há sido derramado em nossos corações pelo Espírito Santo que nos foi dado” (Rm 5,5).
Que mais se pode desejar? Não resta senão adorar e suspirar profundamente. Como bem dizia Soror Isabel da Trindade: “Ó meus Três, meu Tudo, minha Bem aventurança, Solidão infinita, Imensidade em que me perco… Submerge-te em mim para que eu me sumerja em Ti, até que vá contemplar em tua Luz o abismo de tuas grandezas”.
Cultivemos a semente da Palavra no profundo do coração
- Quem é Deus? Qual é o cume da revelação que Jesus nos faz do Mistério de Deus? Que significa a frase de Jesus: “O Espírito da Verdade os guiará até a Verdade completa”? Qual é o maior anseio de minha vida? A Trindade Santa é resposta a essa busca? Que devo contemplar em Deus?
- Meu esforço pelo meu bem estar pessoal sacrifica a felicidade de outras pessoas? Segundo o evangelho deste Domingo, como deveria ser a vida de uma família? Como é minha família? Como sonho minha família? Que faço para conquistá-lo?
- Como ilumina a Trindade Santa, comunidade perfeita de amor, a vida comunitária da Igreja (das comunidades religiosas, de nossas paróquias, das pequenas comunidades às quais pertencemos) e o estilo de vida que a sociedade necessita? Que imagem de Igreja se deriva da revelação de um Deus Trindade?
- Nossa sociedade alcançou altos níveis de comunicação global, porém isto não há feito mais que por de relevo as fragmentações sociais, os fracassos familiares, a marginalização, as profundas e absurdas solidões. O anúncio de um Deus amor – amor que unifica, que partilha tudo, que envia, que salva – está contradizendo o estilo de vida individualista de uma sociedade de massas porém sem comunicação de amor? Que devemos promover como discípulos de Jesus? Que temos que anunciar profeticamente?
- Sabendo que há uma relação estreita entre a “vida de comunidade” e a “vida plena”, qual é o papel de uma comunidade no meio da sociedade? Por quê e de quê maneira está chamada a pôr-se ao serviço da defesa e da promoção da vida?
autor: PE FIDEL OÑORO, CJM