QUARESMA 3º DOMINGO | Estudo Bíblico ano C

Lucas 13,1-9

Introdução

Depois de haver percorrido a etapa inicial da quaresma, na qual pusemos nossa atenção no mistério da paixão e da glória (evangelho das “tentações no deserto” e a “transfiguração na montanha”), paradoxo que produziu a rota do caminhar quaresmal, começamos a partir de hoje uma serie de três domingos que nos trazem, de novo, à escola na qual se aprende a ser discípulo: a escola do perdão.

O Senhor nos convida a renovar nossa vida voltando às águas batismais, onde se morre ao pecado e brota o homem novo em Cristo. A ordem dos evangelhos nestes três domingos, seguindo a pista do evangelista da misericórdia (e há um domingo em que lemos um texto de João que tem sabor lucano), constitui um caminho educativo que a Igreja nos propõe para que entremos, seriamente e mais a fundo, no mistério da reconciliação.

Na realidade trata-se de dois caminhos que se encontram e se fundem como num grande abraço:

(1) o caminho da conversão, da parte do homem; e

(2) o caminho da misericórdia, por parte de Deus; se bem que é o caminho da misericórdia o que marca a pauta.

Configuram-se, assim, três itinerários da conversão-misericórdia:

(1) O chamado à conversão que convida a um exame de consciência que parte do discernimento da própria historia (Lc 13,1-9): terceiro domingo da quaresma;

(2) O regresso do filho pródigo ao encontro da excessiva misericórdia de seu Pai

      (Lc 15, 1-3.11-32): quarto domingo da quaresma; e

(3) A experiência do perdão da mulher condenada à morte (Jo 8,1-11). Se no domingo anterior se enfatizava o perdão de Deus, neste se acentua o perdão que deve provir dos demais.

Nestes três itinerários o rosto misericordioso de Jesus vai aparecendo cada vez com maior claridade e grandiosidade.

Temos, então, hoje, o primeiro itinerário de conversão. Sua finalidade é despertar as consciências adormecidas e acomodadas em seu estilo de vida. Tal como se pregou desde o começo deste evangelho de São Lucas, pela boca do profeta São João Batista, a conversão cristã é uma conversão na história, tendo em conta a vida cotidiana e com atos (“frutos”) concretos (o vimos no evangelho do terceiro domingo do advento passado).

A conversão é questão de responsabilidade e cada um está chamado a assumir a parte que lhe corresponde. Nesta linha segue o ensinamento de Jesus em Lc 13,1-9, tendo na mira, além da misericórdia de um Deus que não somente pede conversão, mas que ajuda para que ela seja possível. Tal como se disse na parábola da figueira estéril: “cavarei a seu redor e lançarei adubo” (13,8).

1. O texto

Entremos no texto observando como o chamado à conversão se dá em duas partes:

Primeira parte: A consideração de dois acontecimentos da história que servem de ponto de partida para insistir

                       na exortação: “Se não vos converteis, todos perecereis do mesmo modo” (13,1-5); e

Segunda parte: A narração da parábola da figueira estéril, que expõe a necessidade de valorizar o tempo da

                        paciência de Deus e, portanto, não se tem que adiar o arrependimento (13,6-9).

Aprofundemos…

  1. Os atos nos exortam (13,1-5)

No texto anterior a este, Jesus educa o povo na importância de fazer a leitura dos “sinais dos tempos” (vv.54-56) e, em seguida, mostra que o tempo que precisamos discernir é o tempo do julgamento divino (vv.57-59). Jesus agora faz a análise de fatos que põem à sua consideração: “Naquele mesmo momento chegaram alguns que lhe contaram…” (13,1ª). São dois casos tremendos:

(1) o incidente da repressão político-militar por parte de Pilatos no Templo (vv.1-3); 

(2) a calamidade de um grupo de operários na construção da torre de Siloé (13,4-5).

Segue-se sempre o mesmo esquema:

(1) Anuncia o fato (13,1.4ª);

(2) Faz uma pergunta: “Pensais que esses… eram mais pecadores/culpáveis que…?” (13,2.4b); e

(3) Responde a pergunta e se faz uma exortação: “Não, vos asseguro; e se não vos converteis,

      todos perecereis do mesmo modo” (13,3.5).

Hoje não temos informação precisa sobre os fatos referidos. O caso do massacre de Galileus protagonizado por Pilatos (13,1: “cujo sangue havia mesclado Pilatos com a de seus sacrifícios”) poderia tratar-se:

(1) do incidente de Cesaréia no ano 26 dC;

(2) o tumulto quando a construção do aqueduto;

(3) o ataque de Pilatos aos Samaritanos a 36 dC;

(4) ou o caso, menos provável, da matança de 3000 judeus por parte de Arquelau durante a Páscoa de 4 a.C.

Diversas hipóteses temos hoje também sobre o acidente de trabalho na torre de Siloé que deixou 18 vítimas. Porém, o importante é que Jesus não fica nos acontecimentos em si, mas descobre dentro deles a voz de Deus que adverte a cada um sobre a insegurança de seu próprio destino. Se os galileus assassinados e os jerosolimitanos acidentados não eram menos pecadores que o resto dos de sua terra e geração, então não há ninguém que não necessite de conversão, todos a necessitamos. Duas conclusões fazem a mentalidade do povo:

(1) que as calamidades individuais não indicam responsabilidades individuais, mas que são “sinais”, ou seja, avisos de juízo divino que ameaça a uma humanidade pecadora;

(2) que as desgraças em principio não estão associadas a um castigo por parte de Deus por um pecado (como vemos em Jó 4,7; 8,20; 22,4-5; Jo 9,1-2);

Na realidade se trata melhor do contrário: é o pecado, em geral, o responsável do mal que há no mundo. De todas as maneiras tem-se que tirar as lições que a vida nos dá, continuamente. Seja dos fatos trágicos do cotidiano, ou seja, das calamidades naturais. Por trás de tudo isso, continuamente, o Deus da vida, nos está convidando a viver.

3. O tempo da misericórdia (13,6-9)

A parábola da figueira (13,6-9) nos diz em resumo: “Se vocês não se arrependem, serão derrubados e perecerão, como a figueira estéril”. De fato, dentro de uma plantação, toda árvore que não serve, que simplesmente ocupa espaço, é abatida.

O desenvolvimento da parábola nos vai dando detalhes interessantes:

(1) Fala-se de uma figueira semeada em uma vinha (13,6ª). Não é estranho?

(2) Esta vinha não é propriedade do vinhateiro (13,6b). Que indica isto?

(3) O dono veio três anos seguidos buscar seu fruto (13,6b-7ª). Estes três anos tem algum valor simbólico?

(4) O tempo da espera de um ano, que suplica o vinhateiro ao patrão (13,8), não será uma referencia à fé

      na eficácia do “ano de graça” (Lc 4,19) anunciado na Sinagoga de Nazaré?

O vinhateiro tem esperança na figueira, apesar de sua esterilidade constatada, ele crê poder ajudá-la a mudar de situação, tornando-a fecunda. A mudança será tal que o fruto esperado não será uma questão casual, mas que será duradouro: “dar fruto daqui por diante” (13,9).

 O ano a mais de paciência que pede ao vinhateiro evoca sua misericórdia. Esta se faz concreta no serviço que presta à figueira para que gere vida (13,8). Da figueira se espera uma resposta. Desta resposta dependerá sua vida dai em diante.

Por isso, chama atenção o modo como se conjuga a misericórdia (Deus lhe dá um tempo mais) com a justiça (“Se não dá [fruto], a cortas” (13,9). Isto equivale a dizer: “O fato que, ainda estejas aqui é uma oportunidade que Deus está te dando. Ele teve paciência. Mas não abuses da paciência de Deus. Chegará um tempo em que já não poderá fazer nada”.

Jesus interroga todo aquele que está sempre deixando “para amanhã” a sua conversão, o deixar definitivamente um mau hábito, o corrigir uma conduta má. O atraso da conversão nos coloca em uma situação perigosa.           O Senhor dá um tempo de espera, e não o faz de braços cruzados, Ele faz tudo o que pode para que, por fim, a figueira comece a frutificar.

Porém, ao final, “se não dá fruto, se corta” (13,9). Recordemos a pregação de João Batista: “Dai, pois, frutos dignos de conversão… já está o machado posto à raiz da árvore; e toda árvore que não dê bom fruto será cortada e lançada ao fogo” (3,8-9).

4. A conversão: um chamado à vida

Nota-se na parábola um constante chamado à vida. A vida sempre está ameaçada por razões que provem da maldade humana (repressão militar de Pilatos) ou a incontrolável natureza (o acidente de Siloé). Mas também há um modo de negação da vida simbolizada na esterilidade da figueira.

A conversão não é somente para “não perecer”, mas, sobretudo, para que desenvolvamos todas as nossas potencialidades na direção para a qual fomos criados. Desenvolvimento este que se dá: pela obra de Jesus – o vinhateiro, que nos convida a levar a sério o tempo de seus cuidados; e através do Espírito Santo – a força escondida do Reino, relançando a nossa vida para a sua plenitude.

Enfim… A passagem de hoje nos convida a não adiar a conversão. A principal motivação é viver uma vida frutífera, quer dizer, realizar plenamente o objetivo de nossa existência desenvolvendo todas nossas potencialidades. O convite do Senhor ressoou, não podemos lançá-lo em saco furado.

5. Leiamos o Evangelho com os Padres da Igreja

  •  São Gregório Nacianceno

“Exercer a paciência de Deus para não fazer julgamentos precipitados de alguém”

Não é o mesmo arrancar uma erva ou uma flor e matar uma pessoa.

És imagem de Deus e falas a uma imagem de Deus.

Tu que julgas, serás também julgado (Mt 7,1).

Examina bem teu irmão, como se também devesse ser medido na

mesma medida.

Atento a não cortar e jogar fora, de modo temerário,um membro,

de modo incerto, para que os membros bons não sofram detrimento. Repreende, reprova, exorta.

Tem a regra da medicina.

És discípulo de Cristo manso e benigno, que levou nossas

enfermidades (Is 53,4).

E se achas uma primeira resistência, espera com paciência.

À segunda, não percas a esperança, ainda há tempo para melhorar.

Ao terceiro trata de imitar o benévolo agricultor e pede ao Senhor

que não arranque o figo infrutuoso (Lc 13,8), que não o danifique,

que o encaminhe através da confissão.

Talvez mude e dê frutos.

  •  São Gregório Magno

Conforme o dito: “Nem racha nem entorta o machado”.

Consequências sociais do evangelho.

Com grande temor se deve escutar o que se disse à árvore que não dá fruto:

”corta-a, para que continuar ocupando terreno?” (Lc 13,7).

Cada um, ao seu modo, se não faz obras boas, no tempo que ocupa espaço

na vida presente, é como uma árvore que ocupa inutilmente o terreno pois

no lugar onde está, impede que trabalhe outro.

Mas há algo pior: é que os poderosos deste mundo, se não fazem nenhum bem,

não o deixam fazer, tampouco, aos que dependem deles, pois seu exemplo

exerce influência como uma sombra que estimula perversidade.

Encima é uma árvore infrutuosa e debaixo da terra é estéril.

Os raios do sol não alcançam a terra porque, quando os dependentes de

um patrão perverso vêem seus maus exemplos, também eles, permanecendo

privados da luz da verdade, permanecem infrutuosos; sufocados pela sombra

não recebem o calor do sol e permanecem frios, sem o calor de Deus.

Ocupa inutilmente o terreno quem cria dificuldades à mentes dos outros.

Ocupa inutilmente terreno quem não produz boas obras no oficio que tem”  

6. Para cultivar a semente da Palavra na vida:

  • De onde provem os chamados para que mudemos de vida?
  • Há algum pecado do qual venho adiando, continuamente, a conversão? Quando darei o passo que me fará uma pessoa livre?
  • Daria o mesmo converter-se que não converter-se? Que aconteceria se não o faço?
  • Qual a principal motivação que o evangelho de hoje me dá para que dê um passo

de conversão? Que apoio me oferece Jesus?

  • Como se revela a misericórdia de Deus neste texto? Como a tenho experimentado?

ANEXO

PAPA BENTO XVI

Queridos irmãos e irmãs:

A passagem do Evangelho de Lucas, que se proclama neste terceiro domingo de Quaresma, apresenta o comentário de Jesus sobre dois acontecimentos da época. O primeiro: a revolta de alguns galileus, que havia sido reprimida por Pilatos com derramamento de sangue; o segundo: a derrubada de uma torre em Jerusalém, que havia causado dezoito vítimas.

Dois acontecimentos trágicos muito diferentes entre si: um causado pelo homem; o outro acidental. Segundo a mentalidade daquela época, as pessoas tendiam a pensar que a desgraça havia recaído sobre as vítimas por causa de sua grave culpa. Jesus, pelo contrário, diz: «Pensais que esses galileus eram mais pecadores que todos os demais galileus, porque padeceram estas coisas?… Ou aqueles dezoito sobre os que se desmoronou a torre de Siloé, matando-os, pensais que eram mais culpados que os demais homens que habitam Jerusalém?» (Lc 13, 2.4). Em ambos os casos, conclui dizendo; «Não, vos asseguro; e se não vos converterdes, todos perecereis do mesmo modo» (13, 3.5).

Este é, portanto, o ponto ao qual Jesus quer levar quem o escutava: a necessidade da conversão. Não a apresenta em termos moralistas, mas realistas, como única resposta adequada para os acontecimentos que põem em crise as certezas humanas.

Ante certas desgraças, adverte, não serve de nada jogar a culpa nas vítimas. A verdadeira sabedoria consiste mais em deixar-se interpelar pela precariedade da existência e assumir uma atitude de responsabilidade: fazer penitência e melhorar nossa vida.

Esta é a sabedoria, esta é a resposta mais eficaz ao mal, em todos os âmbitos, inter-pessoal, social e internacional. Cristo convida a responder ao mal antes de tudo com um sério exame de consciência e com o compromisso de purificar a própria vida. De outro modo, pereceremos, diz, pereceremos da mesma maneira. De fato, as pessoas e as sociedades que vivem sem pôr-se em discussão têm como único destino final a ruína.

A conversão, pelo contrário, apesar de que não preserva dos problemas e adversidades, permite enfrentá-los de «maneira» diferente. Antes de tudo ajuda a prevenir o mal, desativando algumas de suas ameaças. E, em todo caso, permite vencer o mal com o bem, ainda que nem sempre no âmbito dos fatos, que às vezes são independentes de nossa vontade, mas certamente sempre no âmbito espiritual. Definitivamente: a conversão vence o mal em sua raiz, que é o pecado, ainda que nem sempre possa evitar suas conseqüências.

Peçamos a Maria Santíssima que nos acompanhe e apóie no caminho quaresmal, que ajude cada cristão a redescobrir a grandeza, diria inclusive a beleza da conversão. Que nos ajude a compreender que fazer penitência e corrigir a própria conduta não é simples moralismo, mas o caminho mais eficaz para melhorar tanto a nós mesmos como a sociedade. Explica-o muito bem uma acertada máxima: é melhor acender um fósforo que maldizer a escuridão.

Autor: PE. FIDEL OÑORO, CJM

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