QUARESMA 4º DOMINGO | Estudo Bíblico ano C
Lucas 15,1-3.11-32
Introdução
Neste domingo a misericórdia se faz parábola.
O duro chamado ao arrependimento que vimos domingo passado vemos hoje em seu oposto: o oásis do rosto de Deus, na Parábola do Pai misericordioso (ou “do filho pródigo”), a parábola da misericórdia por excelência.
No fundo do evangelho de hoje temos o ensinamento de Jesus:
“Sede misericordiosos, como vosso Pai é misericordioso” (Lc 6,36).
A finalidade da parábola é mostrar-nos o caráter, a grandeza e as características da misericórdia de Deus para com os pecadores arrependidos.
Desta maneira, compreenderemos a práxis de misericórdia de Jesus, que escandalizou a multidão piedosa de seu tempo, e também as atitudes que devemos tomar ante Deus que nos perdoa e ante o irmão que devemos perdoar, porque ele segue dizendo: “Tudo o que é meu é teu” (15,31), quer dizer, que façamos nossa sua misericórdia.
- O contexto da parábola
As críticas dos fariseus e escribas a Jesus por sua práxis de misericórdia (15,1-3)
O tipo de relação que Jesus tinha com gente pecadora era mal visto pelos representantes da ortodoxia religiosa de seu tempo: os escribas e fariseus. O evangelho começa dizendo no v.1 que: “todos os publicanos e os pecadores se aproximavam de Jesus para ouvi-lo”
Que há por trás do êxito de Jesus com estas pessoas? Que encontravam nele que os atraía? Enquanto os adversários de Jesus preferiam manter distância – para não “sujar-se” com elas – das pessoas de má reputação e as olhavam com desprezo, Jesus, por sua vez, ia ao encontro delas.
Ia ao encontro delas anunciando-lhes a misericórdia de um Deus que se misturava a eles sem escrúpulos, disposto a perdoá-los e a acolhê-los de novo na comunhão com ele. Jesus era ao mesmo tempo o mensageiro e instrumento desta misericórdia.
A acolhida que Jesus lhes dava não era superficial, nem tampouco momentânea, como se fosse uma simples e interessada tática para mudar-lhes a conduta. Não! Sua acolhida era a mais profunda possível, por isso introduzia as pessoas, indignas dele, em sua amizade, convidando-as a partilhar a intimidade de sua mesa. Este tipo de relação de Jesus com o pecador foi mal visto pela ortodoxia religiosa, por isso recebeu severa crítica (v.2)
Jesus responde com três parábolas nas quais os diversos personagens (um pastor, uma mãe e um pai) que perderam algo precioso para eles, uma vez que o encontram convidam todos (amigos e vizinhos, aos servos e ao irmão) a compartilhar sua alegria: “Alegrai-vos comigo” (vv.6.9; ver vv.24.32).
Na parábola do Pai misericordioso a alegria partilhada é muito mais expressiva:“Comamos e celebremos uma festa” (v.23).Ai está a explicação do modo escandaloso de Jesus. Vejamos os pontos mais importantes da terceira parábola.
2. A dinâmica interna da parábola (15,11-32)
A parábola, construída a partir de fortes contrastes, se situa no mundo de uma família, ali onde as relações entram mais em conflito. A parábola tem duas partes:
(1) A história da conversão do filho menor (15,11-24);
(2) a história da resistência do filho maior na partilhar a misericórdia e da alegria do Pai (15,25-32).
Como fio condutor ao longo de todo o relato não se perde de vista nunca ao Pai (explícita, ou implicitamente, se menciona 24 vezes), ele é o ponto de referência e o verdadeiro protagonista da história.
(1) A historia do filho menor está apresentada em um caminho de ida e volta: “Foi-se a um país distante…” (v.13) e “Levantando-se, partiu para seu pai” (v.20a). Na ida e na volta do filho menor se percorrem os 5 (cinco) passos de um caminho de conversão:
- A ida (vv.11-13);
- A penúria na extrema distancia (vv.14-16);
- A tomada de consciência da situação e a decisão de voltar (vv.17-20ª);
- O encontro com o Pai (15,20b-21);
- A celebração da vida do filho (vv.15,22-24)
(2)A história do filho maior apresenta o problema do comportamento exagerado do Pai com o filho indócil (seu esbanjar de alegria na festa), que se recolhe na frase: “Ele se irritou e não queria entrar” (v.28ª; exatamente o contrário do irmão menor que “voltou para seu pai”, v.20). Esta parte da história gira em torno de dois diálogos, respectivamente, o filho maior mantém:
- Com os criados, quando está a ponto de chegar em casa, que lhe expõem a situação (vv.25-27);
- Com seu pai, que sai a buscá-lo para pedir-lhe, insistentemente, que entre em casa, escuta o argumento de sua raiva e, finalmente, o responde expondo-lhe seus motivos (vv.28-32);
As duas convergem para a mesma idéia, que se repete quase nos mesmos termos ao fim de cada uma delas:
- o convite à festa (vv.23.32ª)
- “Comamos e celebremos uma festa”
- “Convinha celebrar uma festa e alegrar-se”
- o seu motivo (vv.24.32b)
- “Pois este filho meu [irmão teu] estava morto e voltou à vida; estava perdido e foi encontrado”;
A ênfase da parábola está no modo de acolher o filho afastado e de celebrar seu regresso – com alegria total – porque “recuperou-o vivo” (v.27). Aqui repousa o mistério da reconciliação em sua chave pascal (passagem da morte à vida), ação salvífica de Deus no homem (resgate da humanidade perdida).
3. O ensinamento central da parábola: o comportamento do Pai (15, 20b-24)
Como temos mostrado desde o começo, o centro da parábola está no encontro entre o filho menor e seu pai (vv.20b-24). Para ele aponta toda a primeira parte. Os servos e o filho maior não conseguem compreendê-lo, torna-se para eles um enigma. Tomando o eixo focal da parábola, vemos no colorido das imagens uma catequese sobre a misericórdia:
- O filho arrependido vai a seu Pai, porém, ao final, é o pai que “corre” para seu filho, impulsionado pela “comoção” interior. Este sentimento interno que se torna impulso de busca é o que se traduz por “misericórdia”: visto que o filho nunca saiu do coração (leva-o no mais profundo do ser, como uma mãe leva seu filho nas entranhas). A visão do filho, em sua humilhação e sofrimento, desfaz, em um instante, o distanciamento, talvez normal, que toma quem foi ferido em sua dignidade;
- O sentimento (agitação) interno se explicita em 7 (sete) gestos de amor que reconstroem a vida do filho dissipador. A misericórdia reconstrói a vida do outro:
- O pai corre ao encontro de seu filho, primeiro “o abraça” (v.20b). O pai se humilha mais que o próprio filho.
- Não espera suas explicações.
- Não pede purificação previa, ele que vem com o mau cheiro da vida dissoluta, contaminado
no contato com pagãos e rebaixado ao máximo na impureza (legal e física) dos porcos;
- Não se importa com nada, rompe as barreiras.
- Não há distanciamento, mas imensa proximidade com este que está “imundo”. Para ele é, simplesmente, seu filho.
- O “beija” “efusivamente” (v.20c:) O beijo é a expressão do perdão paterno (como o beijo de perdão de Davi a seu filho Absalão em 2 Sm 14,33). Nota-se que o perdão se oferece antes da confissão de arrependimento do filho (v.21).
- Manda pôr-lhe “a melhor veste” (v.22ª). Talvez “sua primeira [a “antigo”] veste”, como se poderia ler em grego): o pai lhe restitui sua dignidade de filho e lhe confirma seus antigos privilégios. A veste velha, seu passado, fora da casa do pai, fica atrás.
- Manda pôr-lhe “o anel” (v.22b). Este anel não é um simples adereço estético; visto que, na antigüidade, o anel fazia parte das insígnias reais (ver 1 Mc 6,14) e com ele se selavam as grandes transações.Trata-se de um gesto inaudito para com um filho esbanjador de dinheiro (v.13).
Que confiança tão grande tem este pai na conversão de seu filho! (qualquer um, normalmente, o poria primeiro em prova, até que demonstrasse que sabia agora manejar com dinheiro, antes de entregar-lhe algo de confiança).
- Manda pôr-lhe as “sandálias” (v.22c). Este era um privilegio dos homens livres, inclusive em uma casa só as levava o dono ou os hóspedes. Este gesto é uma delicada negação ao filho que ia pedir-lhe para ser tratado como um empregado.
- Faz sacrificar o “novilho cevado” (v.23ª). O animal que se alimentava com mais cuidado e se reservava para alguma celebração importante na casa.
- Convoca uma “festa” (v.23b). Com todas as pompas: melhor comida, música e dança. A festa parece exagerada, desproporcional. Porém, o pai expõe o motivo: o grande valor da vida do filho. Isto chama a atenção: a casa muda completamente.
- Nesta parte central da parábola está o ponto de confrontação que desmascara os mesquinhos paradigmas de relação humana manifestados no papel que representa o filho maior na parábola:
- O problema não é simplesmente “estar” com o pai (“Filho, tu estás sempre comigo”, v.31ª), mas, de que modo se está. Enquanto o irmão maior mede sua relação com o pai a partir do cumprimento externo da norma (“faz tantos anos te sirvo e jamais deixei de cumprir uma ordem tua”, v.29ª) e sua expectativa é a proporcional retribuição (“porém nunca me destes um cabrito…”; v.29b); a relação entre o pai e o filho menor se rege pelo amor, no qual o que importa não é o que um possa dar ao outro, mas, simplesmente, o fato de ser “filho”.
Sobressai o imenso valor da relação e de seu verdadeiro fundamento. Basta recordar o que é que dói ao Pai: a “perda” (e para ele o “perdido” não foram os bens, mas “o filho meu” (“este filho estava perdido e foi encontrado”).
- O filho menor admite ter “pecado”, mas o mais grave de seu pecado é o abandono da casa, quer dizer, o rejeitar ser filho. Pedir herança é declarar a morte do pai, ou a morte da relação pai-filho. Por isso disse: “pequei contra o céu e ante ti” (v.18.21). A vida dissoluta é o resultado de uma vida autônoma que exclui a relação fundante. No perdão se reconstroem todos os aspectos desta relação e isto é o que importa, em primeiro lugar: um filho que redescobre (ou talvez experimenta por primeira vez) o amor paterno e que se alegra nisso porque ressurge com uma nova força de vida (“estava morto e voltou à vida”). O filho maior, ao invés, mesmo em casa, seguirá vivendo como um estranho.
- O redescobrimento da filiação leva à recuperação da fraternidade. Por isso o Pai misericordioso se permite corrigir o irmão maior: substitui o “Esse teu filho!” (v.30) por “Este teu irmão!” (v.32). Os caminhos de reconciliação com o irmão devem partir do encontro comum no coração do Pai, ali onde “tudo o que é meu é teu” (v.31)
Enfim…
O que se tem e se perde (ou o que não se tem e se deseja) neste relato se mede a partir da relação. A maior riqueza, a que nunca podemos perder e sempre devemos buscar, é a do coração misericordioso do Pai que eleva nossa vida até sua máxima dignidade. É assim como se compreende a grandeza da palavra: “Tudo o que é meu é teu” (v.31).
Nesta quaresma, Jesus nos torna a repetir este desejo do Pai, de entregar-nos sua verdadeira riqueza, que é nossa herança. Como o filho menor, aprenderemos a recebê-la e, como o filho maior, aprenderemos a compartilhá-la. Assim ninguém, nem o filho maior, nem o filho menor, ficarão sem entrar na alegria do Pai, que faz de nossa vida uma continua festa. A páscoa que já se aproxima é a realização desta festa.
4. Releiamos o Evangelho com um Padre da Igreja
Após a fadiga, cansaço, tribulação e miséria, o filho menor
se recordou de seu pai e decidiu voltar.
Disse: ”Levantar-me-ei e irei a meu pai” (Lc 15,18).
Reconhece agora sua voz que diz: “Tu sabes quando me
sento e quando me levanto” (Sl 139,2).
Sentei-me na miséria, levantei-me com o desejo de teu pão.
“De longe penetras meus pensamentos”. Por isso o Senhor
disse no Evangelho que “o pai correu a seu encontro”.
Tu, portanto, conheces meu caminho: Qual, senão aquele perverso que havia eu seguido para ir longe do Pai, como
se pudesse ficar escondido aos olhos do que podia castigar?
Mas, poderia ser consumido por aquela miséria e terminar apascentando aos porcos, se o pai não tivesse querido
castigá-lo longe para torná-lo a ver próximo.
Por isso, como um foragido encostado na parede, seguido
pelo justo castigo de Deus que nos castiga em nossos afetos,
em qualquer lugar onde vamos e onde quer que tenhamos chegado, exclama: “Tu me perscrutas quando caminho e
quando repouso.Todo os meus caminhos te são conhecidos”.
Ainda antes de percorrê-los, antes de caminhar neles,
tu já os previstes e permitistes que a dor permeasse os
meus caminhos, a fim de, para não sofrer, regressar aos teus”
(Santo Agostinho).
5. Para cultivar a semente da Palavra na vida:
- Com que finalidade Jesus conta a parábola do Pai Misericordioso?
- Que se entende por “misericórdia”? De onde vem e que a distingue de outro sentimento?
- Que faz o Pai na parábola? Que devo aprender dele?
- Como faz o filho menor seu itinerário para o Pai? Como se espera que o filho maior faça? Em que se fundamentam e a que apontam ambos caminhos de conversão?
- Espera-se também uma reconciliação dos dois irmãos? Como seria? Qual o sentido da festa pascal
(da grande alegria) que estamos preparando? Qual é a melhor preparação da festa?
autor: PE. FIDEL OÑORO, CJM